segunda-feira, 12 de junho de 2017

Sobre La Luna, de Bertolucci

Sobre La Luna, de Bertolucci

Gisela Haddad

Se há algo que não se pode negar deste filme é que ele não seja ousado. E como toda ousadia tem seu preço, ao buscar pelos blogs os comentários de pessoas que o assistiram conta-se nos dedos os que conseguem algum distanciamento das cenas de incesto. Em geral elas provocam um enorme desconforto e suscitam críticas desfavoráveis. Ou então são apontadas como corajosas pela quebra de tabus ou pelas tentativas de desmistificar o tema da sexualidade humana. Na locadora, diante de minha pergunta sobre o filme, o rapaz  respondeu com outra pergunta: aquele que tem cenas de incesto entre uma mãe e seu filho? O fato é que após 32 anos de sua estréia, o filme continua controverso, atual e provoca as mesmas celeumas.  Bertolucci costuma ser generoso ao falar sobre seus filmes, sobre as razões da escolha de seus temas, e sobre o papel do cinema em sua vida, praticamente uma continuação de sua poesia, ele mesmo filho de um poeta. Em entrevista, ele conta que um disparador para a realização deste filme foi uma recordação pessoal reproduzida no filme, numa das imagens do prólogo, em que ele, aos dois ou três anos, está sentado numa cesta presa ao guidão da bicicleta e ao olhar o rosto de sua mãe vê a lua no céu por trás dela. Era a partir desta lembrança “viva” que ele pretendia ao desenrolar o roteiro, que este pudesse fazê-lo compreender essa associação entre o rosto da mãe e a lua. Na mitologia Luna é o nome da deusa romana da Lua, equivalente a deusa grega Selene, irmã de Helios, o Sol e de Eos, a Alvorada. Protetora dos feiticeiros e magos, ela dirigia no céu um carro puxado por dois cavalos e exercia uma poderosa influência sobre os que faziam encantamentos de amor. 
Na poesia de Bertolucci, a lua, a mãe e a voz vão ser os representantes do inconsciente, do feminino e do primitivo. Bertolucci escolhe uma cantora de ópera para interpretar uma mãe incestuosa e a lua, como “guia” para permear a tragédia do labirinto edípico através da voz. Ainda no prólogo, o bebê está à mercê dos cuidados da mãe e é bastante expressiva a sua reação de desconforto quando ela coloca mel em sua boca. Nas palavras do diretor, “o mel, como o amor materno, é doce demais, um doce que pode ser excessivo e fazer engasgar a criança”. Ainda no prólogo, a cena dos três, pai, mãe e bebê tem tudo para ser edílica, com a paisagem mediterrânea, o sol, a música, mas Bertolucci privilegia o rosto da criança e sua aflição e para nós espectadores, sobra violência ao invés prazer. Também na cena em que Caterina (a mãe) põe um disco e convida Giuseppe (o pai) para dançar twist, ela interrompe e ignora a sogra, que estava tocando piano. A força desta cena será recuperada pela própria Caterina quando ela consegue perdoar Giuseppe por imaginar que ele ama mais a mãe do que ela, e com isso promover o reencontro do pai e do filho, abrindo novas vias de vida para Joe.
Ainda pelas palavras de Bertolucci, é um filme sobre os laços que movem, puxam e torturam os personagens. Podemos acrescentar que ele privilegia a ambivalência destes laços, dando força maior aos seus enganos. Douglas (o padrasto) protege e afasta Joe. Por seu lado Joe tenta separar o casal ao atrair um ou outro para si e conseguir a exclusividade. Caterina movimenta-se entre os dois homens, mas está totalmente absorta em seus interesses profissionais. É o choque vivido pela descoberta do vício do filho que desencadeará a descida aos infernos de sua condição de mãe, a errância de suas escolhas desesperadas, e o lento caminho em direção a alguma responsabilidade pelo destino de seu filho, de suas alternativas  como promotora de algum futuro possível a ele, ao devolver parte de sua história.
As cenas incestuosas entre mãe e filho não ficam sem um lugar. Apesar do desconforto que causa a todos nós (voltaremos a falar sobre isso depois) elas são parte deste “inferno” que ambos estão vivendo. A maternidade, a paternidade e a filiação são determinadas por critérios múltiplos, entre os quais predomina a dimensão simbólica, portanto, essas determinações não podem ser reduzidas ao critério biogenético.Embora quase todos aqui sabem que o tabu do incesto está na base da constituição da cultura por sua economia de troca de bens e de mulheres que funda a vida simbólica e social, para a psicanálise a interdição do incesto existe para barrar o excesso da pulsão que de outra forma tornaria insustentável a manutenção da cultura. Para Freud a proibição se origina menos pelo horror inspirado pelo incesto, e mais pelo desejo que ele suscita, lembrando com isso o poder de coerção que a sexualidade humana tem sobre a vida psíquica. O incesto é de fato mobilizador de fantasias e atos. E podemos dizer que sua força tem uma origem para todos. Desde o final da gravidez a voz e a palavra materna são “ouvidas” pelo feto e o que se passa entre os corpos faz da mãe uma estrutura afetiva antes de ser uma estrutura de parentesco. Portanto é sobre esta tentação incestuosa que se necessita de uma lei que interdite sua atuação. Isto porque embora necessária ao bebê, cabe à mãe renunciar a esta fusão com seu bebê, ao permitir a introdução da lei seja pelo pai, seja pelas vicissitudes da vida. Por outro lado, essa “construção” do incesto, mesmo sendo sexual em si, não adquire qualquer significação sexual consciente para a mãe, tanto que a cultura barra mais o desejo do pai, impelindo-o a ser o portador da lei e não o seu violador. Neste sentido a problemática do incesto sob o ponto de vista psicanalítico, é esta relação entre o corpo pulsional e a linguagem, o simbólico e o ato de nomear que está além do orgânico. A nomeação do ato incestuoso é que vai concretizá-lo como transgressivo e sua incidência depende de inúmeros fatores. Por exemplo, o significado que o filho toma em cada caso, a possibilidade de uma inserção na família no que diz respeito à filiação, às condições psíquicas dos genitores de poderem acolher esse desejo sem que esteja vinculado a um “que nada mude”- o que colocaria a criança num lugar de múltiplas impossibilidades, desde a falta de autonomia no registro dos pensamentos, impedindo-a de conhecer sua origem e de poder projetar no futuro suas referências identificatórias.
Freud diz que os primeiros desejos sexuais humanos são sempre de natureza incestuosa e que seu renascimento ou insuficiente recalcamento forma o núcleo de toda neurose.
É no processo de humanização que a proibição do incesto atua, estabelecendo lugares hierárquicos nos agrupamentos e nas gerações, permitindo o pertencimento familiar e o consequente processo de narcisização da criança pelos pais, para depois ter a possibilidade de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos genitores e se constituir como sujeito.
No filme há cenas de ternura entre os pais, a mãe e o filho. Mas quando sobra mãe e filho há uma mistura de amor-paixão-ódio. As paixões parricidas e incestuosas próprias da infância e da pré-adolescência são em geral esquecidas na idade adulta. Várias cenas trazem este sentimento de nojo de Joe em relação aos modos da mãe, comendo, bebendo ou se divertindo. A vontade de ser autônomo livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado. No filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada. Talvez Caterina não fosse o modelo ideal de mãe ou quem sabe nem quisesse muito sê-lo. Mas ela tenta se virar com isso.

Debate sobre o filme La Luna de Bertolucci realizado no CEP (Centro de Estudos de Psicanálise) a convite de Karin de Paula /2012




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