Porta de banheiro: a internet do maloqueiro
Comentários de Gisela Haddad para a Banca do TCC de Gustavo Tristão realizada na ECA 2010
Pelo lado do individuo há a pergunta de quem é afinal
este anônimo. Um transgressor? Alguém que se sente excluído? Um cínico? O que
ele busca? Capturar a atenção do outro? Gozar de seu próprio prazer solitário de
transgredir? Produzir uma catarse mental tal e qual sua catarse intestinal? Até
que ponto todo anônimo quer ficar mesmo anônimo ou almeja tornar-se
indiretamente visível? Será que ao escrever ali, ele se deleita ao imaginar o
impacto desta leitura sobre quem irá ler? Ou busca qualquer leitor que possa em
sua imaginação reconhecer ou criar uma empatia com o que ele escreve? Estas
conjecturas nos levam ao singular, ao sentido que cada um pode dar a estas
leituras tal e qual Gustavo, que ficou intrigado com a frase ouvida (há 12 anos)
de um amigo de seu irmão - lida em uma porta de banheiro da faculdade - e que
transformou este impacto nesta pesquisa sobre o significado das grafias de
portas dos banheiros, a partir de seu caráter ao mesmo tempo público e íntimo. Leitura
que é quase inevitável para quem utiliza tais banheiros, e tanto pode despertar
curiosidade e riso como o nojo e indignação ou até o desejo do leitor de fazer
alguma contribuição para aquela literatura coletiva. Um ambiente íntimo/público
que tanto pode impulsionar um escritor que se sente mais excluído por sua
condição social, o que não teme as leis e por isso um transgressor, alguém que
esteja reivindicando sua visibilidade ou ao contrário, gozando de sua condição
de expatriado, ou seja, de quem quer intencionalmente causar espanto e horror
ao revelar o que normalmente a cultura mantém velado. Enfim, alguém que pode se
constituir como um ser social, que apreende o sentido do que lê ali, se
interessa ou imagina quem escreveu, decide interagir, responder, ou comentar.
Ou não, alguém que está apenas “descarregando” sem se questionar ou se importar
com o que leu ou escreveu, ou com o fato de que alguém possa ler o que ele
escreve. Se há tantas possibilidades de mundos internos será que o conteúdo que
cada um escolhe poderia revelar algo de si? Ou do contexto social a que
pertence ou que se vive? Como entender estes processos tão complexos que
permeiam nossas relações? A grafia dos banheiros e o que ela revela passa pelo
uso da linguagem e sua origem como possibilidade humana de comunicação, mas
principalmente de transmissão de um acervo simbólico construído e compartilhado
por nós, e que estaria na própria passagem do caráter animal para o humano. É
graças a sofisticação desta linguagem que partilhamos de normas e leis que
possibilitam nossa convivência. São os interditos fundamentais do incesto e do
assassinato, que mostram e explicam sua utilização
para entender a necessária repetição deste recalcamento originário, algo que
para cada um de nós será a medida de sua ascensão ao convívio com os outros,
marcando seu estilo. Pode-se resgatar por aí a história mesma da comunicação do
homem com seus pares, mas também o caráter simbólico que esta comunicação
carrega com os sentidos de sua mensagem, ao conter (sempre?) um conteúdo
pessoal, particular. Neste sentido o caminho percorrido pela pesquisa na busca
dos significados destas grafias é o de entender o comportamento humano e suas
razões assim como suas diferentes categorias. Como cada um de nós constrói
sua maneira de ser? Como esta maneira de
ser pode ou não partilhar de um meio social previamente estabelecido por regras
e normas de convivência? Qual o papel da sexualidade humana neste percurso?
Como a linguagem pode revelar algo sobre o sujeito que a utiliza e que muitas
vezes nem ele sabe, ou ainda sobre aquela cultura/ época particular a qual ele
pertence? Todas estas perguntas lembram a razão de ser da psicanálise, que
desde sua invenção pretendeu fazer uma leitura do homem levando em conta aquilo
que lhe escapa, o que fica recalcado ou negado, seja por ser moralmente
indesejado, excessivamente ameaçador, impossível de ser digerido por seus
recursos psíquicos, por se constituir em uma demanda que lhe excede, por ser
demasiado penoso. Mas também uma leitura da cultura, da constituição do social,
da força do mito fundador que ao interditar o incesto e o assassinato revelam a
força de sua insistência na cultura, do acervo contido em nossas produções
simbólicas cuja linguagem é “mãe”. Se a escrita é uma das mais antigas ferramentas
do homem para se comunicar, nossa história humana contém toda a evolução dos
meios de comunicação que construímos e refinamos ao longo dela. Podemos dizer
que entre os primitivos garranchos que até hoje são temas de filmes e
exploração para entender nossas origens
(vide o filme Prometheus, por exemplo) e a invenção da internet que abriu de
forma incomensurável o espectro da comunicação, há uma complexa evolução
nas maneiras de interagir via o que falamos
ou escrevemos. Os banheiros com seus grafitos desenham o avesso, o que se
mantém reprimido, o que pode explodir, ser cruel, causar espanto, nojo, revolta
e que apesar de ter um apelo de compartilhamento, tende a ser “outsider”, transgressivo.
No recorte deste trabalho sobre a escrita, o que se escreve e porquê em uma
porta de banheiro é levantada a questão civilizatória. Se pensarmos neste
processo e sua evolução a partir da modernidade, é aí que alguns pensadores
colocam a invenção do sujeito, ou melhor, a produção de uma subjetividade, de
alguém que começa a perguntar sobre si mesmo e passa a escrever sobre isso, ou
seja, de uma reflexidade . A psicanalise
só pode surgir a partir desta invenção, desta particular construção de um lugar
psíquico, inicialmente para tentar entender as suas formas de sofrimento e
depois para também entender sua constituição e seu funcionamento. Um sujeito
que é dividido, que só pode ascender a sua condição de homem da cultura se
puder recalcar uma parte de sua natureza animal, que é produzido na linguagem
que o antecede, antes mesmo dele adquirir a faculdade de falar. E desde o
inicio entre ele e os pais ou cuidadores responsáveis pela transmissão da
linguagem estabelece-se uma lacuna, um desentendido, algo que nem os próprios transmissores
conseguem perceber. O paradoxo é que apesar de sempre haver uma confusão de
línguas é o encontro entre o que nasce e os que o recebem que funda cada
humano. Existe, pois uma dimensão da cultura que nos antecede e que nos é
transmitida via inconsciente, que não é dito em palavras, mas que passa pelo
simbólico da linguagem de quem nos recebe e nos cuida. Cabe aos que cuidam
poder oferecer aos que nascem a justa medida entre o amor/ódio e seus limites, entre
o erótico e seus limites, entre o asseio e seus limites, etc. Uma construção complicada
que diz respeito a certas renúncias que todos precisamos fazer com a ajuda do
ambiente (pais, cuidadores, professores), que fazemos geralmente em nome do
amor, e que poderá ou não nos introduzir de maneira equilibrada na cultura para
sermos parte do projeto civilizatório que nos mantem sob certo controle, normas
e leis para nosso convívio. Uma parte desta renúncia diz respeito aos interditos,
outras são as que incidem diretamente na construção de sentimentos como a
culpa, a vergonha e o nojo. O que Freud descobriu foi que a cada vez que somos
levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter que renunciar se
transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. É contra esta obediência
“forçada” às regras da comunidade que nos consolamos escrevendo anonimamente de
forma livre e sem repressões. A vergonha, como podemos lembrar pelo mito da
criação na Bíblia, é considerada a primeira emoção humana, efeito
da curiosidade do homem sobre si e o mundo, mas principalmente sobre a sua
sexualidade ou a partir da tomada de consciência dela. A vergonha é um
indicador de que teria sido alterado o valor e o sentido da sexualidade ao ser
“civilizada”, assim como o comprometimento de cada um com essa sexualidade. Por
isso ela é um sentimento social que faz parte da experiência formativa de nossa
interioridade ao indicar a construção de uma barreira que viabiliza nossas
relações com o outro, e também delimita um espaço de intimidade para cada um de
nós, em que podemos dispor de nossos segredos, que podem ou não ser
compartilhados com outros, segundo nossos critérios de escolha. Aqui cabem as
considerações feitas sobre o conteúdo destas grafias, o caráter grotesco de
muitas delas ou sua temática que escancara o que deveria ficar dissimulado. O
espaço social é um espaço de dissimulação dos afetos em que o encobrimento, a
mentira e a polidez tem papéis
importantes para a convivência humana. Estamos falando de pontos importantes
para a evolução e manutenção do processo civilizatório dos quais fazem parte as
práticas de higiene, os hábitos de etiqueta e de conversações, o segredo sobre
as práticas sexuais de cada um, ou seja, tudo o que separa o público do privado.
Como contribuição a este trabalho, estas questões se enriqueceriam
muito com o trabalho do sociólogo Norbert Elias sobre a história do processo
civilizatório, que fez uma pesquisa minuciosa da construção do mundo privado e
suas consequências a partir da modernidade. Uma destas mudanças teria sido a
divisão entre o espaço público como o lugar das trocas sociais regidas por
certos princípios e o privado para os afetos, e da importância do sentimento de
vergonha quando nosso espaço íntimo fosse invadido, assim como quando
percebemos que invadimos o espaço alheio. Também Richard Sennet, em seu trabalho “O
Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade” mostra como no mundo
contemporâneo, em que o sentido não é mais transcendente e os fatos possuem um
significado em si e para si, as sensações, emoções, sentimentos ganharam
importância e criaram uma sociedade intimista em que a cada instante e a cada
momento estamos mostrando o que “realmente” somos para as outras pessoas. Antony
Giddens também fala sobre a transformação da intimidade pela sexualidade, amor
e erotismo e mostra as mudanças de comportamento no que chama de esfera da
intimidade, enfatizando, sobretudo, a transformação no papel da mulher e a
liberalização da moral sexual.
Se não esperamos que as crianças estejam aptas a compartilhar esta
espécie de saber é por que sabemos que faz parte da tarefa civilizatória, cada
um se apropriar das implicações e das consequências deste saber. Por isso
aceitamos que as crianças nos façam perguntas
constrangedoras sobre a forma e o funcionamento do corpo humano, sobre as
diferenças entre os sexos, ou sobre a incoerência ou incongruência das nossas falas
e atos, porque sabemos que só quando elas puderem vivenciar o retorno do saber
sobre estes constrangimentos, é que poderão sentir a vergonha. Quantas vezes a
gente se lembra com vergonha de fatos de nossas vidas em que ainda não podíamos
discernir sobre certos saberes. Ou seja, cada um de nós, ao nascer, precisa
repetir o processo civilizatório e, portanto carregamos este legado simbólico
que contém ao mesmo tempo nosso passado animal e nossas conquistas sublimes. Cada
um que porta um desejo não civilizatório, não reconhece o terceiro, a lei e não
respeita a transmissão deste legado. A cultura responsável por apontar o
permitido e o proibido se vale das rupturas morais de cada época e redimensiona
estas balizas. Hoje não só vivemos em um espaço social mais complexo como
liberamos nossos corpos de muitos de seus tabus. São corpos mais erotizados e
investidos libidinalmente, mas sempre atravessados pela linguagem (e o que ela
contém deste passado) e pela cultura. Vale sublinhar Foucault e sua antecipação
sobre a produção de controles disfarçados, exercidos de forma menos vertical e
centralizado, que produz exclusões mais veladas. Sem dúvida por aí o papel das
portas de banheiros assume uma condição libertária do discurso oficial politico
ou moral.
Voltando à psicanalise, se ela tenta fazer uma leitura da
construção de nossa complexa subjetividade e supondo que ela consiga sistematizar um saber sobre suas
imensas possibilidades, ela convive com um limite que a interroga
constantemente (ainda bem) que é o fato de que a construção de um sujeito ou a
historia de como ele é introduzido e se apropria de seu lugar no projeto
civilizatório (com suas devidas repressões) sempre se constitui de uma historia
singular, ainda que atravessada pela cultura. A individuação de uma filha/filho
acontece em decorrência sempre parcial do infinito trabalho de elaboração
(depressão) do que Freud cunhou de complexo edipiano, território totalmente
humano, importantíssimo para a capacidade psíquica do reconhecimento da
diferença entre os sexos e das gerações.
Entender e aceitar tal premissa nem sempre é fácil, pois está no âmago
de nossa possibilidade de tolerar as diferenças e louvar nossa diversidade. O
trabalho aponta a importância da sublimação, mas é bom que se lembre que este
processo é complexo, e sempre uma estratégia de luta contra a morte, o vazio, o
nada, o desconhecido, o enigmático, o excessivo, uma tentativa de criação que
move a humanidade e a faz construir cultura e criar sempre novos espaços e
lugares sublimatórios. Acho que a internet é sem duvida uma destas criações.
Mas tudo tem seu avesso. Embora este trabalho tente responder sobre uma certa “essência”
humana, ela se revela complexa e ambivalente. Pelas portas dos banheiros tentamos
responder como tolerar nossos desejos se eles nos parecem aberrações e se (ou
quando) os discursos a nossa volta não indicam um direito a este desejo?
“Gosto muito de ver a reação do leitor, porque, às vezes, ele
ilumina o autor. O leitor percebe aquilo que o autor não tinha cogitado, de
modo que eu admito.”
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