quinta-feira, 8 de junho de 2017

Diálogos de amor: porque ansiamos e sofremos por amor

Diálogos de amor: porque ansiamos e sofremos por amor
Gisela Haddad

Por que um psicanalista deveria falar sobre o amor, terra de poetas e artistas que desde séculos destrincham suas faces e seus mistérios? Talvez porque o psicanalista escuta as coisas da alma, e de certa forma o valor do amor para cada um, suas historias de amor particular, seu romance familiar, de amor, mas também de dores. Afinal o que nos faz humanos, ou seja, que nos constitui subjetivamente é um encontro de almas.
E porque falar de amor? Desde o século XV Shakespeare  inaugurava uma literatura em que o homem passava a se questionar sobre seus  sentimentos, evidenciando os dilemas da alma humana diante de suas contradições. Hoje isso se tornou corriqueiro e nem precisamos mencionar apenas a literatura, somos invadidos por imagens de filmes, novelas ou mesmo cenas do cotidiano relatadas pela mídia que nos emocionam e nos capturam, obrigando-nos a compartilhar da alegria, da tristeza  ou dos tormentos dos personagens.
Mas o que é o amor? Como sabemos se estamos amando ou não? Que amores reverenciar ou quais rejeitar? Existe diferença entre paixão e amor? E entre o amor por nossos parceiros, nossos pais, nossos filhos, nossos irmãos?
A verdade é que o amor ocupa um lugar quase sagrado na cultura ocidental  e  em geral não discutimos suas razões.  Mesmo que ele tenha assumido feições diferentes pela história, seu valor se mantém incontestável. Diante de frases como “ele a ama” ou “ela o ama muito”, “ela /ele fez por amor”, o assunto se encerra. Sabemos do que se trata ao mesmo tempo em que não podemos explicar muito bem. Mistérios da alma e ponto final.
Mas mesmo que evitemos questionar o valor do amor, mesmo que o amor acabe sempre transcendendo nossas representações, é possível historiar suas transformações ao longo da cultura humana. Vamos tentar fazer um rápido passeio por elas.
Para os antigos, em especial os gregos, o Amor Supremo, que continha as qualidades da Justiça, da Beleza e da Verdade figurava como o grande ideal de cada cidadão e estava atado às virtudes com as quais cada um queria ser reconhecido pelo coletivo. O amor sensual não era proibido, mas o domínio sobre seus excessos era bem-visto como um caminho para o supremo bem. A era cristã inaugurou um longo domínio sobre os destinos do amor, separando de um lado o amor permitido, dirigido a Deus e ao semelhante e de outro o amor proibido, carnal e pecaminoso. Entre os desejos “carnais” – a gula, por exemplo - o sexo era o mais temido por ser o mais rebelde e persistente, e visto, portanto como algo poderoso. Por isso não podemos deixar de sublinhar a grande importância que a Igreja Católica teve no entendimento do valor do amor para nós modernos, tanto do amor com o sentido de Bem Supremo quanto do amor erótico ou sensual. A igreja assumiu a tarefa de controlar ou conter a sexualidade pregando o abandono de interesses mundanos da cidade, e valorizando a vida de casal e o recolhimento. A partir de Santo Agostinho é possível perceber a inclusão do amor- paixão a Deus, um amor que será vivido internamente, acompanhado de uma reflexão sobre seus efeitos. A Igreja passa a convidar a todos a buscar dentro de si o amor a Deus e será este êxtase sentimental o núcleo das paixões amorosas herdadas pelo romantismo. O amor passa a vir de dentro, das entranhas e esta interioridade irá definir o individuo da modernidade.
Sabemos que o desejo de saber manifestou-se desde os tempos mais primitivos como uma tentativa do homem para lidar com o medo e com as angústias que o assolavam no contato com a Natureza e com seus semelhantes. A religião, as primeiras descobertas e a ciência são criações humanas que tentam diminuir esse sofrimento, sugerindo, inclusive, suas utopias e seus ideais de conseguir, um dia, suprimi-lo de forma absoluta. Em muitos momentos compartilhamos esse sonho, deixamo-nos embarcar nessa expedição em busca do melhor dos mundos. Porém, por paradoxal que possa parecer, quando se pode fazer um “retorno” ao mundo em que que se vive, com suas mazelas e seus sofrimentos, é um ato de liberdade.
O nascimento da ciência marca o inicio da Modernidade. Descartes, a Razão, o Iluminismo são ícones modernos que pretenderam elevar o homem ao centro do universo. Assim, somente pelo uso da razão sairíamos das trevas em direção à aquisição de conhecimentos que finalmente nos permitiriam entender e controlar a natureza, e podemos acrescentar aqui a importância do entendimento da natureza humana. Ao voltarmos nosso olhar para os séculos modernos podemos afirmar que a ciência mudou e muito nossas vidas e se comparamos às vidas humanas do longo período da Idade Média, estas mudanças foram rápidas, em especial as do último século, com o avanço das biotecnociencias. Mas se estas transformações nos trouxeram confortos e benesses inimagináveis é verdade que em relação aos costumes e à moral nosso mundo virou de ponta cabeça, indicando que para o quesito felicidade a coisa é bem mais complexa.
Alguns pensadores destacam o papel da tradição como um critério para a divisão entre o mundo pré-moderno e moderno. No mundo antigo, os homens nasceriam com lugares predeterminados, sem chances de transitarem por lugares sociais diferentes. Nascidos escravos, ferreiros ou aristocratas, morriam como tal. Os valores e costumes funcionavam mais como crenças do que acordos sociais. A Igreja funcionava como a única doadora de regras, impondo suas leis e suas punições via  controle dos saldos de pecados.O mundo moderno irá criar o universo das leis e passará ao Estado esta função de controle das normas e costumes. Assim as  certezas que vinham pelo reconhecimento da comunidade à que cada um pertencia, as certezas morais e cognitivas transmitidas pela tradição, a segurança de um destino preestabelecido pelo projeto de um Deus onisciente se esvaneceram. Caberia a cada um cuidar de si, de seu destino, de suas escolhas, e também de sua parceria amorosa. O amor romântico acenava com uma junção possível: casamento, amor e sexo a serviço da família conjugal. Mas nos primeiros séculos modernos a Igreja ainda emprestará seus códigos morais, na tentativa de cobrir o desamparo e o vazio deixado pela quebra destas tradições. Aos poucos o amor vai passar a ser uma peça essencial na cultura individualista que, à frente das lutas atropelará as tradições, enfrentará as barreiras sociais, as raças, culturas, religiões e preconceitos. Seu sucesso se manterá porque assim como o agir humano, sua razão é subjetiva: quando fazemos algo por amor, fazemos por nós mesmos, sem precisar obedecer a ninguém, se não às nossas paixões. Casamos ou vivemos juntos porque amamos e aos poucos a cultura pode “naturalizar” o fato de que nossas escolhas sejam fundadas no amor. Hoje nos surpreendemos quando isso não acontece e em geral classificamos estas escolhas como hipócritas ou interesseiras. Cuidamos de nossas crianças porque as amamos e quando isso não acontece estranhamos. Talvez porque sejam razões que testemunhem nossa autonomia conquistada às duras penas. Por outro lado ficamos tateando novos valores em particular os que giram em torno do amor e da sexualidade, eixos modernos de nossas vidas. Namoros, sexo, casamentos, descendências, educação e destino dos filhos são temas que se tornaram atuais e pedem reflexões e debates. Nossas parcerias românticas construídas na promessa da incondicionalidade, da exclusividade e da felicidade demonstram não ter garantias. O amor nos deixa desprotegidos contra o sofrimento, a mercê do outro e expostos a dores extremas sempre que somos rejeitados, traídos ou abandonados. A enorme expectativa que depositamos sobre nossas parcerias amorosas é quase sempre um terreno propício à frustração e a decepção. Cada vez mais temos que enfrentar uma revisão ou mesmo o desabamento de nossos projetos de realização erótica e existencial a dois. Por quê? O que mudou?
Em geral as mudanças nos costumes e nos valores costumavam ser mais lentas. Passavam-se décadas até que um novo costume pudesse ultrapassar as resistências naturais às mudanças e se impor como novidade aceita. O mundo atual pede uma aceleração jamais vista. Em poucas décadas vimos alguns de nossos mais caros valores serem questionados, derrubados e substituídos. Os processos de emancipação feminina e a desconstrução dos papéis masculinos e femininos redefiniram a família, o papel do amor, a vida profissional e transformaram profundamente as relações.
Antes o masculino e o feminino formavam um par e um só se definia em relação ao outro. Os estudos sobre gênero tem apontado o fato de que cada sociedade constrói de um jeito a diferença dos sexos, o que faz cair por terra a naturalização desta diferença.  Por séculos a feminilidade esteve ligada ao lugar que a mulher ocupava junto ao homem, já que era definida e interpretada a partir da concepção dos homens. Eram eles quem definia o que a caracterizava, como ela deveria se portar, seus limites e encargos. Vale notar que as mulheres só começaram a escrever sobre si mesmas há poucas décadas.
Também na configuração da família tradicional burguesa os lugares de cada um estavam muito bem definidos. Mas as mudanças descritas acima foram desconstruindo este modelo fazendo surgir um sentimento de luto e certa nostalgia em relação a esta perda. Na verdade a família não se acabou, apenas teve que se ajustar aos novos tempos. Ainda desejamos formar uma família, viver em família e criar condições de convívio protetoras e agradáveis. Elas continuam a ser  famílias tranquilas e bem estruturadas ou atrapalhadas e tensas. Por estarem baseadas em um contrato de caráter mais transitório entre os cônjuges aumentam os divórcios, as separações e a recomposição conjugal. Talvez esta nova configuração revele com mais ênfase o eterno conflito entre nossos sonhos de sossego e nossos anseios de independência.
E o amor? O amor segue como o grande protagonista do psiquismo humano, gerando inúmeras historias. Talvez porque nossas relações amorosas são desde a nossa infância as responsáveis pelas nossas ficções. São elas que nos guiam no contato com o mundo. Já há algum tempo estas histórias nos dão pistas sobre o percurso do amor na cultura, assim como as ligações nem sempre pacíficas entre amor e sexo. São elas que marcam as maneiras de amar e as transformações do erotismo. Herdeiro da literatura, o cinema se constituiu no grande repertório amoroso da atualidade e sempre nos premia com algumas referencias sobre estas mudanças que em geral nos deixam divididos.
Vejamos. O filme “Tinha que ser você” (Last Chance Harvey/2009) do diretor Joel Hopkin com Dustin Hoffman e Emma Thompson, apesar de ser mais um filme sobre uma história de amor banal, nos oferece um ótimo panorama das mudanças de que falamos: amores, casamento, família, separação, filhos, trabalho, novos amores e futuro.
Harvey é um compositor de jingles frustrado que trabalha em uma agência de publicidade de Nova York e cujo grande sonho era ter sido um pianista de jazz. Aos 60 e poucos anos, separado já a algum tempo de sua esposa, precisa ir a Londres para o casamento de sua filha. Na cena inicial percebe-se certa tensão entre Harvey e seu chefe, que tenta convencê-lo a aceitar suas direções de um projeto em andamento. Harvey parece ter dificuldades em negociar seus desejos e mesmo sua ida a Londres parece desagradar ao chefe que preferia vê-lo mergulhado neste trabalho. Desde sua chegada a Londres fica evidente seu desconforto em ter que encontrar sua antiga família e embora saiba estar sendo esperado para participar do ensaio do casamento, demora-se no bar do hotel tomando alguns drinks na tentativa de se encorajar. Sua ex-mulher está há tempos casada com Scott, que ao contrário dele se sente à vontade (talvez muito para seu gosto) como o padrasto de sua filha. Sentindo-se um peixe fora d’água, Harvey tenta se adequar aos protocolos do cerimonial. Mas tudo pode piorar e piora. Sua filha, depois do abraço e entre sorrisos, pergunta-lhe delicadamente se ele se importaria que Scott entrasse com ela na igreja. Já meio alto, Harvey  fica tomado pela mágoa e desiste de participar da cerimonia. Em um ímpeto, decide voltar para  NY, mas perde o avião. Neste ínterim recebe um telefonema de seu chefe demitindo-o e, desorientado, entrega-se a bebida no bar do aeroporto, local em que conhecerá Kate. Kate trabalha no departamento de estatísticas do aeroporto e assim como Harvey, tem uma vida solitária, dedicada a cuidar de sua mãe doente que a solicita  permanentemente. Sentada no mesmo bar com amigos, seu celular toca inúmeras vezes com chamadas da mãe. Kate olha os casais à sua volta, um olhar que denuncia seu anseio por uma companhia. Neste momento está sentada junto com amigos e com alguém apresentado por a amiga- cupido, prática que, longe de ser criticada pode muitas vezes ser um canal interessante para juntar solitários. Na verdade este filme desvenda as dificuldades pessoais de Harvey e Kate no quesito relações amorosas. Ambos parecem desacreditar na possibilidade de manterem uma relação, embora de formas diferentes. Harvey se ressente de seu passado enquanto Kate parece ter medo de arriscar. Ao que parece, o impacto sofrido por Harvey o faz repensar sobre sua situação. Quando o destino os junta, abre-se um horizonte para ambos. À medida que seu interesse por Kate aumenta Harvey começa a poder colocar palavras em seus sentimentos. O interesse de Kate pela história de mágoas de Harvey faz com que este possa  redimensionar sua historia e sua relação com a filha e a ex-mulher. O mais duro, segundo sua própria conclusão, tinha sido perceber que ele não fazia parte da família. Era um estranho. Não combinava com a mobília. Confessa talvez pela primeira vez que Scott, ao contrário, havia caído como uma luva. Ele combinava com a mobília, e tinha sido um bom pai para a sua filha e um ótimo marido para a sua mulher. Diante de “verdades” tão cruas, Kate tem um momento de insight. Ela o convence a ir ao casamento e ele a convence a ir com ele. Sentindo-se amparado por suas conclusões e pela companhia amorosa de Kate, Harvey consegue surpreender a si e aos membros da família, que acostumados a um convívio tenso entre ele e Scott, podem ouvir um inesperado discurso em que os pontos nos “is” finalmente foram colocados.
Ao invés de olhar o passado como algo que não poderia ou não deveria ter acontecido, um sintoma psíquico que o engessava, Harvey começa a pensar que tinha o presente e o futuro. A dor de saber-se não especial e descartável, de ser substituível no amor do outro era insuportável. É difícil conseguirmos conviver sabendo não haver nada que garanta o amor eterno  e que garanta que seremos amados incondicionalmente, mantendo para sempre o par perfeito. Ao contrário, há sempre condições para o amor continuar a existir e estas estão ligadas ao como cada um consegue negociar com o que imagina lhe ser prometido, esperado, permitido e proibido. São maneiras de desejar, de ser reconhecido e de pedir amor.


Texto apresentado no evento “A psicologia entre dores e amores” realizado  pelo curso de Psicologia da UNIP  Araraquara  no 27 de agosto 2010

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