segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Este seu olhar

Sentia-se cética demais para levar adiante aquele papo sobre “mau olhado”. Resolveu dar uma volta, beber um copo de água, mas aquele mal estar não lhe deixava. Se desse corda aos seus impulsos voltaria àquela roda de conversas e endossaria o coro dos que já haviam se sentido vítima do famigerado olho gordo. Tantas histórias. Mas mesmo afastada dali não podia evitar que algumas imagens de pessoas viessem à sua memória. (Suspiro). Não. Sua autocrítica não lhe permitiria arremessar a responsabilidade de seus infortúnios a outros, ainda que algumas destas figuras desenterradas de suas lembranças pudessem desfrutar de certa unanimidade quanto ao adjetivo (amedrontador?) de invejoso. Não devia ser por acaso que a inveja figurava entre os sete pecados capitais e muitos de seus portadores fossem personagens famosos na historia da literatura. De Iago (da peça de Shakespeare) que invadido por este “líquido mortífero” destrói a vida de Otelo ao leva-lo a matar injustamente sua amada Desdêmona e depois enlouquecido de remorso, a si próprio, à Rainha Má, cujo espelho não lhe deixa esquecer que Branca de Neve existe e é portadora de tudo o que ela deseja ter/ser, ou ainda o trio da Madrasta e suas duas filhas, que tentam impedir a bela Cinderela de comparecer ao baile promovido pelos reis à caça de uma esposa para o príncipe, e depois, de experimentar o sapatinho de cristal que lhe pertence. Sábias histórias infantis que permitem a nós crianças identificarmos nossos traços mais vis ainda que seja para imagina-los bem longe de nossas mentes, habitando apenas aqueles seres perversos ou asquerosos. Sentir inveja dói. Perceber-se alvo dela é ao mesmo tempo enlouquecedor e paralisador. E é por “conhecermos” quão devastador pode ser este sentimento que atribuímos força ao “olhar” às nossas costas, pronto a nos devorar, arrancar nossas entranhas, se apossar de nós. (Ufa!). O desconforto aumenta, sente-se inquieta com estes pensamentos e claramente dividida quanto ao rumo de suas digressões. De um lado tem ganas de dar vazão a estas rememorações, voltar à infância, não evitar a percepção de sua própria inveja, esta emoção viva e marcante, de cor rubra, que só pode ser incômoda quando somos alvo, porque  sua saliva quente e raivosa nos é familiar. Quantas vezes se é surpreendido por este insuportável ruído ao constatar que uma outra pessoa consegue ser ou ter algo que se deseja ou que se imagina que perdeu? O ideal seria poder fazer uma espécie de acordo com esta luta interna, ao sustentar as lembranças da invasão sorrateira da inveja em seu ser, mas não mais deixar de lado a experiência única de saber-se personagem passivo do “olhar” faminto e raivoso da inveja de um outro. Afinal a força deste olhar malévolo e devastador (mesmo quando seu portador não o reconhece) acompanha a própria historia da humanidade e desde os tempos mais remotos a sabedoria popular se encarregou de inventar medidas protetoras, algumas universais. Quem não conhece a figura das benzedeiras de “quebranto” - aquele estado de falta de vontade  e esmorecimento geral que toma conta do corpo principalmente das crianças indefesas expostas ao olhar dos invejosos ou mal-intencionados? Ou a figa, um amuleto muito utilizado para afastar seus efeitos? Quando ainda não sabíamos que a inveja era tão humana, quase parte de nosso DNA, era mais fácil imagina-la como uma “emoção má” e passível de ser eliminada. Ser benzida por uma curandeira podia trazer um alívio contra as forças invisíveis do mal dos outros. Duro mesmo parecia ser conviver com o saber-se passível de sentir  a mais venenosa das emoções. E era isso que iria dividir com a turma. Que atirasse a primeira pedra quem nunca sofreu deste mal.

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