segunda-feira, 12 de junho de 2017

A família entre a cultura e a subjetividade atual: o papel do amor

A família entre a cultura e a subjetividade atual: o papel do amor

O trabalho de Foucault é hoje uma referência para pensarmos a contextualização histórica e social  da experiência humana e das verdades  e crenças  que dão sentido as relações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo. Não sendo a subjetividade nem universal nem prévia, torna-se necessário analisar os mecanismos de sua construção dentro de determinada época para saber sobre a constituição dos estilos de existência, das estruturas sociais que sustentam os sujeitos e das relações de poder que os dominam. Para Foucault (apud Bezerra Junior, 2000), é sobre estas formas de poder que se produzem campos de resistência, que na modernidade concentram-se na esfera subjetiva. A psicanálise freudiana protagonizou uma leitura inédita e subversiva das experiências subjetivas de seu tempo ao dar sentido à sintomas psíquicos perturbadores, revelando um cenário de fantasias humanas nem sempre sensatas ou coerentes e desvendando um sujeito dividido entre seus desejos e as exigências e proibições de sua cultura.
Nas últimas décadas, a cultura ocidental foi palco de intensas mudanças e invadiu quase todos os setores da vida humana. Seus ícones passaram a ser temas de pesquisas de diferentes áreas de conhecimento, que não só reconhecem sua importância e sua permanente  transformação, como buscam refletir sobre seus novos paradigmas. Tema privilegiado pela sociedade ocidental, a família, ícone cultural por excelência, tem sido alvo de estudos interdisciplinares que buscam constituir um saber a respeito de seu sentido e função na era contemporânea. Lugar especial no qual o bebê humano nasce, é cuidado, satisfaz suas primeiras necessidades, efetua seus primeiros intercâmbios afetivos, e é objeto de investimento amoroso, a família reúne um sistema de relações simbólicas e emocionais que lhe asseguram o lugar de importante núcleo de produção de subjetividade. No último século, este núcleo  familiar viu-se atropelado por mudanças culturais importantes  e por novas possibilidades que a ciência produziu.
Os avanços  da biotecnociências foram responsáveis por uma reviravolta no processo da reprodução humana, provocando uma revolução no próprio conceito que designava até pouco tempo a união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os filhos. Mudanças nos papéis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, na gestão da autoridade, na educação e transmissão dos valores e normas para as novas gerações, produzem discursos às vezes  alarmantes às vezes nostálgicos diante de um futuro que se apresenta incerto. Este texto pretende refletir sobre estas mudanças através da articulação entre a cultura e a produção de subjetividade na atualidade e analisar as regras e normas que hoje orientam e regulamentam a vida familiar ocidental e sua absorção de tais mudanças. Para isso partiremos de uma breve revisão da história da família moderna, ressaltando o valor do amor na constituição de um novo modelo familiar e de uma particular subjetividade que passa a existir a partir da Modernidade.
Após as revoluções burguesas do século XVIII  o espírito moderno apostou que a razão humana igual para todos pudesse assumir o exercício  de organizar as condutas e os consensos necessários ao convívio. Mas a tarefa de nos livrarmos das hierarquias pré-estabelecidas e exaltar o indivíduo como membro de uma humanidade comum se mostrou lenta e árdua, além de produzir inúmeros restos. O modelo familiar que conhecemos surge em meio à euforia do projeto civilizatório iluminista e teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal projeto englobava uma proposta filosófica e política para a sociedade burguesa que  pretendia fazer do amor apaixonado a base da construção da família, o que significava integrar a sexualidade ao amor e ao casamento. Bem recebida na época pelos literatos em geral, tal composição não só se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos como previa um arranjo conjugal em que a sexualidade ganhava legitimidade. Mas Gay (2000) denuncia como a imaginação do século XIX vai ficar capturada pelo componente físico da vida erótica e das estratégias de conquista sexual, com suas promessas de êxtase. Para a sociedade burguesa de então, era de mister importância que a bandeira do amor servisse de norte para os excessos do sexo e não faltava literatura cuja finalidade era a de mostrar os destinos trágicos do apaixonamento quando este não se enquadrava  na construção da família. O amor poderia incluir os suspiros do sexo, mas deveria seguir um percurso de sensatez e atender os compromissos de criação dos filhos, reprodução da família e formação do cidadão. Era este o cenário em que a dupla moral burguesa denunciada por Freud (1908),  expunha  as limitações impostas pela cultura à satisfação sexual principalmente das mulheres, chamadas a  privilegiar seu papel de mãe. A literatura romântica da época era pródiga em incentivar  o amor como remédio aos excessos do sexo, prescrevendo  destinos trágicos às paixões que se afastavam dos moldes previstos pela família burguesa. Grande parte dos romances narravam histórias de amor em que os sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências amorosas cujas paixões e  desesperos passam a colorir  as fantasias humanas. As  narrativas românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar  uma interioridade psicológica  com  identidades  fundadas em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência amorosa inédita. Nascia um novo conhecimento, uma ciência do homem, de suas particularidades e singularidades, expressa por uma nova linguagem, auto-referente, com  sujeitos capazes de falar de si.
O amor romântico se consolida em um  ideal reverenciado pela sociedade,  suporte deste modelo de família e parte  de um horizonte futuro da vida de cada um , uma aspiração  poderosa que acenava com a  possibilidade de uma felicidade humana terrena em contraposição aos  antigos ideais religiosos. Também inaugura uma convivência familiar mais centrada em seu núcleo pai-mãe-filhos,  transformando-se  em uma fortaleza afetiva restrita, o que funda a vida privada e íntima, característica da era burguesa.
Como bem aponta Roudinesco ( 2002), os casamentos realizados por amor começam a apresentar, a longo prazo,  um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O  bem-estar familiar  gira em torno deste ‘ninho’ e  à mulher resta o papel de mãe que ganha as atenções e a reverência da sociedade. O amor materno passa a ocupar um espaço jamais conquistado anteriormente na história da humanidade e seu corpo é alçado ao lugar de um paraíso originário. O ocidente passa a cultuar a imagem da Virgem Maria e seu filho como símbolos da maternidade. Tal reverência à maternidade ajuda a incrementar a figura mitológica da “sagrada família” moderna e de mãe para filha, o modelo materno adquire uma áurea própria: ao se casar e ter filhos a mulher se despoja de sua humanidade, recebe o cetro e a coroa e desfruta de seus poderes maternos. Aos poucos a mulher-mãe se torna condição de sobrevivência, indispensável ao desenvolvimento e à educação dos futuros homens. Mas se a influência materna passa a ser decisiva para a criança, os desvios e falhas infantis passam a ser fracassos de sua função de mãe.
Estamos diante do momento histórico (Áries, 1978) em que a infância moderna se instala em um compósito entre a idéia de um tempo feliz protegido pelo amor dos pais, mas principalmente  pelos cuidados de uma mãe amorosa, e a preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. É assim que no plano social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à criança, promovendo o desenvolvimento de uma infinidade de setores que de forma gradual, passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do futuro adulto.
Seguindo Foucault (1988), a organização patriarcal da sociedade, herança do poder soberano, que mantinha a hierarquia entre os gêneros, passa a conviver com uma nova maneira de poder, um poder disciplinar, mais coerente com a ideologia de liberdade, igualdade e autonomia do individualismo social em andamento. Tal poder se dispersa pelos múltiplos setores da cultura (mídia, publicidade, escola, empresa, etc) e subverte o permitido e o proibido, estimula o sexo e os prazeres e funda novas regras e normas de controle sobre a vida dos indivíduos. É este biopoder que vai lentamente invadir a vida privada familiar, oferecendo alternativas de cuidados “mais adequados e saudáveis” para seus membros. As normas e valores patriarcais  perdem sua potência na medida em que o indivíduo, enquanto corpo, passa a ser o objeto de novas estratégias políticas que visam proteger e melhorar as condições da vida de cada um. Novas normas e parâmetros são fixados, novas verdades e estilos de viver, aos quais os indivíduos precisam se ajustar para serem reconhecidos, aceitos e desejados.
Na intimidade da família nuclear, o amor se mantém como item importante na constituição e na regulação das relações entre os homens e as mulheres, mas também se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança e inaugura um prolongamento do ideal de amor e felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização da felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais à seus filhos sustenta-se nesta possibilidade de assisti-los transformarem-se na imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna.
Além da infância, o casamento entre o amor parental narcísico e o individualismo moderno produz outro fenômeno social importante, a adolescência, que surge no pós-guerra como depositária idealizada dos atributos de coragem, alegria e esperança e inaugura um tempo em que a felicidade, o prazer e a boa vida serão admitidos e depois incentivados, entre a infância e a idade adulta. (Calligaris, 2003)
Nascida no caldo cultural moderno, a psicanálise passa a desvendar este particular contexto familiar  e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos  das relações entre mãe,pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar ele possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de  obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo,que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente  para dar lugar  às infinitas condições a que  ela terá que se submeter mas  que tentará evitar. É neste  jogo amoroso singular que ela construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor incondicional imaginado permanecerá na aspiração  de um reencontro amoroso futuro. O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um ideal para o eu (Haddad, 2006). Sabemos o quanto ao longo do último século, a sociedade ocidental tornar-se-á militante do amor, cujo argumento revolverá normas, valores e leis.
À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções parentais  tornam-se  maiores e mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em que sua subjetividade se constitua e  cumprir  a função simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.
Embora esta célula familiar moderna assuma um papel primário na transmissão da cultura e das gerações, ela é ao mesmo tempo fonte de normalidade e das piores patologias, o que faz com que as  funções parentais se tornem cada vez mais alvo de cuidados públicos. Do ponto de vista social e ao longo do tempo, tais funções migram gradualmente do espaço privado ao público. Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família  se torna um centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas características e especificidades para criar todos os tipos de serviços, cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que auxiliem o desenvolvimento de seus membros.
Esta  passagem da função da parentalidade ao espaço público  acontece em concomitância ao desenvolvimento das ciências e outros saberes que passam a assumir parte  das funções de cuidados dos infantes e de leis que garantem à criança esta tutela ou cobram dos pais seus deveres e obrigações. Ao ser  invadida pelo olhar público, a estrutura familiar burguesa  revela seu avesso e sua fragilidade. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam corretivos, a psicanálise segue revelando seus descompassos. Por ser uma sociedade centrada na autoridade patriarcal, as leis de recato sexual tinham o objetivo de regulamentar principalmente  a vida erótica das mulheres já que qualquer exposição de  sua sensualidade era motivo de desconforto. Além de serem mães por “vocação natural”, seus desejos sexuais deveriam ser limitados pelas vicissitudes desta função. Ao escutar as histéricas, Freud desvenda uma subjetividade que não confirma tal “natureza feminina”.
O ideal de amor e  sexo não cessa de alimentar o imaginário cultural  e se mantém ansiado por homens e mulheres.Tal fato contribui para o surgimento de novas perspectivas para se questionar as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar o tema da sexualidade dos bastidores da vida humana. Entre outras coisas, a falsa moral burguesa escondia o medo e a preocupação cultural com a incapacidade dos homens gerenciarem o controle sobre seus impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente, começa a haver uma subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair por terra o instinto maternal e a raça feminina. O tabu da virgindade feminina (Freud, 1917) revela o temor de ambos os sexos em relação à passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. A  preocupação social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina para a procriação e para o casamento, era uma tentativa de evitar um excesso sexual perturbador e temido.  Acresce-se a isso a complexidade da relação dos homens com  a  figura da mãe-mulher,que no melhor dos casos, produzia uma separação entre a  mãe virgem e pura de um lado e a mulher sensual e sexuada de outro ( Freud,1912).
No plano do conhecimento humano, o século XIX  vivia  um embate entre o legado das tradições e as rupturas a estas que não cessavam de se suceder. Reinava o pensamento crítico, as idéias de progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e da ignorância pela  difusão da ciência e da cultura em geral. Tal efervescência gerava a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos, políticos e religiosos que pretendiam ora analisar ora criticar a convivência de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondessem aos alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucediam às antigas.
Por seu lado, a psicanálise  ampliava seus saberes sobre a construção de uma interioridade psíquica cujo personagem principal era a complexa e enigmática sexualidade  humana, com destaque para seu papel no interior da família, na constituição psíquica da criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O amor dos pais, tão reverenciado, precisava existir na justa medida entre os cuidados e a erotização do corpo infantil responsável pelo anseio de viver e ser amado, e  certas rupturas de um estado fusional e primitivo com a mãe, que o auxiliassem a entrar no mundo simbólico e partilhado da cultura, carregando o legado das aspirações parentais e das crenças, ideais e proibições vigentes no discurso social. Nasce o sujeito dividido entre o que ele quer, o que ele teme e o que a cultura lhe permite e oferece. O conflito entre a necessidade de amparo e amor e o anseio de separação e independência ocupa o centro da constituição desta subjetividade moderna, uma “subjetividade amorosa”.
No pensamento moderno deveria caber a cada indivíduo construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não dependeria mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em novos sentidos para a existência humana  que acenem com uma maior satisfação, prazer e conforto.  A conquista desta individualidade autônoma dentro do círculo doméstico começa a se dar à medida que o poder familiar vai se restringindo e os interesses pessoais aumentando em consonância com  uma exigência de simetria entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres vão ganhando espaço público e com o advento  dos métodos anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre , ao aborto e ao divórcio. Homens ou mulheres, cada um se  torna o único ou o principal  regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las. Sem as amarras  das  regras de aliança, homens, mulheres, homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados somente em escolhas amorosas e mantidos por acordos e negociações. Tal liberdade incide tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das relações quando estas  se mostram impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados.  
Muda a  realidade social,despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas. A formação dos pares conjugais  fica independente do sexo ou da  orientação sexual de cada um. Resultado de um movimento de desvencilhamento da tradição e das regras coercitivas sociais, ao manterem apenas o amor como  eixo central de suas  escolhas, estas novas parcerias inauguram uma nova ética e estética do convívio amoroso  e embarcam em uma aventura incerta. Com relações amorosas mais efêmeras  os indivíduos  passam a formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que altera a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos.
Os métodos anticoncepcionais e a biogenética rompem  a antiga junção casamento-sexo-procriação. A concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só tem o reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem uma função parental.
A partir dos novos casamentos que cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os núcleos familiares precisam  receber os filhos de um ou ambos os integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma criança pode  pertencer simultaneamente a mais de um grupo familiar e sua  circulação  entre eles  pode ser constante e organizada ou irregular e informal. Alguns núcleos formam redes em que convivem ex-cônjuges, antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.
A filiação passa a não ser mais definida pelos laços sanguíneos, legais ou residenciais e sim  por uma filiação social ou sócio-afetiva, fundando um grupo doméstico cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro ou de ambos. Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de parentalidade  depende apenas de um comprometimento. O lugar do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais legítimos nem por um homem e por uma mulher assim como a "função paterna" ou "função materna" não implicam a presença de um homem e de uma mulher.
As relações familiares se horizontalizam e provocam uma maior proximidade entre as gerações nos modos de existir, desconstruindo as antigas atribuições de poder e  autoridade. Ao se tornar preferencialmente uma tarefa amorosa, o exercício da função parental impõe uma nova forma de convivência entre pais e filhos. O bem-estar dos filhos se torna um ideal importante para seus pais. Mais atenciosos disponíveis e compreensíveis, o imperativo de amá-las que decorre da necessidade narcísica de vê-las felizes, provoca não só angústia e culpa se o sentimento de seu amor for insuficiente, como os enche de incertezas quanto ao seu papel de transmissor de valores e normas se significar frustrá-los. Qualquer obstáculo real ou imaginário que se oponha a este ideal de felicidade causa desconforto quanto às direções de sua tarefa educativa e a assunção da dessimetria de sua função parental. Por outro lado, o alto valor narcísico atribuído aos filhos cobra  seu preço nas expectativas de que estes sejam perfeitos e sem falhas. Muitas vezes por ocupar este lugar de espelho narcísico  e de produção de satisfação para os pais, os filhos  ficam sem um lugar de verdade, aquele em que cada um precisa buscar para si no mundo adulto, das leis e normas da sociedade em que vive.
O individualismo social promove indivíduos autônomos necessariamente narcísicos, diz Calligaris (1996). Sua consistência subjetiva, mais livre das obrigações simbólicas e sem o peso da  herança dos valores e tradições da família e da cultura, é fruto de contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros. O momento narcisista de sua constituição subjetiva, definido como a condição em que toma a si mesmo como objeto de amor  está vinculado a uma superestima parental. É ela que o faz especial, perfeito, belo, inteligente e desprovido de defeitos. Este amor do narcisismo parental, produto de suas aspirações não realizadas ( ideal do eu) será o responsável pela idealização que cada um fará de si mesmo- seu eu ideal. Instala-se um circuito amoroso em que o ideal de eu, enquanto instância narcisicamente investida e voltada para os futuros interesses no mundo e na cultura,  contém em sua origem o desejo de ser dos pais. É assim que o  ideal de eu torna-se o meio pelo qual os indivíduos se relacionam mutuamente em busca de aceitação, reconhecimento e proteção. A tarefa amorosa da subjetividade atual  se confunde com o esforço de cada um em coincidir com a imagem que possa satisfazer primeiramente aos pais e depois aos outros. Se cada um vive ansiando ser amado e admirado pelos outros, a cultura passa a oferecer dispositivos que  auxiliem a enfrentar a  precariedade da presença deste amor, já que as dores serão quase na sua totalidade, dores de amor. Assim como no plano subjetivo, busca-se saídas alternativas ao submetimento, à alienação ou à adição.
Não há dúvidas de que na cultura atual o amor se tornou o eixo central da vida e das escolhas dos indivíduos. Dos primórdios da psicanálise, quando Freud se deparava com uma cultura que cerceava o indivíduo, impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), até a sociedade atual que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e estimula a busca do prazer, o ideal de amor romântico ganhou novas roupagens. As formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade, fazem parte dos valores morais que na modernidade mantêm uma parceria exitosa com a literatura, o cinema e a música, os quais refletem e  produzem repertórios amorosos (conjugais ou familiares) e ajudam a compor o imaginário popular. Se  a literatura romântica da era burguesa exaltava o amor para evitar os excessos de uma sexualidade ainda enigmática, a incorporação do saber sobre o sexual contemporâneo separou amor e sexo, e manteve o amor despojado de sua idealização anterior, ainda que apostando no seu valor de felicidade. O conflito entre pulsões sexuais e repressão cultural que produzia sujeitos inibidos e recalcados dá lugar a sujeitos que buscam o prazer sem culpa, mas oscilam entre  potencia e  impotência diante dos múltiplos mandatos culturais a que se deparam e que anseiam cumprir para serem reconhecidos.
A fabricação do sujeito moderno está intimamente ligada à sua singularização, base e convicção do individualismo como ideologia. As muitas dimensões do individualismo que se configuraram na época atual questionaram todo e qualquer constrangimento social, com destaque especial para as questões sobre a sexualidade e a autoridade patriarcal. Na contemporaneidade a formação de pares conjugais e o exercício da tarefa parental  elegem o amor como principal e às vezes único critério. É o amor dos pais que produz uma confirmação narcisica , promove a erotização do corpo e “inventa” a criança perfeita, a qual por identificação constrói seu eu ideal. É este eu que ela vai amar que dará uma representação de quem  ela é e de quem é o outro. Por outro lado a  organização dos arranjos  familiares e a relação entre seus membros incorporou grande parte das descobertas feitas pela psicanálise neste século. Se como diz Foucault, é a subjetividade que se encarrega de interrogar os limites, os ideais e os restos que organizam as relações entre os indivíduos, talvez coubesse à psicanálise, que  analisou regiamente a subjetividade moderna do século anterior,  se desvencilhar de sua nostalgia e se autorizar a encarar as mudanças, não como escombros irremediáveis de um  modelo familiar idealizado, mas como novas possibilidades do viver humano.
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