segunda-feira, 12 de junho de 2017

Porta de banheiro: a internet do maloqueiro

Porta de banheiro: a internet do maloqueiro 

Comentários de Gisela Haddad para a Banca do TCC de Gustavo Tristão realizada na ECA  2010



As portas dos banheiros públicos são um limite interessante entre o que consideramos público e o extremamente privado. Provavelmente por ser  um local em que entramos em contato com nossas entranhas e apenas uma porta separa nossos corpos nus do resto do mundo, deixando-nos muito próximos de seus ruídos e vozes, utilizar os banheiros públicos pode despertar diferentes sentimentos e sensações aos indivíduos. É bem provável que a soma entre uma agradável sensação de anonimato e a nudez das partes do corpo que em público precisam ficar cobertas, despertem em algumas pessoas o desejo de se expressar livremente sobre temas que em geral não seriam abordados - por não serem benvindos-  em esferas sociais. É a partir desta intrigante questão que este trabalho irá tentar destrinchar as razões ou as motivações humanas que levam uma porcentagem de indivíduos a sentir prazer em abordar temas sexuais ou de asseio intimo de forma anônima (isso não só aconteceria via porta de banheiros, mas também pela internet), temas que, via de regra estariam vedados ou seriam rejeitados no social pelas convenções que regem nossa convivência. Aqui é feito uma articulação com o fato de ambas as vias facilitarem o anonimato, o que poderia ser condição para que muitos indivíduos se sintam  livres para se expressar. Ou seja, no anonimato, na minha intimidade posso dar vazão a impulsos que em outras ocasiões eu reprimiria por se constituir uma ameaça a minha boa imagem. Neste ponto inicia-se um link com a psicanálise, ao passar a refletir sobre as razões que levam um individuo a partilhar deste mundo anônimo, contribuindo com sua parcela de intimidade. E a frase paradigmática que desperta a atenção, “Porta de banheiro: a internet do maloqueiro” leva a pensar tanto no mundo interno de cada um, que de certa forma escapa pela ponta do lápis ou caneta, quanto em sua relação com a cultura, uma tentativa quem sabe de sistematizar suas complexas relações.
Pelo lado do individuo há a pergunta de quem é afinal este anônimo. Um transgressor? Alguém que se sente excluído? Um cínico? O que ele busca? Capturar a atenção do outro? Gozar de seu próprio prazer solitário de transgredir? Produzir uma catarse mental tal e qual sua catarse intestinal? Até que ponto todo anônimo quer ficar mesmo anônimo ou almeja tornar-se indiretamente visível? Será que ao escrever ali, ele se deleita ao imaginar o impacto desta leitura sobre quem irá ler? Ou busca qualquer leitor que possa em sua imaginação reconhecer ou criar uma empatia com o que ele escreve? Estas conjecturas nos levam ao singular, ao sentido que cada um pode dar a estas leituras tal e qual Gustavo, que ficou intrigado com a frase ouvida (há 12 anos) de um amigo de seu irmão - lida em uma porta de banheiro da faculdade - e que transformou este impacto nesta pesquisa sobre o significado das grafias de portas dos banheiros, a partir de seu caráter ao mesmo tempo público e íntimo. Leitura que é quase inevitável para quem utiliza tais banheiros, e tanto pode despertar curiosidade e riso como o nojo e indignação ou até o desejo do leitor de fazer alguma contribuição para aquela literatura coletiva. Um ambiente íntimo/público que tanto pode impulsionar um escritor que se sente mais excluído por sua condição social, o que não teme as leis e por isso um transgressor, alguém que esteja reivindicando sua visibilidade ou ao contrário, gozando de sua condição de expatriado, ou seja, de quem quer intencionalmente causar espanto e horror ao revelar o que normalmente a cultura mantém velado. Enfim, alguém que pode se constituir como um ser social, que apreende o sentido do que lê ali, se interessa ou imagina quem escreveu, decide interagir, responder, ou comentar. Ou não, alguém que está apenas “descarregando” sem se questionar ou se importar com o que leu ou escreveu, ou com o fato de que alguém possa ler o que ele escreve. Se há tantas possibilidades de mundos internos será que o conteúdo que cada um escolhe poderia revelar algo de si? Ou do contexto social a que pertence ou que se vive? Como entender estes processos tão complexos que permeiam nossas relações? A grafia dos banheiros e o que ela revela passa pelo uso da linguagem e sua origem como possibilidade humana de comunicação, mas principalmente de transmissão de um acervo simbólico construído e compartilhado por nós, e que estaria na própria passagem do caráter animal para o humano. É graças a sofisticação desta linguagem que partilhamos de normas e leis que possibilitam nossa convivência. São os interditos fundamentais do incesto e do assassinato, que mostram e explicam sua  utilização para entender a necessária repetição deste recalcamento originário, algo que para cada um de nós será a medida de sua ascensão ao convívio com os outros, marcando seu estilo. Pode-se resgatar por aí a história mesma da comunicação do homem com seus pares, mas também o caráter simbólico que esta comunicação carrega com os sentidos de sua mensagem, ao conter (sempre?) um conteúdo pessoal, particular. Neste sentido o caminho percorrido pela pesquisa na busca dos significados destas grafias é o de entender o comportamento humano e suas razões assim como suas diferentes categorias. Como cada um de nós constrói sua  maneira de ser? Como esta maneira de ser pode ou não partilhar de um meio social previamente estabelecido por regras e normas de convivência? Qual o papel da sexualidade humana neste percurso? Como a linguagem pode revelar algo sobre o sujeito que a utiliza e que muitas vezes nem ele sabe, ou ainda sobre aquela cultura/ época particular a qual ele pertence? Todas estas perguntas lembram a razão de ser da psicanálise, que desde sua invenção pretendeu fazer uma leitura do homem levando em conta aquilo que lhe escapa, o que fica recalcado ou negado, seja por ser moralmente indesejado, excessivamente ameaçador, impossível de ser digerido por seus recursos psíquicos, por se constituir em uma demanda que lhe excede, por ser demasiado penoso. Mas também uma leitura da cultura, da constituição do social, da força do mito fundador que ao interditar o incesto e o assassinato revelam a força de sua insistência na cultura, do acervo contido em nossas produções simbólicas cuja linguagem é “mãe”. Se a escrita é uma das mais antigas ferramentas do homem para se comunicar, nossa história humana contém toda a evolução dos meios de comunicação que construímos e refinamos ao longo dela. Podemos dizer que entre os primitivos garranchos que até hoje são temas de filmes e exploração para  entender nossas origens (vide o filme Prometheus, por exemplo) e a invenção da internet que abriu de forma incomensurável o espectro da comunicação, há uma complexa evolução nas  maneiras de interagir via o que falamos ou escrevemos. Os banheiros com seus grafitos desenham o avesso, o que se mantém reprimido, o que pode explodir, ser cruel, causar espanto, nojo, revolta e que apesar de ter um apelo de compartilhamento, tende a ser “outsider”, transgressivo.  No recorte deste trabalho sobre  a escrita, o que se escreve e porquê em uma porta de banheiro é levantada a questão civilizatória. Se pensarmos neste processo e sua evolução a partir da modernidade, é aí que alguns pensadores colocam a invenção do sujeito, ou melhor, a produção de uma subjetividade, de alguém que começa a perguntar sobre si mesmo e passa a escrever sobre isso, ou seja, de uma  reflexidade . A psicanalise só pode surgir a partir desta invenção, desta particular construção de um lugar psíquico, inicialmente para tentar entender as suas formas de sofrimento e depois para também entender sua constituição e seu funcionamento. Um sujeito que é dividido, que só pode ascender a sua condição de homem da cultura se puder recalcar uma parte de sua natureza animal, que é produzido na linguagem que o antecede, antes mesmo dele adquirir a faculdade de falar. E desde o inicio entre ele e os pais ou cuidadores responsáveis pela transmissão da linguagem estabelece-se uma lacuna, um desentendido, algo que nem os próprios transmissores conseguem perceber. O paradoxo é que apesar de sempre haver uma confusão de línguas é o encontro entre o que nasce e os que o recebem que funda cada humano. Existe, pois uma dimensão da cultura que nos antecede e que nos é transmitida via inconsciente, que não é dito em palavras, mas que passa pelo simbólico da linguagem de quem nos recebe e nos cuida. Cabe aos que cuidam poder oferecer aos que nascem a justa medida entre o amor/ódio e seus limites, entre o erótico e seus limites, entre o asseio e seus limites, etc. Uma construção complicada que diz respeito a certas renúncias que todos precisamos fazer com a ajuda do ambiente (pais, cuidadores, professores), que fazemos geralmente em nome do amor, e que poderá ou não nos introduzir de maneira equilibrada na cultura para sermos parte do projeto civilizatório que nos mantem sob certo controle, normas e leis para nosso convívio. Uma parte desta renúncia diz respeito aos interditos, outras são as que incidem diretamente na construção de sentimentos como a culpa, a vergonha e o nojo. O que Freud descobriu foi que a cada vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter que renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. É contra esta obediência “forçada” às regras da comunidade que nos consolamos escrevendo anonimamente de forma livre e sem repressões. A vergonha, como podemos lembrar pelo mito da criação na Bíblia, é considerada a primeira emoção humana, efeito da curiosidade do homem sobre si e o mundo, mas principalmente sobre a sua sexualidade ou a partir da tomada de consciência dela. A vergonha é um indicador de que teria sido alterado o valor e o sentido da sexualidade ao ser “civilizada”, assim como o comprometimento de cada um com essa sexualidade. Por isso ela é um sentimento social que faz parte da experiência formativa de nossa interioridade ao indicar a construção de uma barreira que viabiliza nossas relações com o outro, e também delimita um espaço de intimidade para cada um de nós, em que podemos dispor de nossos segredos, que podem ou não ser compartilhados com outros, segundo nossos critérios de escolha. Aqui cabem as considerações feitas sobre o conteúdo destas grafias, o caráter grotesco de muitas delas ou sua temática que escancara o que deveria ficar dissimulado. O espaço social é um espaço de dissimulação dos afetos em que o encobrimento, a mentira e a polidez  tem papéis importantes para a convivência humana. Estamos falando de pontos importantes para a evolução e manutenção do processo civilizatório dos quais fazem parte as práticas de higiene, os hábitos de etiqueta e de conversações, o segredo sobre as práticas sexuais de cada um, ou seja, tudo o que separa o público do privado.
Como contribuição a este trabalho, estas questões se enriqueceriam muito com o trabalho do sociólogo Norbert Elias sobre a história do processo civilizatório, que fez uma pesquisa minuciosa da construção do mundo privado e suas consequências a partir da modernidade. Uma destas mudanças teria sido a divisão entre o espaço público como o lugar das trocas sociais regidas por certos princípios e o privado para os afetos, e da importância do sentimento de vergonha quando nosso espaço íntimo fosse invadido, assim como quando percebemos que invadimos o espaço alheio.  Também Richard Sennet, em seu trabalho “O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade” mostra como no mundo contemporâneo, em que o sentido não é mais transcendente e os fatos possuem um significado em si e para si, as sensações, emoções, sentimentos ganharam importância e criaram uma sociedade intimista em que a cada instante e a cada momento estamos mostrando o que “realmente” somos para as outras pessoas. Antony Giddens também fala sobre a transformação da intimidade pela sexualidade, amor e erotismo e mostra as mudanças de comportamento no que chama de esfera da intimidade, enfatizando, sobretudo, a transformação no papel da mulher e a liberalização da moral sexual.
Se não esperamos que as crianças estejam aptas a compartilhar esta espécie de saber é por que sabemos que faz parte da tarefa civilizatória, cada um se apropriar das implicações e das consequências deste saber. Por isso aceitamos que as crianças  nos façam perguntas constrangedoras sobre a forma e o funcionamento do corpo humano, sobre as diferenças entre os sexos, ou sobre a incoerência ou incongruência das nossas falas e atos, porque sabemos que só quando elas puderem vivenciar o retorno do saber sobre estes constrangimentos, é que poderão sentir a vergonha. Quantas vezes a gente se lembra com vergonha de fatos de nossas vidas em que ainda não podíamos discernir sobre certos saberes. Ou seja, cada um de nós, ao nascer, precisa repetir o processo civilizatório e, portanto carregamos este legado simbólico que contém ao mesmo tempo nosso passado animal e nossas conquistas sublimes. Cada um que porta um desejo não civilizatório, não reconhece o terceiro, a lei e não respeita a transmissão deste legado. A cultura responsável por apontar o permitido e o proibido se vale das rupturas morais de cada época e redimensiona estas balizas. Hoje não só vivemos em um espaço social mais complexo como liberamos nossos corpos de muitos de seus tabus. São corpos mais erotizados e investidos libidinalmente, mas sempre atravessados pela linguagem (e o que ela contém deste passado) e pela cultura. Vale sublinhar Foucault e sua antecipação sobre a produção de controles disfarçados, exercidos de forma menos vertical e centralizado, que produz exclusões mais veladas. Sem dúvida por aí o papel das portas de banheiros assume uma condição libertária do discurso oficial politico ou moral.
Voltando à psicanalise, se ela tenta fazer uma leitura da construção de nossa complexa subjetividade e supondo que ela  consiga sistematizar um saber sobre suas imensas possibilidades, ela convive com um limite que a interroga constantemente (ainda bem) que é o fato de que a construção de um sujeito ou a historia de como ele é introduzido e se apropria de seu lugar no projeto civilizatório (com suas devidas repressões) sempre se constitui de uma historia singular, ainda que atravessada pela cultura. A individuação de uma filha/filho acontece em decorrência sempre parcial do infinito trabalho de elaboração (depressão) do que Freud cunhou de complexo edipiano, território totalmente humano, importantíssimo para a capacidade psíquica do reconhecimento da diferença entre os sexos e das gerações.
Entender e aceitar tal premissa nem sempre é fácil, pois está no âmago de nossa possibilidade de tolerar as diferenças e louvar nossa diversidade. O trabalho aponta a importância da sublimação, mas é bom que se lembre que este processo é complexo, e sempre uma estratégia de luta contra a morte, o vazio, o nada, o desconhecido, o enigmático, o excessivo, uma tentativa de criação que move a humanidade e a faz construir cultura e criar sempre novos espaços e lugares sublimatórios. Acho que a internet é sem duvida uma destas criações. Mas tudo tem seu avesso. Embora este trabalho tente responder sobre uma certa “essência” humana, ela se revela complexa e ambivalente. Pelas portas dos banheiros tentamos responder como tolerar nossos desejos se eles nos parecem aberrações e se (ou quando) os discursos a nossa volta não indicam um direito a este desejo?
“Gosto muito de ver a reação do leitor, porque, às vezes, ele ilumina o autor. O leitor percebe aquilo que o autor não tinha cogitado, de modo que eu admito.”


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