quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Memoria dissolvida

Mas porque precisava ser desta maneira? A vida estaria lhe dando uma chance ou lhe punindo? Vitória sentia-se confusa, justo ela, tão intelectualizada, sempre rápida no gatilho, a dar palpites e sugestões ou a resolver problemas cabeludos (seus e de outros). A família- todos do interior de Minas- sentia orgulho desta menina e não lhe poupava elogios. Fazia tempo que ela havia se mudado para o Rio de Janeiro atrás de seus sonhos e sim... podia dizer sem titubear que muitos deles se realizaram. De jornalista famosa passara a cineasta, algo que imaginara desde a sua infância, quando “dirigia” a turma da rua improvisando cenários e vestimentas. Era ela quem escrevia o roteiro, mas costumava incentivar todos a escolherem quem seria o melhor ator para cada papel. Esta estratégia não só evitava os conflitos advindos dos ciúmes e das rivalidades, como conferia maior legitimidade aos eleitos. Os “estúdios” de seu Cinemoção ficavam no enorme quintal de sua casa e seus pais jamais se opuseram, ao contrário, até palpitavam e algumas vezes ajudavam na composição dos cenários. Sua mãe, ah... ela era o máximo! Que saudades daquele olhar interessado, investido de energia. Tinha certeza que aquela sua paixão pela vida a alimentara e a movera o tempo todo. Por isso não encontrava palavras para descrever a “cena” do cotidiano de um portador de Alzeimer, este sujeito que rompe os fios de sua memória. Consultas ao Google, aos neurocientistas, aos familiares de outros atingidos por esta doença não puderam responder aquela pergunta que insistia: por quê? Como é possível que ainda saudável, resultados de exames apontando a saúde de uma “jovem”, sua mãe havia abandonado sua bem instalada identidade, sua mais valiosa morada? Porque ela havia preferido este não lugar, sem história, um caminho sem volta, parecendo não se importar em perder-se de si mesmo? Tal como um “filme”, Vitoria tentava achar o fio que pudesse dar sentido a este quadro dramático. Era muito difícil estar ali ao seu lado, ao lado daquele corpo tão conhecido e tão querido e perceber que em algum lugar dele havia um “ralo” sugador de histórias passadas, das quais ela se sentia parte. História de uma mulher e mãe tão sabida, centro nervoso da casa, daquelas que levavam a palavra aonde ainda não existia. Que sabia tecer devagarinho as asas de seus filhos e separar-se deles na hora certa. Todos voaram. Vitoria se surpreendia ao perceber, no entanto, quanto ela se mantinha presente na ausência. Saber que ela existia, que estaria ali para recebê-la, para atender seus telefonemas a qualquer hora e dia, fazia tanta diferença! Não tinha se preparado para perder esta mãe. Havia reservado estes dias para estar com ela, ficar ali ao seu lado, olhando com atenção cada menção daquele corpo às vezes acenando com alguma possibilidade de resgate de seu eu, às vezes alheia a tudo e a todos. Pretendia não adiar este olhar para o passado, não deixar para traz esta história. Queria ser uma espécie de memoria-prótese de sua mãe. Quantas vezes mencionara aos amigos quão “especial” era ela, e como admirava  sua capacidade de conhecer a si e aos outros, fato que usava para intervir com delicadeza ao menor sinal de desamparo ou pedido de socorro. Uma máquina de compor, organizar, traduzir, interpretar. Que mundo estranho ela habitava agora? Aos 78 anos, no auge da “velhice”, o conforto e o refúgio dos idosos costuma ser suas lembranças do passado. Alguns com tons mais melancólicos pelo que não puderam realizar, outros a cotejar o passado e o presente com um olhar mais justo. Tantos filmes são baseados nas memórias de prazeres e descobertas de alguém, histórias que nos fazem chorar, arrepiar, acelerar nossos corações. Ali, em silencio, de mãos dadas, Vitoria imaginou uma das cenas de seu próximo filme, as duas, mãe e filha, conversando sobre a dor da morte de seu pai. Vitoria a lhe garantir a possibilidade de ela inventar novos laços para ocupar o lugar dos perdidos. A impedir que sua memória-história se perdesse e com ela a sua paixão pela vida.  

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