Diálogos de amor: porque ansiamos e sofremos por
amor
Gisela Haddad
Por que um psicanalista deveria falar sobre o amor,
terra de poetas e artistas que desde séculos destrincham suas faces e seus mistérios?
Talvez porque o psicanalista escuta as coisas da alma, e de certa forma o valor
do amor para cada um, suas historias de amor particular, seu romance
familiar, de amor, mas também de dores. Afinal o que nos faz humanos, ou seja,
que nos constitui subjetivamente é um encontro de almas.
E porque falar de amor? Desde o século XV Shakespeare
inaugurava uma literatura em que o homem
passava a se questionar sobre seus sentimentos,
evidenciando os dilemas da alma humana diante de suas contradições. Hoje isso
se tornou corriqueiro e nem precisamos mencionar apenas a literatura, somos
invadidos por imagens de filmes, novelas ou mesmo cenas do cotidiano relatadas
pela mídia que nos emocionam e nos capturam, obrigando-nos a compartilhar da alegria,
da tristeza ou dos tormentos dos
personagens.
Mas o que é o amor? Como sabemos se estamos amando
ou não? Que amores reverenciar ou quais rejeitar? Existe diferença entre paixão
e amor? E entre o amor por nossos parceiros, nossos pais, nossos filhos, nossos
irmãos?
A verdade é que o amor ocupa um lugar quase sagrado
na cultura ocidental e em geral não discutimos suas razões. Mesmo que ele tenha assumido feições
diferentes pela história, seu valor se mantém incontestável. Diante de frases
como “ele a ama” ou “ela o ama muito”, “ela /ele fez por amor”, o assunto se encerra.
Sabemos do que se trata ao mesmo tempo em que não podemos explicar muito bem. Mistérios
da alma e ponto final.
Mas mesmo que evitemos questionar o valor do amor,
mesmo que o amor acabe sempre transcendendo nossas representações, é possível
historiar suas transformações ao longo da cultura humana. Vamos tentar fazer um
rápido passeio por elas.
Para os antigos, em especial os gregos, o Amor
Supremo, que continha as qualidades da Justiça, da Beleza e da Verdade figurava
como o grande ideal de cada cidadão e estava atado às virtudes com as quais
cada um queria ser reconhecido pelo coletivo. O amor sensual não era proibido,
mas o domínio sobre seus excessos era bem-visto como um caminho para o supremo
bem. A era cristã inaugurou um longo domínio sobre os destinos do amor,
separando de um lado o amor permitido, dirigido a Deus e ao semelhante e de
outro o amor proibido, carnal e pecaminoso. Entre os desejos “carnais” – a gula,
por exemplo - o sexo era o mais temido por ser o mais rebelde e persistente, e
visto, portanto como algo poderoso. Por isso não podemos deixar de sublinhar a
grande importância que a Igreja Católica teve no entendimento do valor do amor
para nós modernos, tanto do amor com o sentido de Bem Supremo quanto do amor
erótico ou sensual. A igreja assumiu a tarefa de controlar ou conter a
sexualidade pregando o abandono de interesses mundanos da cidade, e valorizando
a vida de casal e o recolhimento. A partir de Santo Agostinho é possível
perceber a inclusão do amor- paixão a Deus, um amor que será vivido internamente,
acompanhado de uma reflexão sobre seus efeitos. A Igreja passa a convidar a
todos a buscar dentro de si o amor a Deus e será este êxtase sentimental o
núcleo das paixões amorosas herdadas pelo romantismo. O amor passa a vir de
dentro, das entranhas e esta interioridade irá definir o individuo da
modernidade.
Sabemos que o desejo de saber manifestou-se desde os
tempos mais primitivos como uma tentativa do homem para lidar com o medo e com
as angústias que o assolavam no contato com a Natureza e com seus semelhantes.
A religião, as primeiras descobertas e a ciência são criações humanas que
tentam diminuir esse sofrimento, sugerindo, inclusive, suas utopias e seus
ideais de conseguir, um dia, suprimi-lo de forma absoluta. Em muitos momentos
compartilhamos esse sonho, deixamo-nos embarcar nessa expedição em busca do
melhor dos mundos. Porém, por paradoxal que possa parecer, quando se pode fazer
um “retorno” ao mundo em que que se vive, com suas mazelas e seus sofrimentos,
é um ato de liberdade.
O nascimento da ciência marca o inicio da
Modernidade. Descartes, a Razão, o Iluminismo são ícones modernos que
pretenderam elevar o homem ao centro do universo. Assim, somente pelo uso da
razão sairíamos das trevas em direção à aquisição de conhecimentos que
finalmente nos permitiriam entender e controlar a natureza, e podemos acrescentar
aqui a importância do entendimento da natureza humana. Ao voltarmos nosso olhar
para os séculos modernos podemos afirmar que a ciência mudou e muito nossas
vidas e se comparamos às vidas humanas do longo período da Idade Média, estas
mudanças foram rápidas, em especial as do último século, com o avanço das
biotecnociencias. Mas se estas transformações nos trouxeram confortos e
benesses inimagináveis é verdade que em relação aos costumes e à moral nosso
mundo virou de ponta cabeça, indicando que para o quesito felicidade a coisa é
bem mais complexa.
Alguns pensadores destacam o papel da tradição como
um critério para a divisão entre o mundo pré-moderno e moderno. No mundo
antigo, os homens nasceriam com lugares predeterminados, sem chances de
transitarem por lugares sociais diferentes. Nascidos escravos, ferreiros ou
aristocratas, morriam como tal. Os valores e costumes funcionavam mais como
crenças do que acordos sociais. A Igreja funcionava como a única doadora de
regras, impondo suas leis e suas punições via
controle dos saldos de pecados.O mundo moderno irá criar o universo das
leis e passará ao Estado esta função de controle das normas e costumes. Assim as
certezas que vinham pelo reconhecimento da comunidade à que cada um
pertencia, as certezas morais e cognitivas transmitidas pela tradição, a segurança
de um destino preestabelecido pelo projeto de um Deus onisciente se esvaneceram.
Caberia a cada um cuidar de si, de seu destino, de suas escolhas, e também de
sua parceria amorosa. O amor romântico acenava com uma junção
possível: casamento, amor e sexo a serviço da família conjugal. Mas nos
primeiros séculos modernos a Igreja ainda emprestará seus códigos morais, na
tentativa de cobrir o desamparo e o vazio deixado pela quebra destas tradições.
Aos poucos o amor vai passar a
ser uma peça essencial na cultura individualista que, à frente das lutas atropelará
as tradições, enfrentará as barreiras sociais, as raças, culturas, religiões e
preconceitos. Seu sucesso se manterá porque assim como o agir humano, sua razão
é subjetiva: quando fazemos algo por amor, fazemos por nós mesmos, sem precisar
obedecer a ninguém, se não às nossas paixões. Casamos ou vivemos juntos porque
amamos e aos poucos a cultura pode “naturalizar” o fato de que nossas escolhas sejam
fundadas no amor. Hoje nos surpreendemos quando isso não acontece e em geral classificamos
estas escolhas como hipócritas ou interesseiras. Cuidamos de nossas crianças
porque as amamos e quando isso não acontece estranhamos. Talvez porque sejam
razões que testemunhem nossa autonomia conquistada às duras penas. Por outro
lado ficamos
tateando novos valores em particular os que giram em torno do amor e da
sexualidade, eixos modernos de nossas vidas. Namoros, sexo, casamentos, descendências,
educação e destino dos filhos são temas que se tornaram atuais e pedem
reflexões e debates. Nossas parcerias românticas construídas na promessa da
incondicionalidade, da exclusividade e da felicidade demonstram não ter
garantias. O amor nos deixa desprotegidos contra o sofrimento, a mercê do outro
e expostos a dores extremas sempre que somos rejeitados, traídos ou
abandonados. A enorme expectativa que depositamos sobre nossas parcerias
amorosas é quase sempre um terreno propício à frustração e a decepção. Cada vez
mais temos que enfrentar uma revisão ou mesmo o desabamento de nossos projetos
de realização erótica e existencial a dois. Por quê? O que mudou?
Em geral as mudanças nos costumes e nos valores costumavam
ser mais lentas. Passavam-se décadas até que um novo costume pudesse
ultrapassar as resistências naturais às mudanças e se impor como novidade
aceita. O mundo atual pede uma aceleração jamais vista. Em poucas décadas vimos
alguns de nossos mais caros valores serem questionados, derrubados e
substituídos. Os processos de
emancipação feminina e a desconstrução dos papéis masculinos e femininos redefiniram
a família, o papel do amor, a vida profissional e transformaram profundamente
as relações.
Antes o masculino e o feminino formavam um par e um só se definia em
relação ao outro. Os estudos sobre gênero tem apontado o fato de que cada
sociedade constrói de um jeito a diferença dos sexos, o que faz cair por terra
a naturalização desta diferença. Por
séculos a feminilidade esteve ligada ao lugar que a mulher ocupava junto ao
homem, já que era definida e interpretada a partir da concepção dos homens. Eram eles quem definia o que a caracterizava, como ela deveria se portar, seus
limites e encargos. Vale notar que as mulheres só começaram a escrever sobre si
mesmas há poucas décadas.
Também na configuração da família tradicional burguesa os lugares de
cada um estavam muito bem definidos. Mas as mudanças descritas acima foram
desconstruindo este modelo fazendo surgir um sentimento de luto e certa nostalgia
em relação a esta perda. Na verdade a família não se acabou, apenas teve que se
ajustar aos novos tempos. Ainda desejamos formar uma família, viver em família
e criar condições de convívio protetoras e agradáveis. Elas continuam a ser famílias tranquilas e bem estruturadas ou atrapalhadas
e tensas. Por estarem baseadas em um contrato de caráter mais transitório entre
os cônjuges aumentam os divórcios, as separações e a recomposição conjugal. Talvez
esta nova configuração revele com mais ênfase o eterno conflito entre nossos
sonhos de sossego e nossos anseios de independência.
E o amor? O amor segue como o grande protagonista do
psiquismo humano, gerando inúmeras historias. Talvez porque nossas relações
amorosas são desde a nossa infância as responsáveis pelas nossas ficções. São
elas que nos guiam no contato com o mundo. Já há algum tempo estas histórias
nos dão pistas sobre o percurso do amor na cultura, assim como as ligações nem
sempre pacíficas entre amor e sexo. São elas que marcam as maneiras de amar e
as transformações do erotismo.
Herdeiro da literatura, o cinema se constituiu no grande repertório amoroso da
atualidade e sempre nos premia com algumas referencias sobre estas mudanças que
em geral nos deixam divididos.
Vejamos. O filme “Tinha que ser você” (Last Chance Harvey/2009) do diretor Joel Hopkin com Dustin Hoffman e Emma
Thompson, apesar de ser mais um filme sobre uma história de amor banal, nos
oferece um ótimo panorama das mudanças de que falamos: amores, casamento, família,
separação, filhos, trabalho, novos amores e futuro.
Harvey é um
compositor de jingles frustrado que trabalha em uma agência de publicidade de
Nova York e cujo grande sonho era ter sido um pianista de jazz. Aos 60 e poucos
anos, separado já a algum tempo de sua esposa, precisa ir a Londres para o casamento
de sua filha. Na cena inicial percebe-se certa tensão entre Harvey e seu chefe,
que tenta convencê-lo a aceitar suas direções de um projeto em andamento. Harvey
parece ter dificuldades em negociar seus desejos e mesmo sua ida a Londres parece
desagradar ao chefe que preferia vê-lo mergulhado neste trabalho. Desde sua
chegada a Londres fica evidente seu desconforto em ter que encontrar sua antiga
família e embora saiba estar sendo esperado para participar do ensaio do
casamento, demora-se no bar do hotel tomando alguns drinks na tentativa de se
encorajar. Sua ex-mulher está há tempos casada com Scott, que ao contrário dele
se sente à vontade (talvez muito para seu gosto) como o padrasto de sua filha. Sentindo-se
um peixe fora d’água, Harvey tenta se adequar aos protocolos do cerimonial. Mas
tudo pode piorar e piora. Sua filha, depois do abraço e entre sorrisos, pergunta-lhe
delicadamente se ele se importaria que Scott entrasse com ela na igreja. Já
meio alto, Harvey fica tomado pela mágoa
e desiste de participar da cerimonia. Em um ímpeto, decide voltar para NY, mas perde o avião. Neste ínterim recebe um
telefonema de seu chefe demitindo-o e, desorientado, entrega-se a bebida no bar
do aeroporto, local em que conhecerá Kate. Kate trabalha no departamento de
estatísticas do aeroporto e assim como Harvey, tem uma vida solitária, dedicada
a cuidar de sua mãe doente que a solicita permanentemente. Sentada no mesmo bar com
amigos, seu celular toca inúmeras vezes com chamadas da mãe. Kate olha os
casais à sua volta, um olhar que denuncia seu anseio por uma companhia. Neste
momento está sentada junto com amigos e com alguém apresentado por a amiga-
cupido, prática que, longe de ser criticada pode muitas vezes ser um canal
interessante para juntar solitários. Na verdade este filme desvenda as dificuldades
pessoais de Harvey e Kate no quesito relações amorosas. Ambos parecem
desacreditar na possibilidade de manterem uma relação, embora de formas
diferentes. Harvey se ressente de seu passado enquanto Kate parece ter medo de arriscar.
Ao que parece, o impacto sofrido por Harvey o faz repensar sobre sua situação. Quando
o destino os junta, abre-se um horizonte para ambos. À medida que seu interesse
por Kate aumenta Harvey começa a poder colocar palavras em seus sentimentos. O
interesse de Kate pela história de mágoas de Harvey faz com que este possa redimensionar sua historia e sua relação com a
filha e a ex-mulher. O mais duro, segundo sua própria conclusão, tinha sido
perceber que ele não fazia parte da família. Era um estranho. Não combinava com
a mobília. Confessa talvez pela primeira vez que Scott, ao contrário, havia
caído como uma luva. Ele combinava com a mobília, e tinha sido um bom pai para
a sua filha e um ótimo marido para a sua mulher. Diante de “verdades” tão cruas,
Kate tem um momento de insight. Ela o convence a ir ao casamento e ele a
convence a ir com ele. Sentindo-se amparado por suas conclusões e pela
companhia amorosa de Kate, Harvey consegue surpreender a si e aos membros da família,
que acostumados a um convívio tenso entre ele e Scott, podem ouvir um
inesperado discurso em que os pontos nos “is” finalmente foram colocados.
Ao invés de olhar o
passado como algo que não poderia ou não deveria ter acontecido, um sintoma psíquico
que o engessava, Harvey começa a pensar que tinha o presente e o futuro. A dor
de saber-se não especial e descartável, de ser substituível no amor do outro
era insuportável. É difícil conseguirmos conviver sabendo não haver nada que
garanta o amor eterno e que garanta que
seremos amados incondicionalmente, mantendo para sempre o par perfeito. Ao
contrário, há sempre condições para o amor continuar a existir e estas estão ligadas
ao como cada um consegue negociar com o que imagina lhe ser prometido, esperado,
permitido e proibido. São maneiras de desejar, de ser reconhecido e de pedir
amor.
Texto apresentado no
evento “A psicologia entre dores e amores” realizado pelo curso de Psicologia da UNIP Araraquara no 27 de agosto 2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário