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sexta-feira, 6 de março de 2020

Psicanálise e Cinema : Cisne Negro


Psicanálise e Cinema – Cisne Negro

Gisela Haddad

Não se assiste ao filme Cisne Negro impunemente. Lembro-me de ter ficado com uma sensação perturbadora durante alguns dias. No momento em que escrevo este texto, já com alguma distancia no tempo, torna-se mais fácil analisar o impacto que o drama de Nina exerce sobre nós. Não por acaso ele causou tanto frisson na área psi, que produziu muitos textos espalhados pelas redes sociais.
O diretor, Darren Aronofsky - conhecido por privilegiar análises psicológicas de seus personagens - nos presentou, entre outras coisas, com a apresentação de muitas cenas ilustrativas dos sintomas típicos de uma paranóia. Mas pensar neste filme como um caso clínico é reduzir sua beleza e seu valor estético/artístico e mais, é deixar de lado o fato de ele ser uma produção cultural e por isso ser uma leitura atualizada de nossa condição humana, o que pode enriquecer nosso debate sobre ele. É possível, por exemplo, analisar os diferentes lugares que a cultura reservou e reserva para a loucura, a maneira como a loucura se enlaça com a arte na história, ou ainda em como a loucura impõe este “estranho/familiar” que em geral provoca uma sensação de desconforto, mal estar e estranhamento. Foi assim que a maioria das pessoas que viram o filme descreveram seus sentimentos e é bem capaz que este descompasso situe-se na exigência que sua narrativa impõe a cada um para que abra mão de suas referências - se puder – para entrar em outra lógica, sem tentar enquadrá-la em seus parâmetros. A loucura, tão comum e frequente na cultura, suscita sentimentos intensos de repulsa, de temor e às vezes de idealização.  
Cisne Negro é também a encenação de uma das peças mais importantes da história do ballet, uma releitura moderna do clássico dos clássicos, “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky. “O Lago dos Cisnes" é mais do que a história de um cisne, ou de um papel para uma bailarina. Conta a história de um príncipe, Siegfried, que, coagido pela mãe a se casar com uma cortesã, se apaixona, ao invés, por uma mulher-cisne, Odette, a princesa transformada em cisne branco que só retornará à vida humana pelo amor sincero de um príncipe. Numa noite de luar com o céu encoberto, Siegfried confunde-a com Odile, a filha do feiticeiro Rothbart, que tentara seduzi-lo no baile e, enfeitiçado, jura-lhe amor eterno, condenando assim Odette ao suicídio e à morte. No início interpretado por duas bailarinas, com o tempo alguns coreógrafos perceberam que haveria uma maior coerência com a dramaturgia da peça se fosse  um mesmo corpo encenando esta divisão. Ou seja, é arte como expressão legítima do psiquismo humano ou de sua compreensão no contexto histórico. Exaustivamente encenada nestes últimos dois séculos, O Lago dos Cisnes parece exercer seu fascínio justamente por este desafio imposto à prima ballerina que precisa tanto encarnar o cisne branco, que obedece a um rigor e a um controle extraordinários, quanto o cisne negro, quase uma catarse deste controle. Para o cisne branco, símbolo do amor ideal e puro, o bater de asas são gestos de proteção, mais instintivos, o que exige movimentos mais lentos e suaves. Já para o cisne negro os movimentos são mais rápidos, sensuais e libidinosos. Odette, o cisne branco, jamais encara o príncipe Siegfred enquanto que Odile está sempre a seduzi-lo. Tchaikovsky aproveitou-se da mitologia local em que o cisne representa a feminilidade, mas compõe uma história trágica. Talvez porque vivesse em uma época cujos valores herdeiros da Revolução Francesa (Iluminismo) prometiam liberdade e autonomia, mas na verdade limitavam a vida adulta ao trabalho, ao exército e ao casamento. A vida real era asfixiante, a sexualidade civilizada e a homossexualidade inaceitável. O cisne negro seria uma tentativa de  burlar esta moral burguesa, sem sucesso. O casamento entre o príncipe a princesa acaba em morte aos dois. O filme do diretor Darren Aronofsky abre com imagens de Nina interpretando o Cisne Branco juntamente com o príncipe Siegfried e o feiticeiro/demônio Rothbarth. A câmera capta seus movimentos suaves e precisos, mas logo ficamos sabendo se tratar de um sonho. O sonho de Nina que almeja ardentemente ser a primeira bailarina do Ballet de Nova York. Seu rosto parece satisfeito ao acordar. Sua vida tem um sentido. Ela se levanta e inicia sua jornada diária. Na cena em que o diretor anuncia que estará selecionando a rainha cisne, ele informa sobre a versão escolhida, em que a menina virginal, pura e doce está presa no corpo de um cisne. Ela quer a liberdade, mas só o verdadeiro amor pode quebrar o feitiço. Seu desejo é quase concedido sob a forma de um príncipe. Mas, antes que ele possa declarar seu amor, o gêmeo lascivo, o Cisne Negro, engana e o seduz. Devastado, o Cisne Branco pula de um penhasco, matando-se e, na morte, encontra a liberdade. A partir daí o filme induz cada espectador a ser refém da perspectiva de Nina na imersão da conquista do que parece ser a sua (e de sua mãe) única razão de viver: ser a prima ballerina. Embarcamos em uma viagem às vezes emocionante, outras aterrorizante, à sua psique. O resultado é uma sensação mista entre o sufoco, a aflição e o desconforto. Para muitos uma sensação de horror. Para poucos, o da compaixão. Ficamos aprisionados em seu corpo, ao mesmo tempo em que este é testemunha do surto psicótico de seu psiquismo. Assim  como Nina, não conseguimos mais distinguir delírio de realidade. O diretor Aronofsky consegue, de forma genial, criar um paralelo entre a história da bailarina Nina e a saga que ela interpreta. Cada personagem - a mãe, o diretor,  Lily, e até mesmo Beth, ex- prima donna deste corpo de ballet que acaba se suicidando - ocupa um lugar no imaginário de Nina e passam a ser protagonistas de sua trama paranóica.
Nina é escolhida com ressalvas pelo diretor. Ela é tecnicamente perfeita para encarnar o Cisne Branco: silencioso, doce, contido. Por isso, ao escolhê-la, o diretor deixa claro que ela precisará despertar seu Cisne Negro, deixar vir à tona a agressividade e o erotismo. Mas ele está longe de perceber o significado desta demanda que lhe faz. Talvez se ele se interessasse em acompanhá-la a sua casa, ao seu quarto cor de rosa mantido com uma decoração infantil, à sua rotina diária de horários e dietas rígidas sob os cuidados de uma mãe que se dedica de forma absoluta à realização pela filha, de seu frustrado sonho de ser uma grande bailarina. Se ele pudesse assistir às cenas de seu cotidiano, quem sabe haveria um destino diferente para aquela menina. Mas desde o início o filme já anuncia o fim trágico tal e qual as grandes tragédias gregas em que os heróis nada podem fazer contra o que já lhes está predestinado. Ter que ocupar o lugar da Rainha Cisne desencadeará sua crise. Ao defrontar-se com as exigências que esta experiência lhe coloca, ela não poderá suportar suas insuficiências ou responder aos impasses por não ter como responder, por não ter  referências ou um saber e assim seu mundo começa a ruir e sua resposta é o delírio. Até então sustentada por uma suplência que a aderência ao desejo de sua mãe lhe proporcionava e submetida às certezas maternas, Nina podia viver sem a dúvida ou algum enigma a respeito de si. Mas agora é ao diretor que ela deve se submeter e responder aos seus pedidos, alguém que lhe impõe questões difíceis, confronta-a com o real do sexo, que ela está longe de poder digerir ou suportar. Reduzida à condição de objeto e vítima de seu diretor, é invadida por suas próprias pulsões, perseguida por incessantes demandas imaginárias. O delírio é uma produção de defesa contra o extermínio subjetivo. É uma espécie de construção, uma tentativa de ordenar, dar algum sentido àquele mundo que a circunda e as relações com aquelas pessoas. É o delírio  que lhe permite continuar a viver a bailarina , embora a um custo altíssimo.
Fosse ela neurótica, poderia se questionar se o diretor a achava mesmo especial, desconfiar se ele estaria tramando algo, duvidar se a colega rival a amava ou estava a fim de ferra-la. Mas para Nina não há chances de dúvidas. Ela precisa de certezas a respeito de si e dos demais. Resta-lhe ser a perseguida. Sua experiência é da ordem da certeza, é plena, é absoluta. Ela “sabe” que a conquista do papel principal está em perigo graças às más intenções de Lilly, sua rival, que além de seduzi-la também seduziu seu diretor, que por estar apaixonado, não hesitará em substituí-la por Lilly. O delírio é a  tentativa desesperada dela reconstruir seu mundo espatifado, uma tentativa de saída da crise já que  através dele ela pode obter uma significação subjetiva para si, uma história na qual poderá se incluir e se contar. Sua vida resume-se agora a este trabalho de interpretação destas situações enigmáticas dirigidas a ela, as quais ela só pode responder por meio desta construção. São relações de força, não dialetizáveis, de um mundo sem equívocos, sem contingência e de uma sexualidade sem tropeços. Só nos resta acompanhá-la nesta outra lógica, e vivermos seu aprisionamento até a morte.
No final testemunhamos mais uma vez que o insuportável suscitado pela loucura é o que ela revela de nós mesmos, aquilo que não queremos saber, aquilo que  queremos manter  oculto, reprimido.  Ela nos evoca a fragilidade de nossa própria significação mostrando que ela não está livre de dúvida ou de questionamento, que somos órfãos dos deuses. Nos lembra que sem esta ficção que construímos sobre quem somos, podemos ficar  reduzidos ao nosso próprio corpo. Que a vida não tem nenhum sentido a priori, e que é sobre esse fundo de não sentido que às duras penas construímos um sentido para nossa existência.
Nina circula de modo diferente nas significações da cultura, possui outra escala de referências e valores. Sem  esta “estrada principal”, todas as estradas, ou seja, as avenidas, ruas e ruelas, se equivalem.
É muito difícil conviver com a alteridade que a loucura provoca, por isso existem poucas pessoas dispostas a isso, e menos ainda são as capacitadas para um convívio construtivo. Se há algo que revoluciona nossa concepção de sujeito, mesmo a do sujeito neurótico, é a experiência com a psicose. Por isso para acompanhar uma busca de significação de um psicótico é necessário uma paixão pela variedade das significações humanas. O psicótico reinventa o mundo, cria suas próprias regras, constrói associações inusitadas e sentidos inesperados. Suas palavras são preto no branco, são sérias, decisivas e precisam de respostas muito bem pesadas e pensadas. Sua vida é sempre por um fio e aquilo que ele constrói às duras penas por toda a vida pode desmoronar em um minuto.
Na psicose o acesso ao simbólico - este legado que nos possibilita fazer parte de uma história, ter uma origem, um passado que nos antecede, um mundo que podemos compartilhar com suas leis, regras e normas – está vetado. Se nenhum significante consegue substituir o significante do desejo materno, a lógica simbólica se organiza de outra forma, assim como a realidade psíquica do sujeito. Ele pode ficar assujeitado a uma relação primitiva com a mãe e se tornar o único objeto de desejo dela, provavelmente porque a mãe imaginou- o como alguém que pudesse satisfazê-la por completo. Sem poder ser um outro diferente da mãe, institui-se entre eles uma relação fusional, sem espaços para mediadores, um “mal entendido” trágico e fascinante que obstaculiza e destitui qualquer terceiro. Muitas vezes a mãe cria suas próprias leis, que diferem da lei compartilhada pela cultura. Esta é nossa Nina.

 Sorocaba - Maio de 2011

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Sobre La Luna, de Bertolucci

Sobre La Luna, de Bertolucci

Gisela Haddad

Se há algo que não se pode negar deste filme é que ele não seja ousado. E como toda ousadia tem seu preço, ao buscar pelos blogs os comentários de pessoas que o assistiram conta-se nos dedos os que conseguem algum distanciamento das cenas de incesto. Em geral elas provocam um enorme desconforto e suscitam críticas desfavoráveis. Ou então são apontadas como corajosas pela quebra de tabus ou pelas tentativas de desmistificar o tema da sexualidade humana. Na locadora, diante de minha pergunta sobre o filme, o rapaz  respondeu com outra pergunta: aquele que tem cenas de incesto entre uma mãe e seu filho? O fato é que após 32 anos de sua estréia, o filme continua controverso, atual e provoca as mesmas celeumas.  Bertolucci costuma ser generoso ao falar sobre seus filmes, sobre as razões da escolha de seus temas, e sobre o papel do cinema em sua vida, praticamente uma continuação de sua poesia, ele mesmo filho de um poeta. Em entrevista, ele conta que um disparador para a realização deste filme foi uma recordação pessoal reproduzida no filme, numa das imagens do prólogo, em que ele, aos dois ou três anos, está sentado numa cesta presa ao guidão da bicicleta e ao olhar o rosto de sua mãe vê a lua no céu por trás dela. Era a partir desta lembrança “viva” que ele pretendia ao desenrolar o roteiro, que este pudesse fazê-lo compreender essa associação entre o rosto da mãe e a lua. Na mitologia Luna é o nome da deusa romana da Lua, equivalente a deusa grega Selene, irmã de Helios, o Sol e de Eos, a Alvorada. Protetora dos feiticeiros e magos, ela dirigia no céu um carro puxado por dois cavalos e exercia uma poderosa influência sobre os que faziam encantamentos de amor. 
Na poesia de Bertolucci, a lua, a mãe e a voz vão ser os representantes do inconsciente, do feminino e do primitivo. Bertolucci escolhe uma cantora de ópera para interpretar uma mãe incestuosa e a lua, como “guia” para permear a tragédia do labirinto edípico através da voz. Ainda no prólogo, o bebê está à mercê dos cuidados da mãe e é bastante expressiva a sua reação de desconforto quando ela coloca mel em sua boca. Nas palavras do diretor, “o mel, como o amor materno, é doce demais, um doce que pode ser excessivo e fazer engasgar a criança”. Ainda no prólogo, a cena dos três, pai, mãe e bebê tem tudo para ser edílica, com a paisagem mediterrânea, o sol, a música, mas Bertolucci privilegia o rosto da criança e sua aflição e para nós espectadores, sobra violência ao invés prazer. Também na cena em que Caterina (a mãe) põe um disco e convida Giuseppe (o pai) para dançar twist, ela interrompe e ignora a sogra, que estava tocando piano. A força desta cena será recuperada pela própria Caterina quando ela consegue perdoar Giuseppe por imaginar que ele ama mais a mãe do que ela, e com isso promover o reencontro do pai e do filho, abrindo novas vias de vida para Joe.
Ainda pelas palavras de Bertolucci, é um filme sobre os laços que movem, puxam e torturam os personagens. Podemos acrescentar que ele privilegia a ambivalência destes laços, dando força maior aos seus enganos. Douglas (o padrasto) protege e afasta Joe. Por seu lado Joe tenta separar o casal ao atrair um ou outro para si e conseguir a exclusividade. Caterina movimenta-se entre os dois homens, mas está totalmente absorta em seus interesses profissionais. É o choque vivido pela descoberta do vício do filho que desencadeará a descida aos infernos de sua condição de mãe, a errância de suas escolhas desesperadas, e o lento caminho em direção a alguma responsabilidade pelo destino de seu filho, de suas alternativas  como promotora de algum futuro possível a ele, ao devolver parte de sua história.
As cenas incestuosas entre mãe e filho não ficam sem um lugar. Apesar do desconforto que causa a todos nós (voltaremos a falar sobre isso depois) elas são parte deste “inferno” que ambos estão vivendo. A maternidade, a paternidade e a filiação são determinadas por critérios múltiplos, entre os quais predomina a dimensão simbólica, portanto, essas determinações não podem ser reduzidas ao critério biogenético.Embora quase todos aqui sabem que o tabu do incesto está na base da constituição da cultura por sua economia de troca de bens e de mulheres que funda a vida simbólica e social, para a psicanálise a interdição do incesto existe para barrar o excesso da pulsão que de outra forma tornaria insustentável a manutenção da cultura. Para Freud a proibição se origina menos pelo horror inspirado pelo incesto, e mais pelo desejo que ele suscita, lembrando com isso o poder de coerção que a sexualidade humana tem sobre a vida psíquica. O incesto é de fato mobilizador de fantasias e atos. E podemos dizer que sua força tem uma origem para todos. Desde o final da gravidez a voz e a palavra materna são “ouvidas” pelo feto e o que se passa entre os corpos faz da mãe uma estrutura afetiva antes de ser uma estrutura de parentesco. Portanto é sobre esta tentação incestuosa que se necessita de uma lei que interdite sua atuação. Isto porque embora necessária ao bebê, cabe à mãe renunciar a esta fusão com seu bebê, ao permitir a introdução da lei seja pelo pai, seja pelas vicissitudes da vida. Por outro lado, essa “construção” do incesto, mesmo sendo sexual em si, não adquire qualquer significação sexual consciente para a mãe, tanto que a cultura barra mais o desejo do pai, impelindo-o a ser o portador da lei e não o seu violador. Neste sentido a problemática do incesto sob o ponto de vista psicanalítico, é esta relação entre o corpo pulsional e a linguagem, o simbólico e o ato de nomear que está além do orgânico. A nomeação do ato incestuoso é que vai concretizá-lo como transgressivo e sua incidência depende de inúmeros fatores. Por exemplo, o significado que o filho toma em cada caso, a possibilidade de uma inserção na família no que diz respeito à filiação, às condições psíquicas dos genitores de poderem acolher esse desejo sem que esteja vinculado a um “que nada mude”- o que colocaria a criança num lugar de múltiplas impossibilidades, desde a falta de autonomia no registro dos pensamentos, impedindo-a de conhecer sua origem e de poder projetar no futuro suas referências identificatórias.
Freud diz que os primeiros desejos sexuais humanos são sempre de natureza incestuosa e que seu renascimento ou insuficiente recalcamento forma o núcleo de toda neurose.
É no processo de humanização que a proibição do incesto atua, estabelecendo lugares hierárquicos nos agrupamentos e nas gerações, permitindo o pertencimento familiar e o consequente processo de narcisização da criança pelos pais, para depois ter a possibilidade de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos genitores e se constituir como sujeito.
No filme há cenas de ternura entre os pais, a mãe e o filho. Mas quando sobra mãe e filho há uma mistura de amor-paixão-ódio. As paixões parricidas e incestuosas próprias da infância e da pré-adolescência são em geral esquecidas na idade adulta. Várias cenas trazem este sentimento de nojo de Joe em relação aos modos da mãe, comendo, bebendo ou se divertindo. A vontade de ser autônomo livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado. No filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada. Talvez Caterina não fosse o modelo ideal de mãe ou quem sabe nem quisesse muito sê-lo. Mas ela tenta se virar com isso.

Debate sobre o filme La Luna de Bertolucci realizado no CEP (Centro de Estudos de Psicanálise) a convite de Karin de Paula /2012




domingo, 11 de junho de 2017

Debate Psicanálise e Cinema - Cisne Negro

Debate Psicanálise e Cinema – Cisne Negro

Gisela Haddad

Não se assiste ao filme Cisne Negro impunemente. Lembro-me de ter ficado com uma sensação perturbadora durante alguns dias. No momento em que escrevo este texto, já com alguma distancia no tempo, torna-se mais fácil analisar o impacto que o drama de Nina exerce sobre nós. Não por acaso ele causou tanto frisson na área psi, que produziu muitos textos espalhados pelas redes sociais.
O diretor, Darren Aronofsky - conhecido por privilegiar análises psicológicas de seus personagens - nos presentou, entre outras coisas, com a apresentação de muitas cenas ilustrativas dos sintomas típicos de uma paranóia. Mas pensar neste filme como um caso clínico é reduzir sua beleza e seu valor estético/artístico e mais, é deixar de lado o fato de ele ser uma produção cultural e por isso ser uma leitura atualizada de nossa condição humana, o que pode enriquecer nosso debate sobre ele. É possível, por exemplo, analisar os diferentes lugares que a cultura reservou e reserva para a loucura, a maneira como a loucura se enlaça com a arte na história, ou ainda em como a loucura impõe este “estranho/familiar” que em geral provoca uma sensação de desconforto, mal estar e estranhamento. Foi assim que a maioria das pessoas que viram o filme descreveram seus sentimentos e é bem capaz que este descompasso situe-se na exigência que sua narrativa impõe a cada um para que abra mão de suas referências - se puder – para entrar em outra lógica, sem tentar enquadrá-la em seus parâmetros. A loucura, tão comum e frequente na cultura, suscita sentimentos intensos de repulsa, de temor e às vezes de idealização.  
Cisne Negro é também a encenação de uma das peças mais importantes da história do ballet, uma releitura moderna do clássico dos clássicos, “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky. “O Lago dos Cisnes" é mais do que a história de um cisne, ou de um papel para uma bailarina. Conta a história de um príncipe, Siegfried, que, coagido pela mãe a se casar com uma cortesã, se apaixona, ao invés, por uma mulher-cisne, Odette, a princesa transformada em cisne branco que só retornará à vida humana pelo amor sincero de um príncipe. Numa noite de luar com o céu encoberto, Siegfried confunde-a com Odile, a filha do feiticeiro Rothbart, que tentara seduzi-lo no baile e, enfeitiçado, jura-lhe amor eterno, condenando assim Odette ao suicídio e à morte. No início interpretado por duas bailarinas, com o tempo alguns coreógrafos perceberam que haveria uma maior coerência com a dramaturgia da peça se fosse  um mesmo corpo encenando esta divisão. Ou seja, é arte como expressão legítima do psiquismo humano ou de sua compreensão no contexto histórico. Exaustivamente encenada nestes últimos dois séculos, O Lago dos Cisnes parece exercer seu fascínio justamente por este desafio imposto à prima ballerina que precisa tanto encarnar o cisne branco, que obedece a um rigor e a um controle extraordinários, quanto o cisne negro, quase uma catarse deste controle. Para o cisne branco, símbolo do amor ideal e puro, o bater de asas são gestos de proteção, mais instintivos, o que exige movimentos mais lentos e suaves. Já para o cisne negro os movimentos são mais rápidos, sensuais e libidinosos. Odette, o cisne branco, jamais encara o príncipe Siegfred enquanto que Odile está sempre a seduzi-lo. Tchaikovsky aproveitou-se da mitologia local em que o cisne representa a feminilidade, mas compõe uma história trágica. Talvez porque vivesse em uma época cujos valores herdeiros da Revolução Francesa (Iluminismo) prometiam liberdade e autonomia, mas na verdade limitavam a vida adulta ao trabalho, ao exército e ao casamento. A vida real era asfixiante, a sexualidade civilizada e a homossexualidade inaceitável. O cisne negro seria uma tentativa de  burlar esta moral burguesa, sem sucesso. O casamento entre o príncipe a princesa acaba em morte aos dois. O filme do diretor Darren Aronofsky abre com imagens de Nina interpretando o Cisne Branco juntamente com o príncipe Siegfried e o feiticeiro/demônio Rothbarth. A câmera capta seus movimentos suaves e precisos, mas logo ficamos sabendo se tratar de um sonho. O sonho de Nina que almeja ardentemente ser a primeira bailarina do Ballet de Nova York. Seu rosto parece satisfeito ao acordar. Sua vida tem um sentido. Ela se levanta e inicia sua jornada diária. Na cena em que o diretor anuncia que estará selecionando a rainha cisne, ele informa sobre a versão escolhida, em que a menina virginal, pura e doce está presa no corpo de um cisne. Ela quer a liberdade, mas só o verdadeiro amor pode quebrar o feitiço. Seu desejo é quase concedido sob a forma de um príncipe. Mas, antes que ele possa declarar seu amor, o gêmeo lascivo, o Cisne Negro, engana e o seduz. Devastado, o Cisne Branco pula de um penhasco, matando-se e, na morte, encontra a liberdade. A partir daí o filme induz cada espectador a ser refém da perspectiva de Nina na imersão da conquista do que parece ser a sua (e de sua mãe) única razão de viver: ser a prima ballerina. Embarcamos em uma viagem às vezes emocionante, outras aterrorizante, à sua psique. O resultado é uma sensação mista entre o sufoco, a aflição e o desconforto. Para muitos uma sensação de horror. Para poucos, o da compaixão. Ficamos aprisionados em seu corpo, ao mesmo tempo em que este é testemunha do surto psicótico de seu psiquismo. Assim  como Nina, não conseguimos mais distinguir delírio de realidade. O diretor Aronofsky consegue, de forma genial, criar um paralelo entre a história da bailarina Nina e a saga que ela interpreta. Cada personagem - a mãe, o diretor,  Lily, e até mesmo Beth, ex- prima donna deste corpo de ballet que acaba se suicidando - ocupa um lugar no imaginário de Nina e passam a ser protagonistas de sua trama paranóica.
Nina é escolhida com ressalvas pelo diretor. Ela é tecnicamente perfeita para encarnar o Cisne Branco: silencioso, doce, contido. Por isso, ao escolhê-la, o diretor deixa claro que ela precisará despertar seu Cisne Negro, deixar vir à tona a agressividade e o erotismo. Mas ele está longe de perceber o significado desta demanda que lhe faz. Talvez se ele se interessasse em acompanhá-la a sua casa, ao seu quarto cor de rosa mantido com uma decoração infantil, à sua rotina diária de horários e dietas rígidas sob os cuidados de uma mãe que se dedica de forma absoluta à realização pela filha, de seu frustrado sonho de ser uma grande bailarina. Se ele pudesse assistir às cenas de seu cotidiano, quem sabe haveria um destino diferente para aquela menina. Mas desde o início o filme já anuncia o fim trágico tal e qual as grandes tragédias gregas em que os heróis nada podem fazer contra o que já lhes está predestinado. Ter que ocupar o lugar da Rainha Cisne desencadeará sua crise. Ao defrontar-se com as exigências que esta experiência lhe coloca, ela não poderá suportar suas insuficiências ou responder aos impasses por não ter como responder, por não ter  referências ou um saber e assim seu mundo começa a ruir e sua resposta é o delírio. Até então sustentada por uma suplência que a aderência ao desejo de sua mãe lhe proporcionava e submetida às certezas maternas, Nina podia viver sem a dúvida ou algum enigma a respeito de si. Mas agora é ao diretor que ela deve se submeter e responder aos seus pedidos, alguém que lhe impõe questões difíceis, confronta-a com o real do sexo, que ela está longe de poder digerir ou suportar. Reduzida à condição de objeto e vítima de seu diretor, é invadida por suas próprias pulsões, perseguida por incessantes demandas imaginárias. O delírio é uma produção de defesa contra o extermínio subjetivo. É uma espécie de construção, uma tentativa de ordenar, dar algum sentido àquele mundo que a circunda e as relações com aquelas pessoas. É o delírio  que lhe permite continuar a viver a bailarina , embora a um custo altíssimo.
Fosse ela neurótica, poderia se questionar se o diretor a achava mesmo especial, desconfiar se ele estaria tramando algo, duvidar se a colega rival a amava ou estava a fim de ferra-la. Mas para Nina não há chances de dúvidas. Ela precisa de certezas a respeito de si e dos demais. Resta-lhe ser a perseguida. Sua experiência é da ordem da certeza, é plena, é absoluta. Ela “sabe” que a conquista do papel principal está em perigo graças às más intenções de Lilly, sua rival, que além de seduzi-la também seduziu seu diretor, que por estar apaixonado, não hesitará em substituí-la por Lilly. O delírio é a  tentativa desesperada dela reconstruir seu mundo espatifado, uma tentativa de saída da crise já que  através dele ela pode obter uma significação subjetiva para si, uma história na qual poderá se incluir e se contar. Sua vida resume-se agora a este trabalho de interpretação destas situações enigmáticas dirigidas a ela, as quais ela só pode responder por meio desta construção. São relações de força, não dialetizáveis, de um mundo sem equívocos, sem contingência e de uma sexualidade sem tropeços. Só nos resta acompanhá-la nesta outra lógica, e vivermos seu aprisionamento até a morte.
No final testemunhamos mais uma vez que o insuportável suscitado pela loucura é o que ela revela de nós mesmos, aquilo que não queremos saber, aquilo que  queremos manter  oculto, reprimido.  Ela nos evoca a fragilidade de nossa própria significação mostrando que ela não está livre de dúvida ou de questionamento, que somos órfãos dos deuses. Nos lembra que sem esta ficção que construímos sobre quem somos, podemos ficar  reduzidos ao nosso próprio corpo. Que a vida não tem nenhum sentido a priori, e que é sobre esse fundo de não sentido que às duras penas construímos um sentido para nossa existência.
Nina circula de modo diferente nas significações da cultura, possui outra escala de referências e valores. Sem  esta “estrada principal”, todas as estradas, ou seja, as avenidas, ruas e ruelas, se equivalem.
É muito difícil conviver com a alteridade que a loucura provoca, por isso existem poucas pessoas dispostas a isso, e menos ainda são as capacitadas para um convívio construtivo. Se há algo que revoluciona nossa concepção de sujeito, mesmo a do sujeito neurótico, é a experiência com a psicose. Por isso para acompanhar uma busca de significação de um psicótico é necessário uma paixão pela variedade das significações humanas. O psicótico reinventa o mundo, cria suas próprias regras, constrói associações inusitadas e sentidos inesperados. Suas palavras são preto no branco, são sérias, decisivas e precisam de respostas muito bem pesadas e pensadas. Sua vida é sempre por um fio e aquilo que ele constrói às duras penas por toda a vida pode desmoronar em um minuto.
Na psicose o acesso ao simbólico - este legado que nos possibilita fazer parte de uma história, ter uma origem, um passado que nos antecede, um mundo que podemos compartilhar com suas leis, regras e normas – está vetado. Se nenhum significante consegue substituir o significante do desejo materno, a lógica simbólica se organiza de outra forma, assim como a realidade psíquica do sujeito. Ele pode ficar assujeitado a uma relação primitiva com a mãe e se tornar o único objeto de desejo dela, provavelmente porque a mãe imaginou- o como alguém que pudesse satisfazê-la por completo. Sem poder ser um outro diferente da mãe, institui-se entre eles uma relação fusional, sem espaços para mediadores, um “mal entendido” trágico e fascinante que obstaculiza e destitui qualquer terceiro. Muitas vezes a mãe cria suas próprias leis, que diferem da lei compartilhada pela cultura. Esta é nossa Nina.


Trabalho apresentado em Sorocaba - Maio de 2011

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A violência do amor

Se o século passado pode ser avaliado como aquele que elevou o amor à categoria de valor humano máximo, cujas louvações traduziram-se em produções as mais variadas, na literatura, no cinema, teatro e novelas, além de, é claro, alimentar um imaginário idealizado sobre a vida amorosa, o século XXI tem surpreendido a todos pela incidência da violência, ainda que suas formas devam ser analisadas à luz do contexto histórico atual. Embora o mundo nunca tenha sido tão globalmente comprometido com o direito à livre expressão, paradoxalmente esta “liberdade” tem resvalado muitas vezes para comportamentos e manifestações bastante violentas. Uma nota recente na mídia revelava que, a despeito dos esforços do governo alemão para que o nazismo e sua ideologia truculenta permaneçam enterrados, há sempre grupos de fanáticos dispostos a reverenciar os fantasmas de alguns ícones hitleristas. Em continuidade a noticia sobre a tentativa de homenagear a data de morte de um destes ícones, ao invés de manifestações contrárias que insuflassem o ódio entre as pessoas, a população “indignada” havia planejado algo na linha do humor na tentativa de espelhar o absurdo e a infâmia  de tal comportamento. O filme “Relatos Selvagens” do diretor argentino Damián Szifron segue um pouco a linha do humor (negro, com certeza), mas, ao contrário, não poupa em nada a passagem da linha (sempre tênue, é verdade) que separa a civilização da barbárie. Sucesso de bilheteria em seu país, contrariando as expectativas do próprio diretor que se diz surpreso, o filme se divide em seis pequenas estórias, todas elas desenvolvendo um argumento em comum: como os personagens reagirão diante de situações frustrantes, humilhantes ou inesperadas. Acertou quem pensou em planos de vinganças normalmente “irrealizáveis”. Todas se realizam!!!! E se isto pode causar um grande mal estar, o que seria esperado para todos que ensaiamos nossas vinganças sem jamais leva-las adiante, aos poucos fica clara a intenção de encenar uma caricatura de situações corriqueiras que fazem parte da vida cotidiana, utilizando um humor macabro. Todos os protagonistas se desesperam, agem sem controle, e levam às ultimas consequências, sua ira ou seu desejo de vingança. Considerado pelo diretor como a realização de um projeto menor perto de outros mais acalentados, seu trunfo no entanto, está muito mais na proximidade de nossa realidade psíquica do que se pode imaginar. Nenhuma civilização de qualquer época deixou de perseguir caminhos que oferecessem regras e valores que garantissem a convivência humana. Sabemos hoje que nem mesmo as leis, cada vez mais homogêneas e internalizadas por todos, conseguem esta garantia. Somos seres em permanente conflito e precisamos continuamente negociar conosco tais concessões, avaliando os custos e danos.  O diretor Szifron é jovem, tem 39 anos e se declara, antes de qualquer rótulo, um cinéfilo de carteirinha. Alguns jornalistas o veem como um filhote do diretor Tarantino. Nada mais justo, já que este ousado diretor americano possibilitou ao mundo todo, através de dois de seus recentes e impactantes filmes – Bastardos Inglórios e Django Livre – uma vingança coletiva ao providenciar destinos funestos a Hitler e sua alta cúpula, e aos “donos insanos” de escravos do sul dos USA, respectivamente. Assim como Tarantino, o diretor argentino resolveu dar voz aos que se sentem indignados com as infâmias que sofrem no dia a dia. Coisas de cinema, que pode e deve brincar com a realidade.   
Para conferir:
Relatos Selvagens- Argentina 2014

Diretor - Damián Szifron

domingo, 9 de novembro de 2014

O pão nosso de cada dia


O diretor Richard Llnklater é cultuado por uma parcela importante de jovens que assistiram a sua trilogia Before "Antes do Pôr-do-Sol"/ "Antes do Amanhecer"/ "Antes da Meia-Noite", e desfrutaram do roteiro aparentemente despretensioso destes filmes que apresentavam uma inovação ao eleger como protagonistas do par amoroso, os mesmos atores, em três épocas diferentes de suas vidas, perfazendo um intervalo de nove anos. Assim, os sonhos e expectativas amorosas de juventude, podiam ser revistos e checados sob outras perspectivas pelo casal, à medida que ficavam mais velhos. Seu mais novo projeto, “Boyhood”, ganhador do Urso de Prata de Berlim pela direção, é tão ou mais ousado e primoroso. Durante 12 anos, também com os mesmos atores, Linklater filmou a historia de uma família de classe média, que vive no Estado do Texas – local pouco utilizado como cenário no cinema americano – permitindo a nós, espectadores, acompanharmos seus membros em seus pequenos dramas, conflitos e anseios, na tristeza e na alegria. É a vida cotidiana que nos toca viver que se apresenta, com seus altos e baixos, ainda que o projeto de Linklater não deixe de fora certos acontecimentos impactantes como a invasão do Iraque no governo Bush, a surpreendente eleição de Obama, o sucesso da saga Harry Porter entre jovens e crianças e claro, as transformações que o mundo digital trouxe aos modos de vida de todos. São dois filhos de pais separados – o caçula e sua irmã mais velha - que vivem com a mãe e precisam segui-la em suas mudanças de casa, cidade, maridos. O pai músico, que no inicio do filme usa a metáfora “trabalhando no Alaska” como desculpa por não pertencer ao mundo dos bem sucedidos,  logo retoma sua parte no convívio com os filhos. Assim como na sua trilogia sobre o amor, neste também os diálogos entre os adultos, entre estes e as crianças, entre as próprias crianças ou os adolescentes, são um diferencial do filme. Linklater parece fazer questão de utilizar o espaço cênico para debater ideias importantes sobre as relações humanas. Nada é deixado de lado, nem as brincadeiras bem humoradas, nem as mágoas, as dúvidas, as más escolhas (e suas consequências), as humilhações ou as questões sem respostas. Mas embora possa parecer um roteiro sem pretensões maiores do que a de apresentar a vida de uma família comum sem julgamentos morais ou normativos, não há como não aplaudir a preocupação do diretor em salientar o papel fundamental que os adultos contemporâneos precisam exercer não só quando escolhem serem pais, mas simplesmente por ocuparem um lugar assimétrico em relação aos mais jovens, e só por isso já estarem convocados a assumir a tarefa civilizatória e humanizadora. Neste sentido, de forma despretensiosa e deslocada dos discursos idealizados sobre família/pais e filhos, ele sublinha a importância desta responsabilidade e, portanto do comprometimento e cuidados com esta função, que para ser amorosa – fator imprescindível para acontecer um link com a vida e consigo mesmo – exige menos competências intelectuais e mais conhecimento sobre si, sobre o sentido/valor da vida de cada um, sobre a importância de se deixar afetar e de suportar /respeitar o estranho ou desconhecido. Moral da história: fica muito mais difícil ajudarmos os “garotos” a se emancipar e ganhar autonomia, se não percorremos antes este caminho e pudemos compreender a importância de discriminar o que deve ser incentivado, o que precisa de parâmetros e limites claros e o que necessita ser vetado. Não, não precisamos ser/bancar os adultos sabichões, ao contrário, pode ser salutar dividir algumas dúvidas e incertezas.
Para conferir: Boyhood  - 2014 - USA
Diretor: Richard Linklater

Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A Bela e a Fera

Está em cartaz nos cinemas, em uma superprodução franco-alemã, mais uma versão da história da Bela e a Fera, talvez o conto de fadas que mais versões recebeu em sua longa existência (livros, animações, filmes, musicais). Vale a pena recuperar a historia de nossos tão conhecidos contos de fadas, contos estes que foram compilados por alguns escritores da sociedade europeia nos séculos XVII ao XIX, que recolheram cada qual  em sua cultura, as histórias orais contadas e recontadas, nem sempre destinadas aos infantes, mas quase sempre permeadas por um realismo fantástico. O francês Charles Perrault (1697) foi o primeiro a reunir essas histórias consagradas pela tradição oral e organiza-las em “Os contos da mamãe Gansa” dirigidos às crianças. Tempos depois foi a vez dos irmãos Grimm se utilizarem da literatura popular oral e escrita da Alemanha, alcançando um grande sucesso. Na Dinamarca, Hans Christian Andersen fez inicialmente o mesmo percurso para depois dedicar-se à criação de uma literatura infantil, centrada principalmente na vida cotidiana. Em comum, estes contos de fadas costumam apresentar um conflito entre o bem e o mal ao expor os impasses de uma determinada situação, e desenvolvem um processo de solução com um sucesso final, utilizando-se de um mundo fantástico, ideal para o pensamento mágico das crianças. Mas o fato de estes personagens imaginários representarem os tumultos de nosso mundo interior ao expressar nossos anseios, angústia e medos, ainda que num  mundo de fantasia, do faz de conta e da ficção, cria uma cumplicidade tanto para as crianças quanto para os adultos. Todos ficam tocados pelas histórias, que em geral abordam temas que fazem parte da tradição de muitos povos, apresentam saídas para problemas comuns, oferecem soluções para possíveis conflitos e acima de tudo transmitem uma mensagem que é ao mesmo tempo de conforto ao propagar que a luta contra as dificuldades e os medos é inevitável, e de esperança, já que a vitória é sempre possível. A Bela e a Fera (La Belle et la Bête), no entanto, teria sido originalmente escrito por uma francesa ( uma mulher, o que não era usual),  Gabrielle-Suzanne Barbot, a Dama de Villeneuve, em 1740  para entreter seus amigos. Alguns anos mais tarde, em 1756, outra mulher, Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, resumiu e modificou a obra de Villeneuve, que se tornou a versão mais conhecida. Adaptada, filmada e encenada inúmeras vezes, o conto apresenta pequenas modificações desta versão ao se adaptar a diferentes culturas e momentos sociais e alcança seu ápice na versão de animação, imortalizada nas telas em 1991 pela Walt Disney, quando alcançou índices jamais imaginados para um desenho, e recebeu indicação ao Oscar de melhor filme. O que este conto teria de diferente? Ele não só foi escrito por uma mulher e adaptado por outra, como em suas diferentes versões, mantém o protagonismo de Bela, que escolhe ser trocada pelo pai para ficar com a Fera, e conquista-a além de ser conquistada. Como pano de fundo, estamos aqui em plena passagem da menina para a adolescente, que precisa se despedir do amor paterno, encarar sua sexualidade e ter coragem para se voltar ao mundo dos homens. A Fera é a figura deste homem ainda desconhecido, animal em sua sexualidade estranha, mas que aos poucos poderá se transformar em um homem para ser desejado e amado. Quando Freud no final do século XIX e inicio do XX inventa sua leitura sobre nossa intimidade, empresta dos mitos gregos sua simbologia. Os contos de fadas permitem à criança uma mediação entre seu mundo interno e externo, e por meio do simbolismo facilitam que ela experimente diferentes papéis e situações de seu contexto familiar ao se identificar com os vários personagens do conto. Quem sabe  seja este fascínio que atinge a todos, o que faz com que os contos de fadas se perpetuem.

Para conferir: A Bela e a Fera (2014)

Direção: Christophe Gans  ( França/Alemanha)

A magia do olhar

Não fossem as palavras, a realidade seria sem graça, sem formas, sem sentido. Graças às palavras podemos desfrutar e compartilhar a realidade, mas é nossa produção de ficções que não só potencializam as coisas e as maneiras de se olhar a realidade, como permitem abrir portas nas velhas paisagens, apontar o impossível como possível, ou somente retirar nossas vidinhas de seu mundo quadrado. Muitas ficções literárias atravessam a história mantendo-se como referencia deste gap realizado ali, naquele momento. Também o cinema e seus diretores geniais, mantêm nossas expectativas de sermos afetados por novas maneiras de entendimento da realidade ou de nós mesmos. Woody Allen é figurinha conhecida nos quatro cantos do mundo, e muito reverenciado pela frequência com que realiza filmes com alto teor de interrogações sobre nós e nossas vidinhas. Mas é bem provável que aos 79 anos, ele tenha se concedido uma liberdade não tão comum aos que alcançam um lugar de destaque e precisam cuidar da reputação conquistada ao longo de suas vidas. Nos últimos anos, com sua vida privada exposta em meio ao quiproquó de denúncias feitas por sua ex-esposa, a atriz Mia Farrow, ele não só tem rodado seus filmes fora dos USA, como aproveita para apresentar os ângulos ou lugares mais lindos daquele país ou região, escolhe atores inesperados para seus personagens, e elege temas que, a primeira vista, parecem banais, na maneira simplória e singela com que são apresentados. É o caso de seu mais recente filme, “Magia ao luar”, em que ele se utiliza das belíssimas paisagens da Riviera Francesa, ambienta - o nos anos 20- com direito a um impecável figurino de época – e traz à tona um debate sobre a possibilidade ou não de conciliação da fé com a ciência/razão. Os dois personagens principais representam de forma caricata, os extremos de cada uma destas possibilidades. De um lado um famoso e cético ilusionista (Colin Firth) cujo discurso sempre se enquadra no racional, que anuncia seu desprezo pelas paixões e pelas crenças no divino ou no oculto, e de outro uma “médium” americana (Emma Stone), que anuncia a possibilidade de utilizar seus recursos para fazer uma ponte com o mundo espiritual, e de quebra exibe de forma exuberante, sua juventude, alegria e paixões pela vida. Convidado por um amigo a desmascarar a vidente, o homem cético se impressiona e se apaixona por ela, capturado por seu espírito livre e pela singeleza com que leva a sério a ilusão e a fantasia. Woody Allen parece assim convidar-nos a abandonar a lógica racional e abrir espaço para uma terceira via, feita de nossas fantasias, sonhos, romances, e tudo aquilo que pode nos fazer suportar melhor a dureza e os infortúnios da vida. Na base da produção de sua ficção está um questionamento de quem somos, por que somos e como somos. A resposta é que não somos perfeitos, não temos respostas certas para viver, e temos muitos limites e insuficiências. Tudo depende, sempre, da maneira de olhar - e se possível  de desdobrar e multiplicar nosso olhar. É sem dúvida um Woody Allen mais romântico, que escolhe pinçar o que o homem tem de mais espontâneo e ímpar.
Para conferir:  Magia ao luar (2014)

Diretor : Woody Allen ( USA) 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O lobo do homem

Quase todos devem ter ouvido algum comentário sobre o polêmico filme O Lobo de Wall Street, baseado na biografia de Jordan Belfort e dirigido por Martin Scorsese. O filme começa com o próprio protagonista, na pele de Leonardo DiCaprio, anunciando sem muitas milongas, o tom de excessos que suas memórias irão tocar, ao revelar o estilo de vida pouco convencional de muita grana, sexo e drogas a partir de seu sucesso financeiro. Belfort é o lobo que consegue fazer fortuna operando ações negociadas fora do pregão, de preços baixíssimos, mas de altíssimo risco, nos anos noventa, anos dourados da bolsa nova-iorquina em que a regulação e os limites eram tênues e podiam ser subornados. Inicialmente operando em Long Island, logo o escritório da Stratton Oakmont ocupará o coração de Wall Street, e atrairá os olhares fascinados de milhares de corretores dispostos a fazer parte de seu circo e ganhar muito dinheiro. Um circo, que visto de perto mais parecia um misto de hospício e bordel, sustentado pelo carisma do showman Belfort, que em seu palco e de microfone em punho comandava sua trupe, mantendo a ganância e a ambição de todos, motor das compras e vendas de ações. Em troca, pílulas, prostitutas e diversão “full time”. Há um quê de orgulho, sem sombras de julgamentos morais, que Belfort exibe ao falar de si em suas memórias, uma aura que ele próprio se concede como se ao conseguir a proeza de quase ganhar um milhão de dólares ao ano com apenas 26 anos, ele teria cruzado as inalcançáveis portas do paraíso e realizado o “sonho americano” de habitar as terras divinas do excesso, do exagero e da inconsequência, sem medo de ser feliz. A única imagem que o filme mostra do ainda ingênuo Belfort, quando começa a trabalhar em Wall Street, um pouco antes da crise do final dos anos oitenta, é um almoço com o então chefe, que lhe diz para ficar muito atento a única regra daquele jogo: vender a qualquer “custo”, não importa a quem, porque ou quais serão os resultados para o comprador. A receita para suportar o ritmo e o clima de montanha russa é muita maconha e masturbação. De certa forma ele não só segue as regras à risca, como as inova, quando recomeça do zero em Long Island. Indicado ao Oscar, o filme foi bem de bilheteria, tendo Leonardo DiCaprio disputado o premio de melhor ator. Com tal destaque, algumas entrevistas que o ator concedeu reivindicavam sua posição diante do comportamento de seu personagem, ao que DiCaprio lembrava que não se tratava de legitimar seu modo de encarar a vida e sim de retratar os obscuros (e quase nunca revelados) lados da alma humana. De fato o ator está ótimo em sua interpretação e empresta ao personagem um tom certeiro entre o infantil e o cafona, ao destacar a maneira como ele aposta 100% em seus métodos de venda e na possibilidade das pílulas lhe garantirem a energia para aquela vida alucinada e viciante. E por falar em vício, para o espectador atento, não só as drogas, mas o sexo, o dinheiro e o ritmo das negociatas vão, aos poucos, tomando um lugar central na vida de todos os envolvidos, funcionando como objetos “perfeitos” de gozo, anestesiantes, que emprestam um sentimento de invulnerabilidade, mas que, ao contrário do que lhes parece, impede-os de pensar, perceber, refletir, enfim viver a vida. Um perigoso, embora audacioso, namoro com a morte.
Para conferir: O Lobo de Wall Street ( USA 2013)
Direção: Martin Scorsese

Elenco: Leonardo DiCaprio e Jonah Hill

domingo, 13 de abril de 2014

Seja o que Deus quiser

Deus está em São Paulo, por pouco tempo, e pasmem, resolveu procurar uma terapeuta para tratar sua angústia. Com uma boa mistura entre o humor e a reflexão sobre temas complexos que envolvem a relação do homem com Deus e as dores da existência, este é o mote da peça “Meu Deus!” que estreou há duas semanas no Teatro FAAP. Longe do Todo-Poderoso dos velhos tempos da criação, Deus está desesperado e pelo telefone, implora urgência para sua consulta. Certa de estar recebendo um psicótico em franco delírio – por este se apresentar como Deus- a psicóloga Ana (Irene Ravache) vai abrindo espaço para ouvir o improvável: a história de Deus, sua depressão frente à situação da humanidade, seu sentimento de fracasso, sua solidão. Em um “tour de force”, ambos – Deus e a terapeuta - acostumados a ouvir os lamentos, as dores, as tristezas, e acolher o sofrimento de forma a dar-lhe alguma direção, passam uma revista pela história humana à luz da história de Deus e aproveitam para olhar a si próprios. Não muito longe dali, em algumas salas de cinema, Deus está contracenando com Noé (que também estreou na semana passada). E o cenário é de caos e barbárie. Guardando alguma semelhança com algumas cenas do mundo atual em que impera a violência, o ódio, o descaso, a miséria, Noé se transforma em instrumento da vontade de Deus ao construir uma arca que deverá abrigar apenas os que se salvarão de sua Ira. Sua missão, no entanto, poderia abrir um debate sobre o temido e previsto Juízo Final, quando Deus deverá julgar a todos, discriminando os que merecem ser salvos dos que serão condenados. Tarefa possível? No filme, Noé incorpora a ira e a indignação de Deus, tornando-se ele próprio um perseguidor atroz, mas nem sempre justo, de todos que julga não estarem aptos a fazer parte desta missão higienista. Tais simbologias sagradas ganham significados importantes quando revistas por historiadores do naipe do francês Jacques Le Goff, falecido no ultimo dia 1 de abril. Conhecido por ter apresentado ao mundo uma "outra Idade Média", ele buscou apreender os sonhos e terrores de seus homens, bruxas e monjas, suas sombras e luzes e revelou ter sido ali gestado a matriz de nossa modernidade e o elemento fundamental de nosso cristianismo. Em a “A Invenção do Purgatório” que acontece no século 12, Le Goff mostra como o surgimento desta ideia estaria ligada ao fato dos homens de então passarem a rejeitar a divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso e buscarem uma alternativa a este maniqueísmo pérfido através dos estágios intermediários do purgatório que assim poderia abrigar a infinita variedade do Mal e do Bem. Nesta escala, entre a ira e o poder Divino ou sua misericórdia e compaixão, poderia se assentar o humano em sua eterna e incerta busca por uma vida digna. Graças a Deus!

Para conferir:

"Meu Deus!" - texto de Anat Gov, direção de Elias Andreato, em cartaz no Teatro FAAP-SP com  Irene Ravache e Dan Stulbach.

Noé – direção Darren Aronofsky , com Russel Crowe em cartaz nos cinemas


domingo, 13 de outubro de 2013

A humanidade do mal


No dia 04 de julho de 2013 o programa Milênio do canal Globo News exibiu uma entrevista com o autor do livro “O Leitor” - o jurista e escritor  Bernhard Schlink - em que este declarava que ser alemão tinha um peso à parte, referindo-se ao fato de seu país ter que conviver com um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade durante a segunda guerra mundial. Uma carga especial, uma culpa específica, da qual ninguém poderia escapar. Mas também revelava que, embora as novas gerações soubessem dessa dívida, o que era muito bom, a sensação de culpa tendia a diminuir, mas a responsabilidade não poderia jamais. O livro foi escrito nos anos 90 sobre os anos 50, 60 quando na Alemanha ainda aconteciam julgamentos de alemães que haviam servido o regime nazista. Em 2008 o livro ganhou versão para o cinema, com direito ao Oscar de melhor atriz para Kate Winslet. Muito bonito, o filme conta a história de Michael Berg, um garoto de 15 anos que conhece casualmente Hanna Schmitz, uns 20 anos mais velha, por quem se apaixona e com quem vive intensamente suas primeiras experiências sexuais. Sem revelar muito sobre si, Hanna, que não sabe ler e sente muita vergonha disso, vive momentos de felicidade com o ritual das leituras dos clássicos de literatura que o rapaz faz em seus encontros eróticos. Mas de forma misteriosa desaparece sem deixar vestígios. Anos mais tarde, já como estudante de direito, ao comparecer com seu professor e colegas para assistir a um julgamento de criminosos do regime nazista, Michael reconhece Hanna no banco dos réus. Para uma Alemanha pós-guerra, está ali contemplado muitos dos conflitos vividos pelas gerações mais novas que questionavam incessantemente os pais/familiares pela colaboração ou omissão diante das atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich. Lembrei-me desta Hanna ao assistir recentemente o filme sobre outra, a filósofa judia "Hannah Arendt", em que se relata sua decisão de presenciar o julgamento de Adolf Eichmann em Israel, em1960 (um dos últimos líderes nazistas vivos então), com o compromisso de escrever cinco artigos para a revista New Yorker, que viriam a dar origem ao livro "Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal". Aproveitando algumas imagens reais deste julgamento o filme privilegia as expressões /reflexões da surpresa de Hannah diante de um Eichman que para ela teria praticado uma "normalidade burocrática", por ser incapaz de pensar/avaliar o mal de suas ações. São estes os sentimentos - ambivalentes, duros, difíceis- que o estudante de direito Michael vive no julgamento de “sua” Hanna. Imaginando poder ganhar mais como funcionária nazista, ela teria aceitado a troca oferecida para sair da Siemens, onde trabalhava. Seu sonho? Aprender a ler e a escrever. Ao ser questionada pelo júri sobre seus atos durante este período, demonstra não perceber a implicação das ordens a que se submetera como guarda de prisioneiros judeus, todos mortos. Seu pecado? Escolhia algumas mulheres que pudessem ler livros para ela. Suas colegas, todas rés e sob as mesmas acusações se aproveitam de seu alheamento, deixando para ela o fardo da culpa de todas. Uma cumpridora de regras, diria Hannah Arendt. Perplexo e paralisado, Michael assiste ao julgamento em meio às lembranças de “daquela” Hanna, a sua. Tenso, não pode revelar este passado singelo e “vergonhoso” aos pares, mas “sabe” que precisa abater da culpa de Hanna, sua alienação. A banalidade do mal seria essa “desistência” ou impossibilidade de pensar sobre o que se é e, portanto preferir ou deixar-se colonizar pelo desejo de um outro. Esta seria a matriz do alheamento em relação a si e paradoxalmente da crueldade para com o próximo. Para muitos, uma forma de se proteger do “inferno”, ou melhor, dos custos de se viver.

Para conferir:

O Leitor - direção Stephen Daldry , com Kate Winslet, Ralph Fiennes, EUA , Alemanha 2008

Hannah Arendt – direção Margarethe Von Trotta , com Barbara Sukowa, Axel Milberg


 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Que lugar para o amor


Nos versos de sua música “Futuros Amantes”, Chico Buarque canta um futuro em que “sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização”, como se previsse um tempo em que a linguagem do amor romântico, tão assimilada em nossa cultura, pudesse não só cair no esquecimento, mas produzir estranhamento. Foi essa curiosidade quanto ao futuro de uma “ordem” já tão naturalizada entre nós e que norteia a vida de quase todos, que guiou os caminhos de minha tese de mestrado, cuja dissertação defendi em 2006. Basicamente a tese buscava entender (pesquisar) as razões do alto valor do amor romântico como ideal de vida para quase todos, levando em conta que o imenso arcabouço estruturado ao seu redor, não dava mais sinais de poder se sustentar da mesma maneira. Mudavam os casamentos, choviam separações e muitas conquistas advindas da liberdade dos indivíduos questionavam o que havia de velho e mofado neste modelo. Em meio a estas pesquisas e muitas leituras, um filme muito peculiar era lançado em 2004 que de certa forma instigava um debate importante para este tema. “Antes do por do sol” não era apenas a continuação de uma historia de amor contada no filme anterior (“Antes do amanhecer”), feito pelo mesmo diretor. Era um projeto inovador, uma boa ideia de Richard Linklater que havia convidado um par de jovens atores em 1995, ele (Ethan Hawke) um americano e ela (Julie Delpy) uma francesa para serem coautores de uma saga romântica que pretendia ser filmada em três etapas. Quando lançado em 2004, nove anos depois do primeiro, o fato pouco usual de serem dois filmes feitos com os mesmos atores encarnando os mesmos personagens em diferentes tempos de suas vidas, sendo eles co-roteiristas, dava um toque de veracidade que capturava o público. No primeiro filme, dois jovens universitários em viagem de férias, um americano (Jesse) e uma francesa (Celine) se conhecem num trem que corta a Europa e decidem passar uma noite juntos em Viena, local onde seus destinos se separariam. “Antes do amanhecer” eles voltam à estação de trem onde ela deverá seguir viagem à Paris e, sem trocar telefones, endereços ou sobrenomes, fazem uma promessa “apaixonada” de se reencontrarem na mesma estação depois de seis meses. Nove anos mais tarde (2004), Jesse escreveu um romance em que narra com detalhes sua história com Celine, e está em Paris para lança-lo na charmosa livraria Shakespeare and Company, quando a vê entrar. No filme de 1995, ainda adolescentes, eles contam um para o outro, detalhes de suas vidas e de seus projetos. A paixão é inocente, insegura, desprevenida, e a aposta em um novo encontro às escuras, é próprio dos sonhos onipotentes dos jovens. Em 2004 eles estão mais velhos, seus rostos mostram as marcas dos anos e seus diálogos incorporam as responsabilidades do mundo adulto. É com sutileza, respeito e cuidado que vão contando um ao outro (tendo as ruas de Paris como cenário) seus sucessos e fracassos, os ajustes que tiveram que fazer em seus ideais de juventude, e finalmente a importância daquele encontro passado, em suas vidas. Esteticamente belo, a câmera filma a pouca distancia para captar os olhares, gestos e expressões, o que convoca o público a testemunhar o envolvimento de ambos e de como relatam o impacto do encontro vivido no filme anterior em suas vidas. Eis que em 2013, o diretor cumpre sua promessa ao lançar a terceira etapa desta aventura, “Antes da meia noite”. Casados, pais de gêmeas, Jesse se separara de sua primeira mulher (com quem teve um filho) nos USA e vive (agora como escritor renomado) em Paris com Celine. De férias, eles vão à Grécia de carro em casa de amigos. Com diálogos mais tensos, os anos vividos juntos demandam um jogo de cintura de ambos para driblar as diferenças, negociar as expectativas, curar as frustrações. Culpado por não conviver com o filho pré-adolescente que acaba de deixar no aeroporto, Jesse sonha em morar nos USA para aplacar seu mal estar. Saber disso exaspera Celine que discorda dele quanto ao efeito “idealizado” dessa proximidade física. Uma mudança para lá desorganizaria a vida atual deles. Custos de uma relação prolongada que, além disso, precisa contabilizar as obrigações de pais? Com questões próprias das gerações de adultos nascidos nos anos 70, 80, os três filmes cumprem seu papel ao colocar os ideais amorosos a uma distancia possível, o que funciona como um alento aos jovens adultos da atualidade que se sentem capazes de poder viver/sentir o mesmo. Super recomendado.

Para conferir: Antes do amanhecer (1995) Antes do por do sol (2004) Antes da meia noite (2013)

Diretor: Richard Linklater             Atores: Ethan Hawke e Julie Delpy

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Desejar, falar, pensar, sonhar, fazer.


É comum aos que curtem cinema preferirem assistir aos seus filmes em boas salas, que ofereçam uma excelência de som e de imagens e assim facilitem o processo de envolvimento que a história vai apresentando, a ponto de muitas vezes se torcer para que o filme não termine, que se prolongue infinitamente. Claro que este tipo de mágica acontece quando há alguma identificação com os personagens ou com o tema apresentado. Foi esse o clima que vivi ao assistir a poucos dias atrás “Depois de maio”, do diretor francês Olivier Assayas. Reticente no início, imaginando tratar-se de mais um retorno (nostálgico?) ao cultuado ano de 1968 e sua marca revolucionária, foi decisivo o número de estrelinhas que acompanhavam seu título nos guias divulgados pela imprensa. Como prefiro me surpreender a me antecipar, não li resenhas ou críticas que pudessem diminuir as dúvidas. Fui. De lambuja convidei uma amiga que também curte cinema. Finda a sessão senti-me constrangida em demonstrar de forma muito efusiva minha (agradável) surpresa com a abordagem que o filme faz sobre um período importante de minha geração e de minha vida. Não precisei. Ela estava emocionada e se antecipou ao verbalizar seu pesar pelo término do filme. Queria que ele continuasse, que mostrasse as cenas dos próximos capítulos de sua vida. Tivemos que eleger um lugar para podermos falar uma à outra sobre este impacto. Uma entrevista no jornal Valor (28/04/2013) confirmava ser o filme uma maneira de o próprio diretor questionar este período de sua vida, o histórico anos 70, anos em que cabia aos jovens protagonizarem mudanças importantes ou se alienarem sob os véus da tradição, tamanha era a vala que parecia se formar entre o estabelecido e as transformações por vir. Lá estavam tanto o apelo ao engajamento político com a promessa de um mundo melhor e mais igual, que cobrava um envolvimento ideológico absoluto, quanto o movimento da contracultura que questionava os valores morais tradicionais e incentivava as experiências de libertação pelo amor, sexo ou drogas. Entre estes cabia ainda a todos decidir sobre suas realizações pessoais, seu futuro. Como se pudesse voltar e espiar a si próprio neste passado, o diretor preferiu não “romancear” a época nem glamourizar  algum destes dois lados e aproveitou este distanciamento para  refletir sobre os desejos, dúvidas e inseguranças dos jovens, quem sabe em busca de indícios que antecipassem a candura e a inocência daquela aposta em ideais humanitários tão elevados ou em modos de vidas tão alternativos. No filme, ao eleger Gilles como seu alter ego, empresta ao personagem a possibilidade (que talvez os jovens imersos nestas mudanças não conseguissem) de uma vista aérea de sua vida, dando-lhe assim a chance de debater suas escolhas. Ainda que se saiba que a “juventude” é um período (legítimo, diga-se) de suspensão, transição e passagem, Gilles encarna o adolescente “ideal” que busca de forma equilibrada um lugar para si no mundo, e tenta tirar o melhor dos dois lados. Nesse sentido é como se o diretor constatasse que nestas poucas décadas tivemos que nos haver (às duras penas) com esta promessa de felicidade (de um mundo perfeito com pessoas satisfeitas), que está longe de ser um estado a se conquistar já que o desencanto, os obstáculos, os reveze e as lutas para uma vida que valha a pena ser vivida fazem parte do pacote. Mas também de que estamos mesmo em um novo mundo, com um novo corpo, outra sexualidade, ética e moralidade e com modelos sociopolíticos caducos. Neste balanço entre seu passado e o presente - que o diretor convida-nos a participar - parece reverberar a citação do pensador francês Blaise Pascal proferida na primeira cena do filme pelo professor de literatura: “Entre nós, o inferno e o céu, há somente a vida, que é a coisa mais frágil do mundo”. Um convite à busca de novos sonhos e novas referências poéticas, já que aquelas que deram sentido aos anos setenta perderam seu prazo de validade.

Para conferir: “Depois de Maio” (Après Mai)  França 2013

Diretor: Olivier Assayas

sexta-feira, 8 de março de 2013

Você tem um sonho?



Em uma entrevista concedida a Marilia Gabriela o diretor do filme “Colegas” que está estreando em circuito nacional confessa que a ideia de criar um roteiro protagonizado por atores com Síndrome de Down era um sonho antigo, uma homenagem amorosa ao tio materno, portador da mesma síndrome, de quem ele tinha lembranças intensas, de alguém generoso e muito divertido. Mais, seu filme deveria recriar o clima de aventura que ele guardava dos momentos em que brincavam juntos. Entre a ideia, o projeto (com tudo o que isso significa em termos de roteiro, seleção de atores, captação de recursos, etc.) e a consolidação do sonho, com direito ao premio de melhor filme no festival de Gramado de 2012, passaram-se sete anos. Na entrevista, realizada com o diretor e os três atores, Marcelo Galvão conta que sua intenção sempre fora tentar passar para o público os mesmos sentimentos que guardava em relação a sua convivência com o tio, ou seja, de como o laço amoroso que os unia ignorava as diferenças entre eles. Embora a Síndrome de Down - um distúrbio genético caracterizado pela presença do cromossomo 21 adicional em todas as células do organismo - seja bastante conhecida por suas características físicas específicas e pelo desenvolvimento geral mais lento de seus portadores, o comportamento e a personalidade de cada um ficam muito mais submetidos às influencias do meio familiar e cultural a que pertencem. Isso fica claro na entrevista dos três protagonistas que a despeito de partilharem algumas dificuldades, vão narrando suas historias de vida, com suas conquistas e dores, como as nossas. Ou seja, mostram que podem ser pessoas ricas ou pobres, cultas ou sem instrução, felizes ou infelizes. Se por um lado o filme pode circular exibindo apenas o rótulo de uma comédia romântica bem ao estilo “queremos, logo podemos” tendo como fundo a força dos sonhos de cada um, certamente os prêmios, o marketing e o espaço que a mídia está oferecendo a ele poderão funcionar como uma chamada ao polêmico tema da inclusão de pessoas com deficiência em diversos âmbitos da sociedade. Lembremos que essa é uma ideia nova, que tem apenas algumas décadas, e por isso mesmo está longe de amparar todos os que precisam desta “inclusão”. Destes, destacamos os pais, para os quais os desafios desta jornada são vividos com muito desamparo, inúmeras  incertezas, sentimentos confusos e contraditórios. O que fazer? Como oferecer a seus bebes um futuro promissor? O que é melhor, lutar para que sejam aceitos em escolas regulares e enfrentem as discriminações ou isola-los em classes ou instituições com seus pares? E quando alcançarem a adolescência? E se quiserem se casar?  Qualquer um que se puser no lugar destes que perguntam  poderá imaginar a dor que enfrentam e as diferenças com as quais cada família tentará contornar a perda do “bebê perfeito” e enfrentar a nova e inesperada realidade, que no mínimo lhes exigirá  muitas mudanças. Por isso, talvez o maior valor da ideia deste filme seja a sensível experiência de seu diretor, que graças a convivência amorosa com seu tio, soube ser possível transformar um pré-conceito muitas vezes tácito e silencioso, por isso mesmo mais danoso do que podemos perceber. 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Impacto social


Assistir ao filme “No” impõe a todos um sobrevoo sobre a história recente do Chile. O golpe militar que derrubou Salvador Allende em 1973 - presidente eleito neste país em1970 - é considerado o mais cruento da história da América Latina, deixando um saldo de três mil mortos e desaparecidos, além de milhares de presos políticos, exilados e torturados. Depois de 15 anos à frente de tal ditadura sangrenta, Augusto Pinochet foi pressionado pelos governos internacionais a submeter-se a um plebiscito popular que legitimasse seu desejo de mais oito anos no poder. Certo de que os plebiscitos feitos sob ditaduras costumavam ser favoráveis a quem detinha o poder, foi surpreendido pela vitória do “não”. É sobre esse fato verídico que o filme “No”, de Pablo Larraín discorre. O diretor conta que tinha 12 anos quando as emissoras de TV do Chile exibiram a vitória apertada (56% contra 44%) do referendo que rejeitou a permanência do governo militar no país, um acontecimento que marcou sua vida e a de seu país. A partir da leitura da peça  “O plebiscito”, do escritor chileno Antonio Skármeta, e de muitas pesquisas sobre o período, Larraín decidiu priorizar as campanhas publicitárias do Sim e do Não que tinham 15 minutos diários na televisão para convocar o povo a votar a seu favor. Na época, o jovem René Saavedra, filho de um exilado político que volta ao Chile, e talentoso publicitário em franca ascensão no país, é convidado a assumir a campanha do "não" e acaba criando uma peça inovadora para a época, que vendia a ideia de esperança e felicidade, ao invés de expor os terrores da era Pinochet. De forma astuta, a campanha derrota o ditador utilizando as mesmas ferramentas de sua propaganda política com fartas visões sobre um promissor futuro do país. Mas seria mesmo esta vitória apenas fruto de uma manobra publicitária bem feita? Ao assistir ao filme com amigos, finda a sessão, ainda que o final feliz produzisse uma sensação de redenção, no burburinho dos comentários, espectadores mais engajados confessavam certo estranhamento, uma desconfiança de que o publicitário, longe de comungar com alguma ideologia política, teria apenas “vencido” uma concorrida disputa com seu rival, no caso a turma que cuidava da campanha do “sim”. Instalada a polemica, surgiam as perguntas. Teria sido a peça publicitária decisiva para que o governo Pinochet ganhasse maior visibilidade negativa, nacional e internacionalmente, obrigando-o a deixar o governo dois anos depois? Qual teria sido seu diferencial? Que valor moral atribuir aos métodos utilizados na campanha, mais próximos ao marketing político (tão vigente na atualidade)? Ou ainda, porque deixar de fora o sofrimento legítimo dos que foram destituídos de seus direitos, dos que perderam seus familiares, dos que foram torturados? Como não usar o espaço dos 15 minutos para denunciar as barbaridades cometidas pelo governo compulsoriamente censuradas para o povo? Vale dizer que o filme sustenta um clima de suspense do inicio ao fim só por mostrar as tensões vividas pela equipe do “não” que, pisando em ovos em um governo sob censura, precisa fazer sua omelete parecer maravilhosa, apesar de quase sem ovos. Tarefa ardilosa que este publicitário vivido pelo ator mexicano Gael García Bernal tenta desempenhar, convencendo a turma do “não” a eleger programas otimistas, que pudessem despertar principalmente aos jovens, convocando-os a reconquistar a alegria de viver e a confiança no futuro ao divulgar seu slogan "Chile, a alegria está chegando”, fazendo-os acreditar que seu voto poderia mudar a situação politica do país. De meu lado, surpreendi-me positivamente pela escolha da “alegria”. Fiquei imaginando (talvez de forma romântica) que aquele “menino” já tinha em seu currículo as duras experiências dos que precisam viver exilados de seu país. Quem sabe em sua volta, já desenhasse a possibilidade de um novo país, por isso insistia em despertar nos jovens a paixão de viver uma nova época e uma nova cultura. Pode ser que quisesse transformar, pela via da publicidade - que como sabemos corre atrás dos desejos humanos- seu desejo de pertencimento a um novo país incitando um sentimento de humanidade comum a todos os chilenos, sem diferenças de idade, posição social, partidos políticos. Se o mundo não cessa de refazer ciclos em que alguns se instituem donos absolutos de uma verdade por algum período, há que haver os que rememoram a força do desejo de renovar em cada um, e da possibilidade de fazer historia com alguma ousadia. De forma sensível, o diretor farejou nos comerciais produzidos na época (ele não os reproduziu e sim utilizou os originais) algo de diferente sob o céu de brigadeiro. Vale a pena conferir este tônus de uma fina ironia, bom humor e alegria.

(No), de Pablo Larraín, Chile / França / EUA, 2012