sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Natal & Amor

As imagens, os textos, os sons não deixam dúvidas. Se a origem é cristã, o dia 25 de dezembro repete o momento em que milhões de famílias buscam se reunir e a grande maioria das pessoas admite celebrar a irmandade da espécie e pensar nos desvalidos da vida. Parece que precisamos desta data para abrir nossos corações, ajudar aos menos afortunados, em uma espécie de busca de sentido para nossas vidas. Ou somente para fazermo-nos merecedores da compaixão divina, com seu poder de “tirar os pecados do mundo” e os nossos. Tentamos enumerar nossas boas ações e encontrar razões para nossos sonhos mesquinhos ou egoístas. Pedimos perdão por nossos prazeres e gozos. Enfim, o clima convida a um “mea culpa” que zere o cronômetro moral e nos coloque sob os trilhos da solidariedade e da possibilidade de “amar qualquer que seja o próximo”. Mesmo que pareça simplório crer que nossos gulosos prazeres e nossa culpa consequente expliquem o bem e o mal que regem nossas vidas. Embutido, mas não tão claro, há neste singelo balanço um sentimento de nossa precariedade diante das misérias e violencias que podemos cometer. Pressentimos que se a reunião dos homens em sociedade é uma condição de sobrevivência para a espécie, ela contraria os interesses individuais, pois exige toda uma gama de limites e renúncias aos nossos excessos de amores e ódios. Por mais que inventemos leis e propaguemos o valor do amor, não conseguimos tornar estas forças do “mal” inoperantes. Nossa “realidade psíquica” é uma realidade que ultrapassa aquela que organiza nosso mundo; pior, é particular de cada um e não pode ser coletivizada. Teríamos que acreditar que as grandes revoluções só aconteceriam na consciência dos homens que pudessem contemplar  sua humilde existência (moral/ psíquica). Mas isso, na hierarquia moderna de nossos valores, desbancaria a felicidade e a segurança como os itens mais ansiados e honraria nossa “autonomia” ou o fato de ser possível a cada um escolher seu projeto de vida e realizá-lo, ou melhor ainda, inventa-lo. Fácil? Assim parece ou poderia ser. Mas na verdade é extremamente doloroso e árido admitirmos que sejamos os únicos responsáveis por nossas desventuras. Não por acaso construímos sentidos místicos que nos dão a impressão de que não somos autônomos e evitamos “saber” que em nosso mundo não há tantos mistérios além de nossas próprias dificuldades, medos e confusões. Precisamos mais que nunca de datas como esta que nos envolvam e nos permitam desfrutar do clima do amor entre os homens. Amor que, mesmo vestindo novas roupagens, continua a cumprir sua função de ligar e encantar nosso mundo.  Resta-nos juntar as boas coisas que a vida ainda nos oferece e lembrarmos em retrospectiva, como alguns de nós sabem mostrar que o “amor” existe e que o mundo vale a pena. São boas histórias que nos ajudam a viver e a desejar um feliz 2012 a todos.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Eu, tu, eles.

Havia sentido um friozinho no estômago em algum momento próximo ao final do mês de novembro. Pensar que logo mais dezembro se iniciaria causava-lhe tamanha ansiedade que precisava respirar, “deletar” tais pensamentos e forçar a volta à rotina. Misturava-se a isso certo pesar já que em sua infância os dias que antecediam o Natal eram impacientemente esperados. Sua cidade vestia-se de verde e vermelho e todas as luzes do mundo se acendiam. Papais Noéis de verdade, sinos, presépios, lojas que estendiam seu horário de fechamento até às dez da noite e exibiam vitrines reluzentes, músicas com temas natalinos. Assim começavam as férias escolares, praticamente junto ao anúncio de proximidade da celebração do Natal. Era uma conjunção de boas novas. Os adultos ficavam mais imersos e apressados a fim de poder cumprir os prazos para a compra dos presentes e dos quitutes da ceia e do almoço do Natal. Nozes, castanhas, avelãs e panetones ganhavam espaço. Parentes chegavam de suas cidades promovendo o encontro de primos que podiam brincar quase sem limites de horários. Pensando bem, era como se este pequeno espaço de tempo entre o final do ano letivo e o 24 /25 de dezembro fosse o verdadeiro “carnaval” infantil: desapareciam as rígidas medidas disciplinares impostas pelos pais e pelas obrigações escolares ao mesmo tempo em que se descortinava um mundo colorido, agitado e cheio de novidades prazerosas. Da penúria ao excesso, dormir era perder tempo. O dia seguinte já estava ali, à espera de novos e deliciosos momentos. Quem poderia imaginar tantas mudanças? Como tudo na vida, o período que antecede o Natal também tinha seu lado B. Não que a reunião dos familiares - cada vez mais escasso em números, mais concentrado em seus núcleos- tivesse deixado de ser agradável. Mas a velha “aura” mágica deste período do ano havia se dissipado quase completamente. Ok, o olhar de um adulto cinquentão (ou sessentão?) pode ser cético, duro demais. Pintava sim um olhar invejoso aos que podiam manter a alegria e o entusiasmo através dos tempos, uma alegria sem dúvida necessária para empolgar filhos e netos. Ele tinha que se esforçar. Muito! Nem sabia ao certo se podia chamar de preguiça ou de dor o fato de evitar as aglomerações em torno de shoppings e de “visitas” aos enfeites majestosos de Natal espalhados pela cidade. Não conseguia ver sentido naquele bloco de pessoas zanzando pela cidade, nem mesmo nas inúmeras confraternizações que pipocavam nos bares, dos amigos da infância, dos colegas de faculdade, daqueles do antigo trabalho, do atual, etc, etc. E a passagem do ano? Só de imaginar as estradas coalhadas de carros ou os aeroportos lotados com todos bufando pelos atrasos dos voos, sentia falta de ar. Preocupava-se com este azedume. Seria assim para sempre? Não conseguiria mais desfrutar (nem compartilhar) minimamente o clima especial de todo final de ano? Não poderia responder a esta questão, ao menos não agora. Sabia bem que sua tristeza, apatia ou aflição (sabe-se lá) estavam atreladas a uma reflexão mais profunda que havia sido disparada desde julho, quando completara sessenta anos. O futuro ficara bem mais curto e estava difícil ajustar os sonhos para que se amoldassem melhor à realidade. Um choque, uma ferida aberta que pedia um tempo, quem sabe uma nova lente para encarar as mudanças que o corpo começava a anunciar e a mente precisava processar. Era isso. Estava doendo demais e não havia energia disponível para a alegria transformadora que estas festas pedem. Quem sabe o próximo ano reservasse a ele alguma surpresa. Que fosse boa, que lhe devolvesse o pique, o encanto pela vida, pelas pessoas, pelos seus. E por ele.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Por uma ação de graças

Semanas atrás, em conversa com brasileiros que residem nos USA, falávamos sobre a força da "tradição" que o feriado do Thanksgiving mantém entre os americanos. Uma das pessoas comparou o clima desta data  - em que as famílias americanas  se reúnem em torno do famoso "turkey"- ao nosso Natal. Comemorado toda 4ª quinta feira do mês de novembro, o dia de Ação de Graças rememora a refeição coletiva de agradecimento pela fartura da colheita conquistada pelos peregrinos vindos da Inglaterra, graças aos ensinamentos de alguns índios nativos sobre as técnicas de plantio. O período anterior havia sido de penúria diante do frio e da fome. De certa forma nos familiarizamos com esta celebração e pudemos comprovar seu valor em inúmeros filmes (made in USA) que mostram jovens estudantes e adultos cruzando estados para se reunirem com seus familiares. Muitos destes filmes contam historias de afirmação de vínculos de pertencimento, alguns do reasseguramento dos afetos de amor, mas não são poucos os que descortinam os desencontros tanto pelo via do drama quanto da comédia. Tal e qual as histórias sobre a noite de Natal em torno das expectativas das reuniões familiares, não importa o quão difícil, trabalhoso e tenso seja, a tradição funciona como um polo agregador e inevitável e todos se sentem melhor se puderem "cumprir" com este protocolo. Por não compartilhar de fato do significado do Thanksgiving, uma de minhas interlocutoras, que ali reside há mais de uma década, trazia seu olhar "estrangeiro" sobre esta festa. Insistentemente convidada a participar e incitada a escolher um entre os “anfitriões”, percebia ser difícil para a grande maioria, suportar o fardo da solidão ou da exclusão dos que não possuem famílias e não podem desfrutar do calor da data. Aos poucos foi se acostumando a planejar seu feriado, escolhendo as “famílias” principalmente pelo critério de seu acolhimento e flexibilidade, já que em seu currículo constavam vários jantares que expunham o paradoxo da reunião. Embora houvesse um movimento geral em torno de compra de passagens e presentes, definição de cardápios e receitas de peru, nada garantia que o evento fosse agradável. Na verdade, a produção de intimidade por vezes “involuntária” da família parecia induzir uma espécie de visita ao seu "acervo de memoria afetiva" despertando os pequenos dramas infantis de cada um. Em geral as festas de Natal também impõem a todos o cumprimento de seus rituais - juntar o maior número possível de familiares, decidir a casa, o cardápio, fazer o amigo secreto ou presentear aos que somos gratos - mas nada impede que possam ser tensas, e os motivos podem ser os mais variados. Talvez um denominador comum seja o fato de que nossos mais pungentes dramas são os vividos em nossa infância, no seio familiar, dramas construídos pela força dos amores, das preferencias, do carinho, mas também dos ciúmes, das disputas, das rivalidades e das violências. Muitas famílias, ao longo de suas histórias, conseguem minimizar os efeitos às vezes mortíferos, às vezes agressivos que permeiam suas relações e podem manter um funcionamento mais cool, em que o humor e o amor sobrepujam as diferenças e as tensões. Outras perpetuam este ranço e suas reuniões são palco de trocas ferinas, mágoas e ressentimentos. Porque continuam se reunindo? Saber-se parte de uma família, ter uma origem, uma "organização" a qual se pertence pode ser mais importante do que sentir-se excluído em uma data em que se imagina que TODOS estão "felizes" comemorando com os seus. Pode ser que a dor e o sofrimento deste desamparo sejam mais insuportáveis do que o convívio familiar, mesmo que seja para brigar, beber, falar o que não se deve, ouvir o que não se quer.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Conto de fadas moderno

A frase saiu pronta, rápida, mas eu nem havia pensado sobre ela. Provavelmente fazia parte destes momentos em que fazemos alguma associação, mas seu sentido nos escapa. Diante da necessidade de eleger um tema a ser abordado em nossa seção de debates do próximo numero da Revista Percurso ( http://www.revistapercurso.com.br/) , pedi às minhas colegas que assistissem ao filme “O garoto da bicicleta” (ainda em cartaz na capital) e deixassem-se afetar por sua trama. Depois voltaríamos a conversar. Saí dali e fiquei a tentar buscar o sentido daquele convite. Porque aquele filme me parecia paradigmático a ponto de suscitar questões importantes? Assistira-o há dois dias antes, não só por ele ter conquistado o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes/2011 ou fazer parte da 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas por ter visto seu trailer algumas vezes e me encantado pelas cenas do menino “voando” em sua bicicleta no verão de alguma pequena cidade do interior. Cenas de crianças que circulam sozinhas de bicicleta pela cidade não são mais usuais em nosso panorama paulistano nem mesmo em cidades do interior como Ribeirão Preto ou Campinas, mas fazem parte de meu repertorio afetivo infantil. Com pouco mais de oito anos era meu veículo de transporte para fazer pequenas compras ou ir às aulas de piano, a algumas quadras de minha casa. Nunca me esquecerei da sensação de liberdade e até de uma certa autonomia protegida, que me permitia transitar as vezes pelas calçadas outras pelas ruas asfaltadas da minha querida Morada do Sol. De fato a bicicleta tem um significado importante na historia de Cyril. Ela funciona ao mesmo tempo como uma possibilidade dele transitar entre seu passado para resgatar as boas coisas e fechar suas feridas, e ajuda-o a buscar um lugar para si no futuro. Aos 11 anos, deixado por seu pai em um orfanato  com a promessa de que seria apenas por um mês, Ciryl  se inquieta com a falta de noticias deste pai (que desaparece quase sem deixar rastros), e passa a criar estratégias de fuga, convicto de que o encontrará, assim como a sua bicicleta. Em uma destas tentativas, consegue voltar ao seu apartamento, mas ele está vazio, quase sem vestígios de sua antiga vida, inclusive sem sua amada bicicleta. Ao tentar se desvencilhar da captura dos agentes de seu orfanato, esbarra em Samantha, uma cabelereira da cidade, e a abraça forte e desesperadamente como a impedir que o levem. Aos berros ele deixa claro sua crença de que o sumiço do pai é improvável e clama por uma história que o convença. Seu pedido de socorro desperta a compaixão e a curiosidade desta moça que acaba encontrando a tal bicicleta à venda e decide dá-la de presente a Cyril no orfanato. Mas ele ainda não pode crer que o pai tenha colocado a venda algo tão valioso sem consulta-lo. Faz mais sentido imaginar que isso teria sido obra de algum ladrão de bicicletas. O orfanato abre às famílias da cidade a chance de se oferecerem como guardiãs dos órfãos para os finais de semana. Samantha, a pedido do próprio Cyril, acolhe-o e o ajuda na busca do pai perdido. Deixando de lado o restante da trama (para não eliminar as surpresas de quem ainda não viu), em entrevistas a imprensa, os irmãos Dardene, diretores do filme, proclamaram ser este um conto sobre o amor cujas referencias seriam os contos de fada, no estilo de um conto de fadas moderno. Curiosamente, se os contos de fadas costumam assegurar um final feliz, eles também são a maneira que nós adultos inventamos para revelar aos nossos filhos as dificuldades das relações familiares, em que pais e filhos podem odiar aqueles que mais amam, em que invariavelmente há desencontros amorosos, e perdas de ilusões de perfeição. Nem descrença absoluta, nem ingenuidade ou julgamento moral na composição dos personagens, somos convidados a “escutar” os motivos e justificativas de atos humanos. Até mesmo o mito da infância feliz está sendo questionado, aquele em que um casal parental amoroso e presente seriam garantia para um filho se tornar um adulto com autoestima permanente, apto a enfrentar as dificuldades da vida. Cyril é um personagem contemporâneo, meio insuficiente, meio atrapalhado, às vezes agressivo, outras corajoso, aflito e terno que busca valentemente um lugar no mundo para si. E os diretores parecem apostar em nossa capacidade de nos aproximarmos dos personagens, não para repeli-los por aquilo que nos incomoda neles, mas para reconhecer neles possibilidades nossas, e quem sabe nos solidarizarmos com suas dores.



Para conferir:

O Garoto da bicicleta  (Le Gamin au Vélo). Bélgica, 2011.

Direção: Jean Pierre e Luc Dardenne.

Com Cécile de France, Thomas Doret, Jérémie Renier.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Benvindos

O Brasil poderia ser comparado a um jovem e inquieto adulto que, na falta de boas referências que pudessem dar-lhe um contorno mais definido de sua identidade, estaria sempre em busca de confirmação sobre seus talentos e falhas, suas possibilidades e misérias. Quase todas as celebridades estrangeiras que aqui aportam são assediadas pela mídia para deixarem suas impressões, seja sobre as características mais marcantes de nosso povo e suas proezas, pelos contrastes sociais fartamente exibidos pelas nossas cidades, pelo funcionamento “caseiro” de nossa politica ou pela grandeza de nossos recursos naturais. No cômputo geral conseguimos impactar a maioria dos que nos visitam e não é raro ouvirmos alguns elogios a alguns destes itens. Claro que não podemos deixar de registrar as regras de boas maneiras exigidas para todo visitante. Que não se atrevam a melindrar seus anfitriões apontando-lhe falhas às vezes escancaradas. É de bom tom evitar constrangimentos e enaltecer nossas qualidades ou agradecer nossas gentilezas. Por isso chamou a atenção os comentários feitos por Alain de Botton em sua recente visita ao Brasil. Suíço de nascimento, mas na Inglaterra desde os 12 anos, ele é um dos filósofos mais pops da atualidade. Simpático, não se esquiva de quaisquer questionamentos que lhe sejam dirigidos ou que lhe imponham algum tipo de crítica ou avaliação. Convicto de que os saberes das humanidades precisam se aproximar da vida cotidiana de todos, versa com segurança sobre temas como o amor, a religião, o trabalho, a educação, a literatura, a arquitetura, a vida em sociedade e o significado da existência humana. Com respostas sempre à ponta da língua, rebate as críticas feitas ao estilo “autoajuda” de seus livros, lembrando que tal estilo de literatura sempre fez sucesso em tempos mais remotos, quando filósofos e pensadores em geral escreviam verdadeiros tratados para ajudar os indivíduos a se situarem melhor em suas vidas. Levando sua convicção às ultimas consequências em 2009 fundou em Londres a “The School of Life”, uma universidade voltada a todos os que desejam estudar “como viver” e que oferece possibilidade de se discutir temas como morte, casamento, escolha de profissão, ambição, criação de filhos. Temas que estariam hoje relegados a alguns gurus (segundo ele), mas que precisariam ser considerados com rigor e seriedade por sua importância na vida de todos. Por isso em sua escola é possível se inscrever em cursos como política, trabalho, família, amor, além de conversar com um terapeuta, aprender a fazer jardinagem, etc. Um claro desafio à educação vigente que estaria longe de valorizar as respostas para os grandes dilemas da vida. Durante o curto período em que aqui esteve - uma semana – com a finalidade de participar de conferências e lançamento de seu último livro, a cada cidade que visitava (São Paulo,  Porto Alegre e  Rio de Janeiro) o filósofo tuitava comentários (nem sempre lisonjeiros) de forma espontânea. Em uma de suas últimas entrevistas confessou estar com a impressão de que estava aqui há séculos, tamanho era o país e sua diversidade. A Inglaterra lhe parecia não só pequena como pacata. Sensível, detectou as diferenças entre as culturas de cada uma das cidades visitadas, e embora tivesse comparado Porto Alegre ao Texas, São Paulo a Nova York e o Rio de Janeiro a Los Angeles, não deixou de sublinhar as diferenças entre Brasil e EUA, principalmente na maneira como a religião aqui funcionaria de forma mais acolhedora e menos fundamentalista. Deixando-se afetar sem pré-conceitos, Alain de Botton pareceu aglutinar a inquietude de sua geração (tem 42 anos), mas mais que isso, despiu-se de qualquer arrogância intelectual sem cair na banalidade e sem perder o interesse e a curiosidade pelas vidas humanas em geral. De forma generosa, emprestou sua vitalidade e conhecimento em todas as pontuações que nos fez. Só nos resta dar-lhe as boas vindas!

sábado, 26 de novembro de 2011

A invenção da vida

Betina ouviu as batidas na porta de seu quarto e suspirou contrariada. Tentou responder “não” à sua mãe de forma o mais gentil possível. Na verdade não desejava sair de sua cama. Queria ficar ali, deitada, pensando, rodando o filme de sua vida sem que seu corpo se mexesse. Era uma técnica que ela havia desenvolvido e que lhe dava uma extrema sensação de conforto. Gostava de se imaginar  em uma viagem como se fosse apenas um ponto, sem matéria, ao mesmo tempo em que era tudo: as ideias ficavam claras, os sentimentos eram aparados e o peso das dúvidas e do medo afastava-se. Mas agora teria que “retornar”, abrir a porta e enfrentar sua mãe. Ela não deixava barato. Já havia sentido muita raiva por ela ser tão “presente”, por ficar tão atenta. Depois de tantas vezes em que as mães foram tema de discussões entre as amigas, foi situando a sua de forma diferente. No fundo era bom que ela se importasse. A mãe de Aninha, por exemplo, nunca telefonava para saber seu paradeiro, e isso já tinha sido motivo de inveja de muitas. Mas não mais dela. Até o fato de serem apenas as duas, ela e a mãe, já estava mais acomodado em sua bagagem de vida. Sua inquietação do momento era o fato de seu aniversário de 18 anos estar próximo, já na semana seguinte. Sentia necessidade de pensar sobre esta passagem, ajustar melhor seus planos.  Estava no final do primeiro ano da faculdade e empolgada com o curso que havia escolhido - à revelia de seu pai que apostara em uma carreira mais “consistente”. Quase prestara Arquitetura só para deixa-lo mais contente. No fundo sentia uma pontinha de orgulho por não ter desistido de ser uma designer gráfica. O desenho sempre tivera um significado importante em sua vida e desde os oito anos, acostumara a retratar situações familiares e de seu cotidiano em pequenas folhas brancas. Em geral os adultos ficavam muito entusiasmados com sua capacidade de apreender certas nuances das pessoas e das situações naquelas “mal traçadas linhas”. Não tinha sido nada fácil convencer os pais a dar-lhe esta chance, e na época isso tinha sido muito sofrido. É difícil e injusto o confronto entre o que os filhos querem para si e o que os pais querem que eles sejam e para ela em especial havia sido tumultuado escolher algo que desagradava aos dois. Rolou muita conversa, muita saliva e tentativas de persuasão de um lado e de outro. Filha única de pais separados, exigentes, intelectualizados, que colocavam nela um caminhão de expectativas. Ufa! Carga pesada para uma adolescente que sonhara desde sempre em ser artista, esta palavra tão solta, sem grandes definições prévias, sem vínculo empregatício, sem lugar de destaque no mercado das profissões promissoras. Começara o ano letivo com ganas de absorver ao máximo as técnicas e ferramentas oferecidas para aprimorar seu talento. Queria (precisava) descobrir algum nicho diferenciado e era preciso convencer seus pais sobre a importância de adquirir programas digitais de ultima geração. Suas ideias fervilhavam e era deste tempo mágico que as batidas da porta do quarto destoavam. Uma coisa era imaginar sua nova empresa de produtos descartáveis com designs criativos dirigidos às grandes redes de hotéis e restaurantes. A outra, bem diferente, era começar a falar disso com sua mãe (ou pior, com seu pai). Da fantasia à realidade havia uma distancia desanimadora. Abriu a porta.


sábado, 19 de novembro de 2011

Eu como você

Em geral os filmes de Almodóvar dispensam apresentações. São filmes que trazem a marca e o estilo de seu “autor”, este espanhol que conseguiu abordar a temática da sexualidade latina (e humana, claro) escancarando o preconceito, mas principalmente o que fica escondido nas bordas, na periferia ou no avançado das noites, quando a grande maioria já dorme em suas camas e casas protegidos. Sua arte não cabe nos bons nem nos maus valores: causa espanto, ambiguidade e surpreende por tocar-nos seja pela com-paixão ou pela perturbação (caso de seu ultimo filme “A pele que habito”). Sem o colorido e o excesso que marcam seus filmes anteriores, neste, Almodóvar parece querer “esterilizar” e até banalizar os impactos da sexualidade ao trazer ao grande público um tema perseguido desde sempre pela humanidade, o controle da vida e da morte ou, se quisermos, o controle (silencio) das dores do viver. Tal como um Dr. Frankenstein pós-moderno, Antonio Banderas interpreta o cirurgião plástico Ledgard, que utiliza como cobaia (de forma inescrupulosa), uma mulher que mantém cativa em sua mansão/ clinica, e na qual irá implantar  um novo tipo de pele transgênica (feita com DNA suíno) que, embora mantenha a sensibilidade ao toque, deixa-a resistente ao fogo, a picadas de inseto e ,é claro, a dor. A frieza/indiferença deste cientista ousado esconde, no entanto, não só sua busca obsessiva pela esposa perdida (e reconstruída nesta mulher-objeto), como sua vingança pela morte da filha, pela qual tentará fazer “justiça” com suas próprias “mãos”. Na medida em que o filme avança e regressa no tempo para situar o espectador, a trama se abre aos personagens almodovarianos, agora sim se apresentando com suas historias dramáticas, seus segredos, infortúnios, perdas, enfim, tudo o que pode tentar justificar o uso e o abuso de uns contra os outros. Há com certeza uma espécie de crítica aos avanços inimagináveis da ciência, mas há mais que isso. Como toda  arte  que exerce seu papel de apontar para valores futuros, transgredindo os vigentes, Almodóvar escancara o homem por trás da ciência  e seu anseio em se apossar do próprio corpo através do  controle de seus excessos, suas vontades, seus prazeres e  dores, em especial, as dores psíquicas. Corpos que se transformam em meros objetos, que podem adquirir novas formas e sexo ou descartar o que não serve. O perturbador da trama é o que ela revela sobre os avessos e sombras do espírito humano - a violência do desprezo, do constrangimento e da humilhação própria das relações de domínio e submetimento. É a constatação de que estamos sujeitos a construir, ainda que de forma defensiva, um eu todo poderoso e onipotente, que facilmente nos conduz ao abuso de poder, ao canibalismo utilitário e instrumental, subvertendo o que temos de mais caro em nossa escalada humana - a possibilidade de dimensionar o valor do outro/ próximo como um parceiro em nossa empreitada do viver. Se é pelas parcerias que podemos enfrentar o medo e os percalços de nosso encontro com a sexualidade e a morte, tal percepção não está dada e nem sempre é possível; precisa ser buscada, desejada, fazer-se necessária. Por isso o filme incomoda, e ficamos sem saber em que arquivo guarda-lo: teremos que inventar ou nos indignar.
Para conferir: A Pele Que Habito (La Piel que Habito) – Espanha 2011
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O que a gente pode fazer

As dores em seu corpo funcionavam como lembretes ao não lhe deixar esquecer que a noite tinha sido um calvário. Acordara pelo menos duas vezes na madrugada, assaltado por sua angústia e por uma sensação de medo. Talvez não houvesse nada pior do que estes “sentimentos agudos” que ficam a brigar com o torpor do sono até que finalmente vencem a batalha e inundam todo o corpo. Ponto para a  consciência crítica a lhe importunar sem descanso. O quarto ainda estava escuro, mas o barulho da manhã já invadia o ambiente. Tentou evitar olhar para os enormes números digitais vermelhos do relógio, mas eles haviam sido colocados ali no alto justamente para facilitar a organização de sua rotina diária. Medo. Medo de ter que pensar, de ter que se lembrar de tudo. De ter que resolver, decidir, agir. Nestas horas parecia fácil visualizar que à proporção da evolução,também pipocavam formas de se safar do peso da administração da própria vida. Na medida em que o orçamento ganhava algum volume era possível nomear agentes que passavam a funcionar como co-autores desta empreitada. Tinha se beneficiado desta prerrogativa sem nenhuma culpa. Seu secretário “faz tudo” e seu motorista – cuidadosamente selecionados – foram assumindo parte a parte de suas obrigações a ponto de se confundirem com ele mesmo. Os três juntos eram imbatíveis e podiam jogar horas sem deixar a bola cair, tamanha a sincronia. E quando se atinge um estágio em que é possível se ter a ilusão do controle (quase) absoluto é muito fácil se esquecer do imponderável. Do inesperado. Das surpresas. Tem-se a impressão de que a vida vai (mesmo) andar no trilho da tranquilidade, para sempre. Sentiu a vergonha inundando seu corpo, ultrapassando e se misturando por alguns segundos com o tormento do medo – um medo que não ousava dizer o seu nome, uma espécie de covardia autocomplacente. Será que havia estudos sobre estas diferenças, anunciadas pelo corpo, para as sensações de medo/ angustia, vergonha/humilhação, nojo/horror? Cada grupo parecia movimentar órgãos e vísceras específicos, como se fossem tonalidades diferentes de desconfortos. Vergonha de que? Não sabia ao certo, mas tinha dificuldade em se lembrar de si mesmo no passado recente. A figura poderosa que se tornara, um pouco arrogante e muito vaidosa, cuja presença provocava uma ruidosa avalanche de luzes, câmeras e microfones. Pensar que quase todos buscam esta espetacularização de suas vidas, este reconhecimento estampado nos olhos dos outros, a satisfação de estar em evidencia. Tal como um balão de aniversário, foi só a festa acabar para que ele ficasse sem ar, sem função, esquecido ali, à mercê dos que se ocupam da limpeza geral no dia seguinte. De repente  aquela parafernália tecnológica de sua casa que tanto lhe enchia de orgulho, da qual ele se ufanava de ter bolado e conquistado, já não fazia o menor sentido. Aninha bem que tentara lhe alertar. Mas desistira. Na ultima reunião familiar (antes do “desastre”) ela já fazia comentários irônicos, sem aquela preocupação/indignação de irmã mais velha diante dos “maus” comportamentos do caçula. A experiência humana seria mais complexa do que a tarefa de buscar, comprovar e ostentar status, teria dito. Para ela, qualquer atividade humana deveria -  antes de mais nada - ser reconhecida por sua responsabilidade social. Aninha seguia este modelo de gestão de vida, em que os encontros, as reuniões, a solidariedade, as trocas entre as pessoas precisavam ocupar a primeira linha de ações de qualquer ser humano. Balançou a cabeça. Com tantas coisas para decidir, surpreendia-se por este resgate de ideias sobre a vida. Ele que  sempre engrossara o coro dos que  consideravam sua irmã uma militante social, agora sentia-se tal e qual um mendigo desamparado, sem amigos que valessem a pena, louco por uma lembrança que lhe devolvesse um valor, uma medida de sua capacidade de ser amado. Resolveu ligar para Aninha.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Quem sou eu?

Quando o historiador Walter Isaacson, escolhido pelo próprio Steve Jobs para ser seu biógrafo, perguntou-lhe ao final da maratona de entrevistas e conversas sobre sua vida, porque ele, sempre discreto, estivera tão disposto a  se abrir e falar de si, ouviu algo surpreendente. Steve Jobs queria que seus filhos o conhecessem melhor, soubessem de seus feitos e entendessem as razões pelas quais ele nem sempre pudera estar presente. Personalidade midiática, glamourizado e convertido em símbolo, é provável que Steve Jobs quisesse desvendar o homem atrás do mito e quem sabe, ao ajudar a construir textos sobre sua vida pessoal, tornar cada leitor um crítico/parceiro de sua identidade. Não só pelas biografias - que as estatísticas apontam um crescimento jamais visto - mas há hoje um certo apelo para o entendimento de si e o falar de si. E os motivos não parecem simples ou poucos. Por um lado, em um mundo sem critérios rígidos e prévios para eleger celebridades, a fama projeta pessoas dos mais variados setores e as coloca sob o foco da curiosidade mundana, um verdadeiro culto à privacidade pública. Pessoas que se veem, de repente, incitadas a criar discursos atraentes sobre si e a ensinar os passos para se alcançar uma “identidade” bem sucedida. Por outro lado a invisibilidade assusta: como viver sem saber quem somos ou sem ter algum reconhecimento que nos devolva um saber sobre nós? O temor a este vazio (ou vácuo) poderia ajudar a alimentar uma dimensão imaginária do si mesmo? A verdade é que a complexidade do ser humano (que não cessa de aumentar) nos mostra que não há fórmulas mágicas e prontas que possam dar conta de todas as suas dimensões. Desde que nos pusemos a tentar entender nosso “eu” só conseguimos falar de nós como seres fragmentados, ora apontando nossos ideais, nossos sonhos, ora nossas conquistas e triunfos, ou ainda nossas descrenças e medos, nossas fragilidades e impotência, e por aí vai. A psicanalise contribuiu bastante para um olhar diferenciado sobre o funcionamento de nosso psiquismo, nossa subjetividade com seus paradoxos e incertezas. O fato de a cultura atual funcionar  em grande parte pela lógica do marketing, buscando incessantemente capturar  nossos desejos e paixões mais profundos para produzir ofertas de prazer e felicidade, ou criando formas de encantamento que nos projetem e nos tornem visíveis não garante a cada um, um lugar ao sol. No mundo business, por exemplo, a subjetividade ganha espaço e há um verdadeiro mercado de identidades profissionais bem planejadas, cuidadosamente descritas para que ganhem coerência, atualidade e estilo. Se no escurinho de nossas camas, precisamos nos esforçar para acreditar no personagem, nem sempre é fácil “cair na real”  e viver  a vida na sua dimensão real. Ao planejar sua própria biografia por saber que sua vida estava próxima ao fim, Steve Jobs pode ter desejado participar de alguma maneira na perpetuação de sua imagem. Porque não planejar seu futuro pós-morte? No final das contas todos  precisamos “esquecer” que  a vida dura somente o espaço entre o nascimento e a morte  e precisamos sim da construção de uma confiança imaginaria no destino e da criação de ficções sobre a importância que temos para os outros ou sobre o significado de nossos atos corriqueiros.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Memoria dissolvida

Mas porque precisava ser desta maneira? A vida estaria lhe dando uma chance ou lhe punindo? Vitória sentia-se confusa, justo ela, tão intelectualizada, sempre rápida no gatilho, a dar palpites e sugestões ou a resolver problemas cabeludos (seus e de outros). A família- todos do interior de Minas- sentia orgulho desta menina e não lhe poupava elogios. Fazia tempo que ela havia se mudado para o Rio de Janeiro atrás de seus sonhos e sim... podia dizer sem titubear que muitos deles se realizaram. De jornalista famosa passara a cineasta, algo que imaginara desde a sua infância, quando “dirigia” a turma da rua improvisando cenários e vestimentas. Era ela quem escrevia o roteiro, mas costumava incentivar todos a escolherem quem seria o melhor ator para cada papel. Esta estratégia não só evitava os conflitos advindos dos ciúmes e das rivalidades, como conferia maior legitimidade aos eleitos. Os “estúdios” de seu Cinemoção ficavam no enorme quintal de sua casa e seus pais jamais se opuseram, ao contrário, até palpitavam e algumas vezes ajudavam na composição dos cenários. Sua mãe, ah... ela era o máximo! Que saudades daquele olhar interessado, investido de energia. Tinha certeza que aquela sua paixão pela vida a alimentara e a movera o tempo todo. Por isso não encontrava palavras para descrever a “cena” do cotidiano de um portador de Alzeimer, este sujeito que rompe os fios de sua memória. Consultas ao Google, aos neurocientistas, aos familiares de outros atingidos por esta doença não puderam responder aquela pergunta que insistia: por quê? Como é possível que ainda saudável, resultados de exames apontando a saúde de uma “jovem”, sua mãe havia abandonado sua bem instalada identidade, sua mais valiosa morada? Porque ela havia preferido este não lugar, sem história, um caminho sem volta, parecendo não se importar em perder-se de si mesmo? Tal como um “filme”, Vitoria tentava achar o fio que pudesse dar sentido a este quadro dramático. Era muito difícil estar ali ao seu lado, ao lado daquele corpo tão conhecido e tão querido e perceber que em algum lugar dele havia um “ralo” sugador de histórias passadas, das quais ela se sentia parte. História de uma mulher e mãe tão sabida, centro nervoso da casa, daquelas que levavam a palavra aonde ainda não existia. Que sabia tecer devagarinho as asas de seus filhos e separar-se deles na hora certa. Todos voaram. Vitoria se surpreendia ao perceber, no entanto, quanto ela se mantinha presente na ausência. Saber que ela existia, que estaria ali para recebê-la, para atender seus telefonemas a qualquer hora e dia, fazia tanta diferença! Não tinha se preparado para perder esta mãe. Havia reservado estes dias para estar com ela, ficar ali ao seu lado, olhando com atenção cada menção daquele corpo às vezes acenando com alguma possibilidade de resgate de seu eu, às vezes alheia a tudo e a todos. Pretendia não adiar este olhar para o passado, não deixar para traz esta história. Queria ser uma espécie de memoria-prótese de sua mãe. Quantas vezes mencionara aos amigos quão “especial” era ela, e como admirava  sua capacidade de conhecer a si e aos outros, fato que usava para intervir com delicadeza ao menor sinal de desamparo ou pedido de socorro. Uma máquina de compor, organizar, traduzir, interpretar. Que mundo estranho ela habitava agora? Aos 78 anos, no auge da “velhice”, o conforto e o refúgio dos idosos costuma ser suas lembranças do passado. Alguns com tons mais melancólicos pelo que não puderam realizar, outros a cotejar o passado e o presente com um olhar mais justo. Tantos filmes são baseados nas memórias de prazeres e descobertas de alguém, histórias que nos fazem chorar, arrepiar, acelerar nossos corações. Ali, em silencio, de mãos dadas, Vitoria imaginou uma das cenas de seu próximo filme, as duas, mãe e filha, conversando sobre a dor da morte de seu pai. Vitoria a lhe garantir a possibilidade de ela inventar novos laços para ocupar o lugar dos perdidos. A impedir que sua memória-história se perdesse e com ela a sua paixão pela vida.  

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Este seu olhar

Sentia-se cética demais para levar adiante aquele papo sobre “mau olhado”. Resolveu dar uma volta, beber um copo de água, mas aquele mal estar não lhe deixava. Se desse corda aos seus impulsos voltaria àquela roda de conversas e endossaria o coro dos que já haviam se sentido vítima do famigerado olho gordo. Tantas histórias. Mas mesmo afastada dali não podia evitar que algumas imagens de pessoas viessem à sua memória. (Suspiro). Não. Sua autocrítica não lhe permitiria arremessar a responsabilidade de seus infortúnios a outros, ainda que algumas destas figuras desenterradas de suas lembranças pudessem desfrutar de certa unanimidade quanto ao adjetivo (amedrontador?) de invejoso. Não devia ser por acaso que a inveja figurava entre os sete pecados capitais e muitos de seus portadores fossem personagens famosos na historia da literatura. De Iago (da peça de Shakespeare) que invadido por este “líquido mortífero” destrói a vida de Otelo ao leva-lo a matar injustamente sua amada Desdêmona e depois enlouquecido de remorso, a si próprio, à Rainha Má, cujo espelho não lhe deixa esquecer que Branca de Neve existe e é portadora de tudo o que ela deseja ter/ser, ou ainda o trio da Madrasta e suas duas filhas, que tentam impedir a bela Cinderela de comparecer ao baile promovido pelos reis à caça de uma esposa para o príncipe, e depois, de experimentar o sapatinho de cristal que lhe pertence. Sábias histórias infantis que permitem a nós crianças identificarmos nossos traços mais vis ainda que seja para imagina-los bem longe de nossas mentes, habitando apenas aqueles seres perversos ou asquerosos. Sentir inveja dói. Perceber-se alvo dela é ao mesmo tempo enlouquecedor e paralisador. E é por “conhecermos” quão devastador pode ser este sentimento que atribuímos força ao “olhar” às nossas costas, pronto a nos devorar, arrancar nossas entranhas, se apossar de nós. (Ufa!). O desconforto aumenta, sente-se inquieta com estes pensamentos e claramente dividida quanto ao rumo de suas digressões. De um lado tem ganas de dar vazão a estas rememorações, voltar à infância, não evitar a percepção de sua própria inveja, esta emoção viva e marcante, de cor rubra, que só pode ser incômoda quando somos alvo, porque  sua saliva quente e raivosa nos é familiar. Quantas vezes se é surpreendido por este insuportável ruído ao constatar que uma outra pessoa consegue ser ou ter algo que se deseja ou que se imagina que perdeu? O ideal seria poder fazer uma espécie de acordo com esta luta interna, ao sustentar as lembranças da invasão sorrateira da inveja em seu ser, mas não mais deixar de lado a experiência única de saber-se personagem passivo do “olhar” faminto e raivoso da inveja de um outro. Afinal a força deste olhar malévolo e devastador (mesmo quando seu portador não o reconhece) acompanha a própria historia da humanidade e desde os tempos mais remotos a sabedoria popular se encarregou de inventar medidas protetoras, algumas universais. Quem não conhece a figura das benzedeiras de “quebranto” - aquele estado de falta de vontade  e esmorecimento geral que toma conta do corpo principalmente das crianças indefesas expostas ao olhar dos invejosos ou mal-intencionados? Ou a figa, um amuleto muito utilizado para afastar seus efeitos? Quando ainda não sabíamos que a inveja era tão humana, quase parte de nosso DNA, era mais fácil imagina-la como uma “emoção má” e passível de ser eliminada. Ser benzida por uma curandeira podia trazer um alívio contra as forças invisíveis do mal dos outros. Duro mesmo parecia ser conviver com o saber-se passível de sentir  a mais venenosa das emoções. E era isso que iria dividir com a turma. Que atirasse a primeira pedra quem nunca sofreu deste mal.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A era D S J (Depois de Steve Jobs)

No ultimo dia 5 de outubro estreou em São Paulo, no SESC Belenzinho "Os Náufragos da Louca Esperança", uma peça de teatro inusitada, tanto por sua companhia (Théâtre du Soleil, França) , cuja historia se mistura ao cenário ideológico dos anos 60 (e as apostas em um mundo socialmente mais justo), quanto pela escolha do tema, baseado em um livro póstumo de Julio Verne. Com mais de quatro horas de duração e um pequeno intervalo de 10 minutos, a encenação surpreende (agradavelmente) em todos os sentidos. Conhecida por manter um trabalho alternativo de criação, articulado ao próprio funcionamento da companhia que participa das decisões e interfere nas direções dos projetos, o teatro de Ariane Mnouchkine consegue manter vivo na atualidade um engajamento social e uma dimensão crítica em relação ao mundo em que vivemos. Com algumas pequenas alterações a historia do livreto de Julio Verne - um grupo de pessoas que no final do século 19 deixa a costa do Reino Unido, parte para a Austrália em busca de uma vida nova, mas  naufraga próximo a uma ilha da América do Sul -  será o mote para a companhia recriar em cena, com os recursos artesanais do teatro, uma filmagem de cinema mudo no sótão de um restaurante francês, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Ou seja, o ano é 1914, o século é XX (com sua aura de Luzes e Modernidade), o cinema acaba de nascer, as “loucas esperanças” estão espalhadas, mas começa a guerra, justamente enquanto estes atores tentam filmar a historia do grupo de náufragos que acreditam poder enfim criar uma nova sociedade - uma vida civilizada fora da civilização- mas que acabam se matando um ao outro porque por diferentes motivos, são capturados pela possibilidade de encontrar (e se apossar do) ouro nestas terras. A guerra interrompe a gravação do final do filme. A peça acaba.No mesmo dia 5 de outubro morre Steve Jobs, imediatamente alçado a herói do nosso século e ao “hall da fama” ao lado dos que contribuíram para as grandes reviravoltas da vida humana. Um homem que nos ofereceu o que ainda nem sabíamos que desejávamos, um gênio visionário e criativo que elevou a tecnologia tanto a um objeto de culto quanto de consumo diário. Com a família iPod, iPhone e iPad, não precisamos mais de relógios, câmeras, álbum de fotos, filmadoras, calculadoras, calendários, rádios, gravadores, GPS, agenda de telefone, de compromissos, etc, etc. Há um mundo infinito na ponta de nossos dedos, que pode ser transportado junto ao nosso corpo, para qualquer lugar. Podemos consultar sobre o tempo, as pessoas, nossas dúvidas, nossos amores, escrever, ler, enviar mensagens, jogar, rir, chorar, assistir a filmes, ouvir qualquer música. A peça de Ariane Mnouchkine nos transporta ao mundo das utopias humanas que de forma cíclica e permanente nos embalam e cumprem seu papel de nos fazer caminhar. Mas elas demandam uma certa distancia para que não nos deparemos com o real de nossa humanidade. A figura (agora já mítica) de Steve Jobs vai aumentar o panteão de nossos heróis, todos meio humanos meio deuses já que em suas vidas conseguem combinar pitadas de inovações, arte e genialidade, mudando rotas, alterando sentidos, abrindo novos horizontes.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Queremos uma boa (vida) morte

Todo ano há certa expectativa em torno dos laureados pelo Nobel de Medicina, premio que costuma dar destaque a pesquisas e descobertas  de cientistas imersos na busca de respostas às perguntas aflitas sobre ruídos, descontroles e enigmas de nosso corpo ou em novas formas de suplantar seus limites. No ano passado o britânico Robert Edwards foi o escolhido por ter desenvolvido a técnica (fertilização in vitro) em que óvulos são fertilizados fora do corpo humano e implantados no útero. Neste ano foi a vez de três cientistas (um francês, um americano e um canadense) que desvendaram segredos do nosso sistema imunológico, abrindo caminho para novas vacinas e tratamentos contra o câncer. A nota destoante ficou por conta do fato de um deles, o canadense radicado nos EUA Ralph Steinman, ter falecido três dias antes de ser anunciado como um dos vencedores do premio. Diagnosticado com câncer de pâncreas há quatro anos, Steinman  prolongou sua vida graças à aplicação da imunoterapia à base de células dendríticas que ele mesmo criou. Para lá de moderno, as notícias sobre possíveis soluções para as “anormalidades” de nosso corpo passaram a ser destaques na mídia e assunto a ser debatido entre todos. Afinal nossas vidas atuais estão orientadas em função de nossa relação com nossos corpos (até o nosso amor próprio) e tudo o que desejamos é que ele seja o mais perfeito, saudável e “técnico” possível, a fim de garantir-nos prazeres, mas principalmente vida. E se a avaliação de  uma vida bem vivida muitas vezes está articulada a uma boa morte, no caso do pesquisador  recém falecido a dignidade fica por conta de seus esforços em lutar, pesquisar, apostar na possibilidade de superar os “invasores” cancerígenos indesejáveis de seu corpo. Bem longe de uma era que admirava e reverenciava certos heróis prontos a morrer ou a enfrentar sacrifícios corporais e superar dores sem reclamar, estamos de bem com nossa busca sem fim de meios que nos protejam das dores do viver e que nos ofereçam visões (versões) menos dolorosas do morrer. A tecnociencia é hoje, sem sombra de dúvida, aquela que mais se assemelha a uma mãe prometeica pós-moderna. Quase todos nós, mesmo os mais desconfiados, nos rendemos às suas benesses e bendizemos suas descobertas de novas e melhores ferramentas que possam trazer conforto e bem estar. O júbilo aumenta quando as noticias respondem ao apelo de um corpo que deseja “viver” mais e melhor. O paradoxo é que na medida em que a existência de nosso corpo ganha esta dimensão inusitada, nossa vigilância sobre sua saúde e aparência se amplia e fica muito mais detalhista e obstinada. Manter o corpo perfeito e saudável  exige de cada um não só cuidados, mas sacrifícios e renúncias importantes e portanto quanto mais  valoroso é, mais ele se torna alvo de preocupações e mais nos tornamos sensíveis à sua presença. Quase a desbancar a antiga aura de nossa alma, o corpo é hoje o lugar privilegiado de manifestação do sentido da vida, nosso espelho, e por isso palco de muitos de nossos conflitos que, a despeito de nossa resistência, muitas vezes  insistem em se tornar visíveis através de seus órgãos, tecidos, células e sistemas. Nossas doenças (orgânicas ou psíquicas) são nossas formas de buscar um equilíbrio para as nossas relações com o mundo e com os outros. Mas certamente não há como negar nossa subserviência ao mito cientifico ao redor do qual todos oramos  para que continue a nos premiar com o aprimoramento e a sobrevivência da espécie, e assim seguimos alternando entre formas inimagináveis e protéticas de nos reproduzirmos (por exemplo) e a corrida atrás de novas e mais eficientes defesas contras as inesperadas, (as vezes) surpreendentes e muitas vezes enigmáticas perturbações (físicas ou morais).

sábado, 1 de outubro de 2011

Cibervida

Para alguns um profeta, para outros apenas um otimista, mas para ele próprio, um estudioso da cultura e dos impactos que as novas tecnologias já anunciam sobre o futuro de nossas vidas. O filósofo tunisiano Pierre Levy, professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Québec, Canadá, tem sido um incansável arauto da cibercultura e da crescente virtualização de nosso cotidiano. Fugindo do pensamento apocalíptico, ele prefere mapear as diversas experiências políticas, atividades militantes e comunidades virtuais na Internet que, a seu ver, promovem o desenvolvimento social e político do mundo contemporâneo e contribuem para um processo geral de emancipação. Às questões levantadas sobre o ainda enigmático futuro deste sistema técnico e universal chamado Internet, ele lembra que graças a esta rede mundial, todos podem estar interligados num mesmo espaço - o ciberespaço - e num mesmo tempo presente, estabelecer contatos de um para com cada um, de um para com todos, e de todos para com todos. Que este ciberespaço produzido pela coletividade humana  não seria somente uma rede de conversas on-line, mas promoveria um reconhecimento das competências pessoais de cada indivíduo, e por decorrência incidiria em novas maneiras de se entender a vida de cada um e de todos no planeta. De fato, a facilidade de acesso a um mundo ilimitado de saberes e fazeres, conexões e intercâmbios muda o entendimento que temos principalmente sobre a cultura porque abre um inusitado espaço (leia-se liberdade) tanto para a criatividade quanto para a produtividade individual ou coletiva. De certa forma pode-se visualizar uma radical democratização no acesso a novos meios de produção e de conhecimento e a boa nova seria que de seres passivos, qualquer um poderia ser agente do processo cultural mundial e enriquecer os diferentes enfoques que se cruzam nas fronteiras da ciência, tecnologia e arte. Enfim, para Levy a digitalização da cultura, somada à corrida global para conectar todos a tudo o tempo todo, torna o fato histórico das redes abertas algo a ser pensado e refletido. Mas longe de anunciar um novo “Messias”, ele tenta mostrar que isto faz parte de um movimento de continuidade na incansável tarefa humana de expandir seu conhecimento, que por isso pode e deve ser utilizado como recurso para  se  vislumbrar novas maneiras de  tornar a exclusão menos desumana, de  reduzir a miséria, e de  elevar o nível da educação mundial, ou seja, de se fazer política. E se estas tarefas há algum tempo fazem parte do que se espera de  educadores, políticos e empresários ele convida a todos a assumirem sua porção de responsabilidade. Em sua visão a internet pode permitir que a democracia se imponha (de cima para baixo) ao desvendar um mundo em que qualquer pessoa com habilidades e qualificações pode ser reconhecida em qualquer parte do globo. E se há muitas comunicações transversais numa sociedade, se a informação circula facilmente e podemos ter acesso ao que ocorre “fora”, acesso a documentos complexos, a informações que antes pertenciam a uma pequena minoria, se é possível mapear o destino do dinheiro (publico ou não), aumenta-se a força dos consumidores para um mercado internacional mais transparente, convoca-se a justiça a perseguir aqueles   que fraudam, e por aí vai. Ou seja, abre-se uma nova rota para a sociedade que pode deixar de esperar sua salvação via políticos (ou líderes religiosos) diante da possibilidade de cada cidadão poder (ele mesmo) exigir prestações de contas de seus direitos a todos os que têm como função representar o povo. Acaba o reinado do segredo, das decisões veladas, dos lobbies que manipulam nas sombras. De olho em uma escala universal e antropológica da evolução do mundo Pierre Levy prefere salvar o bebê e jogar a agua usada do banho fora. A seu favor está a própria historia da internet e suas ferramentas que se confundem com a genialidade de pequenos grupos de jovens aficionados que aqui e ali inventam caminhos ou territórios dentro deste novo mundo, e mostram mais uma vez que eles são os atores da inovação cultural. Se a cultura digital não cessa de oferecer novas possibilidades, muitos jovens têm respondido a elas não só ao se adaptar rapidamente às suas tecnologias, mas oferecendo-se como agentes da construção de novos conhecimentos, novas maneiras de se relacionar, de se comunicar, de se posicionar, de conviver uns com os outros e com o mundo. Uma verdadeira arena humana que amplia sobremaneira a diversidade de opções e ultrapassa as fronteiras dos países,  das disciplinas e das instituições. Uma força que de certa maneira cria um alento virtual de amparo e pertencimento, ainda que a liberdade, a infinidade de opções, a possibilidade de ampliar  as fronteiras de nosso conhecimento não nos garantem discernimento, agir moral e preocupação para com o outro. Continuamos passiveis do melhor e do pior e quanto a isso, sempre estaremos por nossa própria conta. Afinal  a ética nasce do reconhecimento da insuficiência da moral e da lei para dar conta dos atos humanos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Politicamente Incorretos

É no mínimo engraçado pensar nas fronteiras do correto e do incorreto como critério para as regras de cortesia ou de polidez necessárias ao nosso convívio, no mundo atual. Principalmente quando ainda “respira” a cartilha dos bons costumes que costumava ser parte importante do legado entre gerações no mundo moderno. Havia ali uma separação importante e confortável para se transitar entre a vida pública e a privada. Na primeira, todos deveriam se conter e seguir religiosamente as normas de boa conduta fosse para se dirigir às autoridades, aos subalternos ou mesmo aos pares. As “gafes” tinham um peso danado no currículo moral de cada um. Na intimidade dos lares, ali sim, era possível se desfrutar de liberdade para amar, odiar, blasfemar, judiar, enfim expor suas entranhas. Esta dicotomia consensual permitia a cada um desfrutar de um código claro para escolher entre o certo e o errado, o bem e o mal, o normal e o transgressor. Mas a rigidez dos julgamentos produzia mais um moralismo do que um agir moral. Isto porque é mais fácil e tranquilo se imaginar de posse de um saber sobre como, o quê ou porquê cada um deve ou não fazer/dizer algo. Parece que não precisamos cavoucar as razões, avaliar caso a caso ou as circunstancias.  Aos poucos o mundo privado foi se misturando ao público e as pessoas convocadas a refletir mais não só sobre seus pesares e ímpetos como aos dos outros, assim como aos meios em que transitam. À liberdade individual que cada um conquistou corresponde uma maior responsabilidade sobre suas escolhas. Zapeando a programação da TV, dias atrás, me deparei com um programa de entrevistas que falava sobre alguns comerciais que estão sendo veiculados. A pauta? Celebridades que não se importavam em ser apresentadas por suas peculiaridades não tão engrandecedoras, ou seja, em serem motivos de piada. Quem já não assistiu o grandão Ricardo Macchi  e seus 1,80metros - malhado por seus dotes limitados como ator – atuando ao lado do “ um metro e meio” e consagrado ator Dustin Hoffman ? Ou o lutador musculoso e campeão mundial Anderson Silva de terno branco a ecoar sua voz fininha em um comercial de fast food? Constrangedor ou engraçado? Ambos? A verdade é que se fosse possível reduzir nossa escalada a uma reta esta estaria sempre em ascensão como a nos lembrar que a tal evolução humana é permanente embora também o seja sua complexidade. E a evolução, como já dizia Darwin, está sempre a modificar o que já existe, assim como a buscar uma regulação ou um equilíbrio que garanta nossa sobrevivência (biofísica, psíquica, moral). Sem dúvida um raciocínio demasiadamente simples para questionarmos o lugar (de suma importância) da responsabilidade moral e com ela temas complicados como a liberdade, a espontaneidade e a preocupação com o outro. O rir de si mesmo, por exemplo, quando é o resultado de uma percepção aguçada sobre si e o outro, sobre a falta de garantias e de certezas e a necessidade de cada um assumir por sua conta e risco as agruras do viver, provoca uma identificação (permite ao outro sentir-se um igual) ou seja, poder ficar a vontade com suas faltas, seus altos e baixos,temores, amores e dores. Claro que não podemos deixar de ter uma moralidade vigente a cada época que desfrute de um acordo coletivo. Mas não dá para calcular previamente quando podemos “transgredir” de forma positiva certas fronteiras. O que ontem era constrangedor hoje pode ser engraçado. E isso não deve ser visto como um passo atrás e sim como uma evolução e com ela novos desafios.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

De mãos dadas

Não conseguia pegar no sono. Aquele vazio insuportável lhe imobilizava a alma. Ninguém pode dormir se o “dia seguinte” não existe mais, não há nada agendado, nem as obrigações de praxe, nem algo novo ou prazeroso. Nada. O cérebro pensante e o coração pulsante estavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angustia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças. Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 42 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narravam este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores de perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo. Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão longeva e rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois de tantos anos juntos, a vida a dois fica quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre juntos ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se pareceriam com aquela senhora gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível  passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.

11desetembro.com

Todos temos lembranças de mortes ou historias de lutos importantes que trazem a marca de um rompimento com nossa reticencia em relação ao fato de que cedo ou tarde, um dia morreremos. Assim como o tema da sexualidade, ficamos desorientados quando precisamos explicar para uma criança o que significa a morte de alguém com quem ela já havia feito um vinculo amoroso. Tememos que, tal como nós, ela também venha a se sentir ameaçada por este  sentimento de se saber  a vida tão frágil, e por isso tentamos adiar seu contato com o real da morte, afim de não “perturbar” suas chances de construção de um mundo de sonhos e fantasias que delineiem um possível (e bom) futuro. Também é verdade que as lembranças ou vivencias em torno da morte de entes queridos são absolutamente pessoais. Buscando em minha memória estas lembranças posso reconhecer que as mortes importantes começaram a acontecer quando eu já era adolescente. Cavoucando a infância vivida em uma cidade do interior no seio de uma família católica, o dia de Finados era um feriado reverenciado pela população que acorria ao cemitério local. Mas longe de evocar cenas melancólicas ou pesadas, em minha memória essas manhãs eram ensolaradas e minha mãe se punha bonita e arrumada, buscava as flores previamente encomendadas em sua floricultura preferida e nos levava para ajuda-la na tarefa de enfeitar o túmulo onde seu pai e seu irmãozinho de 6 anos estavam enterrados. Havia satisfação na maneira como ela procurava uma harmonia estética para dispor as flores de modo a formar lindos arranjos nos inúmeros vasos ali existentes. Nas fotos, meu avô, seu pai, aparecia rindo simpaticamente. A de seu irmãozinho, mais amarelada, indicava um tempo bem mais remoto, quase mítico. As historias ali contadas sobre meu avô eram as melhores possíveis, alinhavadas por um contato amoroso e um reconhecimento de sua importância para a família. Não era raro ouvi-la lamentar (sem mágoas) o fato de termos sido privados da possibilidade de conhecê-lo e conviver com sua enorme “vitalidade”. A morte podia ser tema de um passado cujo resgate era quase indolor. Nesta ultima semana pudemos rever pela mídia as imagens de um 11 de setembro fatídico para o mundo todo, em que aviões se atiraram às duas torres mais imponentes do skylight nova-iorquino forçando seu desmoronamento e tirando a vida de um numero sem fim de pessoas. Imagens se fixaram nos rostos de desespero dos que assistiam impotentes, dos que  choravam copiosamente diante daquela tragédia absurda, dos familiares que se aproximavam perplexos e se punham angustiados de plantão a espera de noticias de seus entes queridos. Dez anos depois há inúmeras reportagens sobre estes mesmos familiares, cada um relatando sua historia, uma historia que a despeito de se passar pelo mesmo e terrível acontecimento, compõem os mais diferentes textos. Em sua obstinada missão de entender o funcionamento psíquico humano, em 1917, Freud escreveu um texto intitulado “Luto e melancolia” em que tentava mostrar como o luto seria uma tristeza reativa (e esperada) à perda de alguém querido (podendo ser também de um ideal ou algo importante), que afastava a pessoa de seu cotidiano normal e transformava temporariamente seu mundo em pobre e vazio. Mas também apontava como para outros, os mesmos fatos produziam melancolia (ou depressão), como se ao invés do seu entorno, o próprio sujeito passasse a se sentir incapaz de olhar o mundo e dota-lo de algum significado que pudesse conforta-lo. Sobre ele pesaria uma desesperança condenando-o a transitar nostalgicamente pelas cinzas do passado e impedindo-o de formular novos projetos. Longe de abordar a complexidade deste modo (penoso) de funcionar, não deixa de ser interessante ler estas historias e constatar como alguns podem encarar a contingencia do viver enquanto outros mergulham no espaço da melancolia.


domingo, 28 de agosto de 2011

Ping pong

Uma das dificuldades que brasileiros enfrentam ao passar a morar nos USA é a diferença com que os americanos encaram sua relação com os deveres e direitos de cidadãos. É comum alguns imigrantes usarem o jargão “fazer à moda brasileira” quando transgridem certas regras que ali são consideradas preciosas como atravessar as ruas sem utilizar as faixas e faróis para pedestres ou o contrário, dirigir sem respeitar estes pedestres ou quaisquer outros códigos de trânsito. O mesmo vale para o tempo de espera para ser atendido, ou de permanência em filas. Pensar sobre estas diferenças pode nos levar a um debate (interminável) sobre um tema que tem se tornado corriqueiro em nossos noticiários: os (des) caminhos da corrupção no Brasil. Basta acessar o tema no Google para perceber quão constante tem sido as denúncias de desrespeito pela legalidade, pelo Estado de direito e pela democracia em nosso país. E a cada vez que as falcatruas de governantes, parlamentares, juízes, promotores, empresários e policiais vem à tona, chovem textos na mídia de jornalistas e leitores indignados ou de acadêmicos e cientistas sociais que tentam analisar a “história” deste nosso “jeitinho” de burlar leis e normas ou manter a impunidade dos transgressores, na geléia geral brasileira. Claro que o tema é universal. Há estatísticas que calculam que a corrupção mundial envolva mais de um trilhão de dólares por ano. Mas é verdade que cada país tem o seu modo próprio de “ser corrupto”, de tratar “seus corruptos” ou  protestar contra eles, o que não quer dizer que isto não possa mudar. A Índia, por exemplo, tem seu ativista anticorrupção: Anna Hazare, 74anos,está em greve de fome e conseguiu levar milhões de pessoas de seu país a protestar e exigir leis anticorrupção. Há dois anos, em uma ação conjunta, os jornais britânicos resolveram "censurar" as manchetes e textos de suas primeiras páginas em protesto contra o fato dos membros do Parlamento terem vetado as informações disponíveis na internet sobre seus gastos na atividade parlamentar. É possível que aqui estes atos não façam sentido ou não tenham o mesmo impacto, mas pode ser que há 20 anos as chances de nossa sociedade pressionar setores públicos a agirem diante de denúncias graves fossem ainda menores. Quem sabe a quantidade de escândalos divulgados recentemente já seja uma alteração neste termômetro. Enquanto isso não acontece, ficamos tentando entender os caminhos do que parece ser uma apatia do povo diante de certas práticas tidas como moralmente inaceitáveis, mas cotidianamente toleradas. Os prejuízos são evidentes, sobretudo em termos de cultura política, já que prevalece a tese de que o mundo é dos espertos e de que as leis não são para todos. Não é difícil imaginar que neste quadro tanto a exclusão quanto a falta de perspectiva podem gerar descrença, ou pior, a violência aparentemente gratuita contra a “ordem” social. Quem sabe o Estado brasileiro ainda não consiga se livrar de um histórico e vicioso modo de gestão patrimonial quando decide intervir e explorar, repetindo infinitamente alguns tipos de ligação com a sociedade como o clientelismo. Sociedade que responde igualmente ávida por favores e privilégios. E assim ficamos todos, com nossas grandes "bocas" à espera de abocanhar algum, e sem uma cultura que valorize o papel e a responsabilidade de cada um pelo funcionamento social, algo que exigiria certo discernimento para a importância das delicadezas, das gentilezas, enfim das regras de uma boa e saudável convivência. E é claro, sem saber os custos justos dos deveres e as chances para negociar ou exigir os direitos.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Californianas II


Mesmo os que nunca estiveram nos USA já ouviram comentários ou puderam confirmar através de sua ilimitada indústria cinematográfica, as nuances de uma cultura que com exceção de alguns nichos diferenciados, segue sendo preferencialmente branca, cristã e conservadora, um dos fatores que propicia a formação de guetos em suas cidades, geralmente divididas em bairros especiais para negros, chineses, italianos, etc. Outra característica marcante desta cultura é uma crença quase cega na hegemonia dos caminhos da economia (e da política) de seu país, que durante anos esteve à frente no panorama mundial, exportando modelos e impondo métodos. Longe da intenção de se fazer uma crítica (ou mesmo uma análise) do american way of life, esta introdução pretende apenas refletir sobre certas “marcas” culturais. Ao viajar livremente pelas estradas americanas e visitar suas cidades e estados é difícil não perceber os vestígios de uma cultura homogeneizada, em que predominam as grandes redes de hotéis, restaurantes, lojas e supermercados sempre a exibir os mesmos produtos. O contraponto é uma imensa população de consumidores desta cultura. Por isso, ao visitar a Califórnia, em especial a Bay Area - uma extensa área ao redor da baía que banha cidades como São Francisco, Oakland, Berkeley, Sausalito, Palo Alto, Nappa Valley, etc - somos invadidos por um sentimento de surpresa. Um bom e envolvente sentimento de se estar em um pedaço do mundo em que a conjunção de certos fatores (geográficos, culturais, históricos e econômicos) altera e muito a cultura local. A região exibe uma beleza exuberante que combina águas, montanhas, praias, rochas, mas sua topografia é tão diversa quanto a população que ali vive. Para se ter uma idéia desta diversidade basta lembrar duas das mais badaladas e importantes universidades do país - com históricos diferentes -  Stanford e Berkeley- além do famoso Vale do Silício, ícone da tecnologia de ponta mundial ou o Nappa Valley, imenso produtor dos melhores vinhos do país. A pequena cidade de Berkeley, por exemplo, guarda com orgulho as marcas de seu passado de berço da contracultura, movimento que despertou gerações de jovens para a importância de sua militância política de reivindicar mudanças ou exigir reparações nas injustiças sociais. Mas na atualidade,se fosse possível escolher uma das dimensões das conseqüências desta história política e social da região,elegeria o termo “local”. Ou seja, ao contrário da cultura massificada que se observa em muitas regiões do país, na Bay Area cultua-se um modus vivendi que privilegia a cultura local. Talvez um dos exemplos mais significativos seja sua culinária e quem sabe a história de Alice Waters possa resumir estes rumos. Em plenos anos 70 na fervilhante Berkeley, na onda de um movimento hippie pela naturalização dos alimentos, Alice abre seu restaurante (Chez Parnisse) e contra a industrialização e homogeneização do consumo americano de comidas propõe uma cozinha que utilize somente alimentos orgânicos, frescos e locais. Rodeada por uma população considerada “alternativa” por suas crenças e costumes, este “estilo” se propaga e consegue tornar-se ao longo dos anos, uma marca não só da (boa) cozinha californiana, como da maneira como a economia alimentícia valoriza a produção local e investe pesado na agricultura sustentável. Para se ter uma idéia há redes locais de supermercados só de produtos orgânicos, que exibem lindas verduras, legumes, frutas além de grãos, sucos, pães, todos naturais e locais, fora os Farmers Markets (feiras de ruas) que vendem orgânicos, diretos de seus produtores. Acrescente-se a isso uma enorme população de asiáticos e latinos (em especial os mexicanos), muitos indianos, negros, alguns muçulmanos que convivem lado a lado com uma tradição de intelectuais liberais e críticos e uma bem-vinda população gay mundial: um verdadeiro melting pot. Claro que não estamos computando as dificuldades e os “restos” de qualquer forma de vida que exista pelo mundo afora. Mas é gratificante quando se podem observar certas “acomodações” interessantes entre o novo e o velho, o conservador e o ousado, as soluções criativas e os cuidados, em um país que preza o cumprimento de leis e normas sociais em favor da boa convivência. Na cola de uma visada para o futuro nada melhor do que experimentar esta verdadeira “salada étnica e cultural” em que a mistura valoriza as diferenças. Bon appetit!

domingo, 14 de agosto de 2011

Californianas I

Na edição da Revista Época do dia 7 de agosto há uma reportagem que questiona o grau de satisfação dos jovens com seus trabalhos e mostra que apesar do atual aquecimento da economia brasileira propiciar um aumento de oportunidades de empregos, há uma diferença entre a expectativa de um bom salário, promoções e status e a noção de “bem estar” (welfare) de cada um com seu trabalho. O que permeia o texto parece ser uma pergunta básica: é possível ser feliz no trabalho? Com várias consultas a especialistas no assunto, a matéria segue mostrando que a felicidade no trabalho existe quando anseios de diversos tipos (e não somente financeiros) são preenchidos pelas características da atividade realizada, ou seja, quando é possível para o sujeito se identificar com a natureza, o tema, o momento e o propósito de seu trabalho. O texto ainda pontua os fatores que podem obstruir e deixa receitas e dicas, mas seria preciso acrescentar que nem sempre é fácil para um jovem saber sobre seus anseios, assim como ter ferramentas para gerenciar sua própria carreira ou coragem e maturidade para  buscar  suas paixões no campo profissional, quando (e se) as conhece. Em geral as qualidades técnicas cada vez mais exigidas no mundo corporativo e as ofertas de bons salários para os mais competentes criam um mundo imaginário de carreiras promissoras, às vezes sem o real conhecimento sobre  os “altos custos” de dedicação ou de submissão à exigências de todos os tipos. Sabemos quão difícil é para todos validar a si e os seus recursos perante os outros.Por outro lado, falar sobre o “novo mundo” do trabalho exige que se analisem as transformações ocorridas nas últimas décadas e se assinale o quanto o crescimento do poder do consumidor e a importância das redes sociais contribuíram para o que hoje é considerado um grande valor: a qualidade ou  aquilo que fará com que o produto ou serviço oferecido seja visto como diferenciado do resto. Isto permitiu a abertura de um campo em que a criatividade e a inovação pudessem ser consideradas o motor e as pessoas o ponto de partida e de chegada das empresas, que por este motivo, passaram a tentar mudar seus planos de gestão tradicional, investindo em novos modelos principalmente do que hoje se chama gestão de pessoas. Em visita recente à Califórnia, pude conhecer uma empresa que tem sido considerada um dos melhores lugares do mundo para se trabalhar. Com 6.500 empregados nos Estados Unidos (sem contar os que vivem em outros países, inclusive no Brasil) a Google, que se encontra sediada no conhecido Vale do Silício e que revolucionou os sistemas de busca na internet, também se tornou em pouco tempo a companhia de mídia com maior valor de mercado nas bolsas americanas. Minha curiosidade, porém, passava pelo fato de ser uma empresa fundada e mantida toda ela por jovens desta geração. Mais, por jovens fissurados em TI (tecnologia da informação) e incentivados a contribuírem com suas idéias, não só relativas ao trabalho, mas ao próprio funcionamento da empresa. Esbanjando uma estética colorida (há bicicletas espalhadas enfrente aos blocos para a circulação das pessoas) chamou minha atenção a liberdade das vestimentas, mas principalmente a liberdade de movimentação entre blocos ou ambientes: há um permanente vai e vem de grupos de jovens (de etnias diferentes), não há horários restritos para o uso das inúmeras cafeterias gratuitas (com vários tipos de cereais, doces, castanhas, iogurtes, cenouras, frutas frescas, sucos naturais), assim como há diferentes opções de cozinhas nos vários restaurantes (também gratuitos). No horário do almoço  as mesas espalhadas pelos espaços entre blocos enchem os olhos pelo colorido dos jovens que ali se sentam. Integradas ao ambiente de trabalho é fácil ser surpreendido por mesas de sinuca, pingue-pongue, pebolim ou grupos jogando videogames. As seleções são participativas e cada um é convidado a dar seu parecer (positivo ou não) sobre o trabalho que os colegas estão desenvolvendo.Tantas regalias e boas novas levaram-me a perguntar à jovem que nos guiava se ela acreditava naquele modelo Google, ou seja, se também para ela ali seria um dos melhores lugares para se trabalhar. Ela nos contou que havia sim uma preocupação importante com o bem estar dos funcionários e um incentivo interessante para o convívio amistoso e de trocas em diversas dimensões. Mas confessou que há dois anos alocada  na área de advocacia, a qual pretendia inicialmente desenvolver com cursos extras, havia descoberto que sua antiga paixão - tornar-se enfermeira- precisava ser revista com mais carinho. Estava decidida a ir atrás deste sonho. Pensei que na verdade não há garantias - por parte de empresa alguma - de que ali você será finalmente feliz. Também não há garantias por parte dos funcionários de que eles serão eternamente gratos ou fisgados por quaisquer benefícios oferecidos pelas empresas. Mas é bom saber que em alguns lugares, empresa e trabalhador podem conviver em um ambiente de trocas de responsabilidades e compromissos, um lugar em que a liberdade seja um valor para ambos.

Ecos de uma morte anunciada


Não teria sido necessário ler os incontáveis textos escritos no pós morte de Amy Winehouse. Bastava escutar os comentários: homens e mulheres, jovens, adultos e velhos, todos tinham algo a dizer sobre esta moça inglesa, judia e tão nova, cuja linda voz ecoava longe, mas não parecia se importar em ser noticia permanente da mídia que explora o lado “B” da vida alheia, no seu caso, o lado negro e árido dos que tentam sobreviver às duras penas, anestesiando-se até a morte, já que o que chamamos de “vida” parece- lhes acenar com demandas impossíveis de serem cumpridas. Houve os que se chocaram e lamentaram a rapidez com que esta menina se foi, os que confessaram ser sua morte inevitável diante das idas e vindas do uso de álcool e drogas, os que fizeram piada de sua vida desregrada e os que se aproveitaram para usá-la como exemplo do que não se deve ser ou fazer. Assim também eram as imagens divulgadas sobre sua vida: ora a mocinha provinciana que frequentava pubs londrinos com amigos e ressuscitava a soul music com sua voz poderosa, ora a cantora famosa que fazia muitos de seus shows totalmente alcoolizada ou drogada. Algum consenso? Talvez o adjetivo excessivo, para o bem e para o mal.
Figura alternativa, com dezenas de tatuagens e penteados exagerados, Amy mostrava um talento exuberante ao inundar os ouvidos dos loucos por uma boa musica e surpreendia pela indiferença com que encarava a exploração da mídia sobre sua vida errante. Deixava-se fotografar em condições físicas precárias, às vezes exibindo seu corpo emagrecido ou assumindo um ar de franca rebeldia com cigarros na boca, copos e garrafas na mão. Resta deixar de lado os voyeurs de plantão, e acompanhar seus inúmeros fãs que souberam homenageá-la, respeitando seu universo controverso cujo percurso fazia o roteiro oposto da cartilha que todos seguimos a fim de alongarmos cada vez mais nossas vidas. Perplexos, não desejavam sua morte e exibiram uma comoção sincera quem sabe por acompanharem de perto o tormento de sua vida exposto na maior parte de suas  composições. Muitos cantaram no mesmo tom de sua dor ou de seus pedidos de amor. Outros se perguntaram mais de uma vez se sua música poderia salvá-la de seu inferno. Quem sabe desconfiassem que suas canções tentavam de forma intuitiva (e desesperada) dar  sentido ao que em sua vida  lhe parecia sem sentido.

sábado, 13 de agosto de 2011

Quem quer casar?

Percebia-se aflito. A data meio temida e meio ansiada em que o martelo dos 30 anos bateria sem voltas já havia passado, mas não a sua agonia. Como as pessoas o viam? O que elas esperavam dele agora? Será que do lado de “fora” seria possível perceber o descompasso entre sua imagem de homem de negócios - terno, camisa e gravatas impecáveis – e aquela sensação desesperadora de menino desprotegido? Se a vida ganhava sentido pelo futuro que cada um traçava para si, porque o dele lhe parecia escrito ainda no livro infantil? Tinha acabado de trocar seu carro por outro mais novo e mais possante e pago um bom bocado para transformar seu interior em uma espécie de estúdio musical com uma acústica impecável. Suas milhas não haviam se transformado em passagens porque ainda não conseguia se decidir entre Amsterdã ou Berlim para as próximas férias. Este item merecia uma boa pesquisa na internet o que lhe demandaria um certo tempo. No entanto, o coro dos “adultos”- neste que todos tratavam como sendo o inicio do segundo tempo - era categórico. Estava na hora de pensar em se casar! Não que esta questão tivesse lhe passado despercebida, até porque nos últimos dois anos o numero dos amigos casados engrossara consideravelmente. Mas todas as vezes que tentara se imaginar vivendo uma vida mais ou menos parecida com a deles o chão lhe faltava, a respiração acelerava e um súbito sentimento de pânico lhe envolvia. Sentia-se despreparado para ingressar neste complexo e assustador “mundo adulto”. Seu namoro, ainda que já acumulasse uns pares de anos, seguia uma rotina agradável, mas principalmente suportável. Já o casamento acenava-lhe uma passagem definitiva, sem volta. Ele pressentia serem ventos internos, algo que dizia respeito a si e aos recursos que pareciam lhe faltar para administrar tantas responsabilidades. Mais do que nunca o significado da palavra amadurecimento lhe escapava e seu processo lhe parecia inalcançável. Entre a angustia paralizadora que a visão deste futuro oferecia e o torpor aparentemente tranqüilizador de seu cotidiano seria preciso “construir” um novo espaço. Ele estava certo disso. Mas ficaria para depois. Acabara de receber noticias interessantes sobre a vida noturna de Berlim.