A família entre a
cultura e a subjetividade atual: o papel do amor
O trabalho de Foucault é hoje uma referência para pensarmos a
contextualização histórica e social da experiência
humana e das verdades e crenças que dão sentido as relações dos sujeitos
consigo, com os outros e com o mundo. Não sendo a subjetividade nem universal
nem prévia, torna-se necessário analisar os mecanismos de sua construção dentro
de determinada época para saber sobre a constituição dos estilos de existência,
das estruturas sociais que sustentam os sujeitos e das relações de poder que os
dominam. Para Foucault (apud Bezerra Junior, 2000), é sobre estas formas de
poder que se produzem campos de resistência, que na modernidade concentram-se
na esfera subjetiva. A psicanálise freudiana protagonizou uma leitura inédita e
subversiva das experiências subjetivas de seu tempo ao dar sentido à sintomas
psíquicos perturbadores, revelando um cenário de fantasias humanas nem sempre
sensatas ou coerentes e desvendando um sujeito dividido entre seus desejos e as
exigências e proibições de sua cultura.
Nas últimas décadas, a cultura ocidental foi palco de intensas
mudanças e invadiu quase todos os setores da vida humana. Seus ícones passaram
a ser temas de pesquisas de diferentes áreas de conhecimento, que não só reconhecem
sua importância e sua permanente
transformação, como buscam refletir sobre seus novos paradigmas. Tema
privilegiado pela sociedade ocidental, a família, ícone cultural por
excelência, tem sido alvo de estudos interdisciplinares que buscam constituir
um saber a respeito de seu sentido e função na era contemporânea. Lugar
especial no qual o bebê humano nasce, é cuidado, satisfaz suas primeiras
necessidades, efetua seus primeiros intercâmbios afetivos, e é objeto de investimento
amoroso, a família reúne um sistema de relações simbólicas e emocionais que lhe
asseguram o lugar de importante núcleo de produção de subjetividade. No último
século, este núcleo familiar viu-se
atropelado por mudanças culturais importantes e por novas possibilidades que a ciência
produziu.
Os avanços da biotecnociências
foram responsáveis por uma reviravolta no processo da reprodução humana,
provocando uma revolução no próprio conceito que designava até pouco tempo a
união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com
fins de criar e manter os filhos. Mudanças nos papéis tradicionais de pai e
mãe, de homem e mulher, na gestão da autoridade, na educação e transmissão dos
valores e normas para as novas gerações, produzem discursos às vezes alarmantes às vezes nostálgicos diante de um
futuro que se apresenta incerto. Este texto pretende refletir sobre estas
mudanças através da articulação entre a cultura e a produção de subjetividade
na atualidade e analisar as regras e normas que hoje orientam e regulamentam a
vida familiar ocidental e sua absorção de tais mudanças. Para isso partiremos
de uma breve revisão da história da família moderna, ressaltando o valor do
amor na constituição de um novo modelo familiar e de uma particular
subjetividade que passa a existir a partir da Modernidade.
Após as revoluções burguesas do século XVIII o espírito moderno apostou que a razão humana
igual para todos pudesse assumir o exercício de organizar as condutas e os consensos
necessários ao convívio. Mas a tarefa de nos livrarmos das hierarquias
pré-estabelecidas e exaltar o indivíduo como membro de uma humanidade comum se
mostrou lenta e árdua, além de produzir inúmeros restos. O modelo familiar que
conhecemos surge em meio à euforia do projeto civilizatório iluminista e teve
em Rousseau seu maior idealizador. Tal projeto englobava uma proposta
filosófica e política para a sociedade burguesa que pretendia fazer do amor apaixonado a base da
construção da família, o que significava integrar a sexualidade ao amor e ao
casamento. Bem recebida na época pelos literatos em geral, tal composição não
só se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos como previa um arranjo
conjugal em que a sexualidade ganhava legitimidade. Mas Gay (2000) denuncia
como a imaginação do século XIX vai ficar capturada pelo componente físico da
vida erótica e das estratégias de conquista sexual, com suas promessas de
êxtase. Para a sociedade burguesa de então, era de mister importância que a
bandeira do amor servisse de norte para os excessos do sexo e não faltava
literatura cuja finalidade era a de mostrar os destinos trágicos do
apaixonamento quando este não se enquadrava
na construção da família. O amor poderia incluir os suspiros do sexo,
mas deveria seguir um percurso de sensatez e atender os compromissos de criação
dos filhos, reprodução da família e formação do cidadão. Era este o cenário em
que a dupla moral burguesa denunciada por Freud (1908), expunha as limitações impostas pela cultura à
satisfação sexual principalmente das mulheres, chamadas a privilegiar seu papel de mãe. A literatura
romântica da época era pródiga em incentivar
o amor como remédio aos excessos do sexo, prescrevendo destinos trágicos às paixões que se afastavam
dos moldes previstos pela família burguesa. Grande parte dos romances narravam
histórias de amor em que os sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por
seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal
de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do
amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências
amorosas cujas paixões e desesperos
passam a colorir as fantasias humanas.
As narrativas românticas se encaixavam
na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar uma interioridade psicológica com identidades
fundadas em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência
amorosa inédita. Nascia um novo conhecimento, uma ciência do homem, de suas
particularidades e singularidades, expressa por uma nova linguagem,
auto-referente, com sujeitos capazes de
falar de si.
O amor romântico se consolida em um ideal reverenciado pela sociedade, suporte deste modelo de família e parte de um horizonte futuro da vida de cada um , uma
aspiração poderosa que acenava com
a possibilidade de uma felicidade humana
terrena em contraposição aos antigos
ideais religiosos. Também inaugura uma convivência familiar mais centrada em
seu núcleo pai-mãe-filhos, transformando-se em uma fortaleza afetiva restrita, o que
funda a vida privada e íntima, característica da era burguesa.
Como bem aponta Roudinesco ( 2002), os casamentos realizados
por amor começam a apresentar, a longo prazo,
um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao
surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar gira em torno deste ‘ninho’ e à mulher resta o papel de mãe que ganha as
atenções e a reverência da sociedade. O amor materno passa a ocupar um espaço jamais
conquistado anteriormente na história da humanidade e seu corpo é alçado ao
lugar de um paraíso originário. O ocidente passa a cultuar a imagem da Virgem
Maria e seu filho como símbolos da maternidade. Tal reverência à maternidade ajuda
a incrementar a figura mitológica da “sagrada família” moderna e de mãe para
filha, o modelo materno adquire uma áurea própria: ao se casar e ter filhos a
mulher se despoja de sua humanidade, recebe o cetro e a coroa e desfruta de
seus poderes maternos. Aos poucos a mulher-mãe se torna condição de
sobrevivência, indispensável ao desenvolvimento e à educação dos futuros
homens. Mas se a influência materna passa a ser decisiva para a criança, os
desvios e falhas infantis passam a ser fracassos de sua função de mãe.
Estamos diante do momento histórico (Áries, 1978) em que a
infância moderna se instala em um compósito entre a idéia de um tempo feliz
protegido pelo amor dos pais, mas principalmente pelos cuidados de uma mãe amorosa, e a
preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem
quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. É assim que no plano
social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à criança,
promovendo o desenvolvimento de uma infinidade de setores que de forma gradual,
passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do
futuro adulto.
Seguindo Foucault (1988), a organização patriarcal da
sociedade, herança do poder soberano, que mantinha a hierarquia entre os
gêneros, passa a conviver com uma nova maneira de poder, um poder disciplinar,
mais coerente com a ideologia de liberdade, igualdade e autonomia do
individualismo social em
andamento. Tal poder se dispersa pelos múltiplos setores da
cultura (mídia, publicidade, escola, empresa, etc) e subverte o permitido e o
proibido, estimula o sexo e os prazeres e funda novas regras e normas de
controle sobre a vida dos indivíduos. É este biopoder que vai lentamente
invadir a vida privada familiar, oferecendo alternativas de cuidados “mais
adequados e saudáveis” para seus membros. As normas e valores patriarcais perdem sua potência na medida em que o
indivíduo, enquanto corpo, passa a ser o objeto de novas estratégias políticas
que visam proteger e melhorar as condições da vida de cada um. Novas normas e
parâmetros são fixados, novas verdades e estilos de viver, aos quais os
indivíduos precisam se ajustar para serem reconhecidos, aceitos e desejados.
Na intimidade da família nuclear, o amor se mantém como item
importante na constituição e na regulação das relações entre os homens e as
mulheres, mas também se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a
criança e inaugura um prolongamento do ideal de amor e felicidade irrealizável
na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a
esperança da realização da felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais à
seus filhos sustenta-se nesta possibilidade de assisti-los transformarem-se na
imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso
fundamental para a subjetividade moderna.
Além da infância, o casamento entre o amor parental narcísico
e o individualismo moderno produz outro fenômeno social importante, a
adolescência, que surge no pós-guerra como depositária idealizada dos atributos
de coragem, alegria e esperança e inaugura um tempo em que a felicidade, o
prazer e a boa vida serão admitidos e depois incentivados, entre a infância e a
idade adulta. (Calligaris, 2003)
Nascida no caldo cultural moderno, a psicanálise passa a
desvendar este particular contexto familiar
e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os
bastidores conflituosos das relações
entre mãe,pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na
constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos
cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para
a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar ele
possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e
nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis,
será entre a ameaça de perder e o desejo de
obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo,que a criança deverá
abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente para dar lugar às infinitas condições a que ela terá que se submeter mas que tentará evitar. É neste jogo amoroso singular que ela construirá sua
subjetividade. A lembrança deste amor incondicional imaginado permanecerá na
aspiração de um reencontro amoroso futuro.
O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um
ideal para o eu (Haddad, 2006). Sabemos o quanto ao longo do último século, a
sociedade ocidental tornar-se-á militante do amor, cujo argumento revolverá
normas, valores e leis.
À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções
parentais tornam-se maiores e mais complexas. Além de se
responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os pais devem reconhecer sua
criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do seu sustento, educação e
saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em que sua subjetividade se
constitua e cumprir a função simbólica de transmissão dos
valores, normas e interditos da cultura.
Embora esta célula familiar moderna assuma um papel primário
na transmissão da cultura e das gerações, ela é ao mesmo tempo fonte de
normalidade e das piores patologias, o que faz com que as funções parentais se tornem cada vez mais
alvo de cuidados públicos. Do ponto de vista social e ao longo do tempo, tais
funções migram gradualmente do espaço privado ao público. Na tentativa de
manter este modelo idealizado, a família
se torna um centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que
visam conhecer suas características e especificidades para criar todos os tipos
de serviços, cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e
projetos que auxiliem o desenvolvimento de seus membros.
Esta passagem da
função da parentalidade ao espaço público
acontece em concomitância ao desenvolvimento das ciências e outros
saberes que passam a assumir parte das
funções de cuidados dos infantes e de leis que garantem à criança esta tutela
ou cobram dos pais seus deveres e obrigações. Ao ser invadida pelo olhar público, a estrutura familiar
burguesa revela seu avesso e sua
fragilidade. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam
corretivos, a psicanálise segue revelando seus descompassos. Por ser uma
sociedade centrada na autoridade patriarcal, as leis de recato sexual tinham o
objetivo de regulamentar principalmente a
vida erótica das mulheres já que qualquer exposição de sua sensualidade era motivo de desconforto.
Além de serem mães por “vocação natural”, seus desejos sexuais deveriam ser
limitados pelas vicissitudes desta função. Ao escutar as histéricas, Freud
desvenda uma subjetividade que não confirma tal “natureza feminina”.
O ideal de amor e sexo
não cessa de alimentar o imaginário cultural e se mantém ansiado por homens e mulheres.Tal
fato contribui para o surgimento de novas perspectivas para se questionar as
maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais
condenadas, a prostituição e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise bebe
deste momento cultural e ajuda a retirar o tema da sexualidade dos bastidores
da vida humana. Entre outras coisas, a falsa moral burguesa escondia o medo e a
preocupação cultural com a incapacidade dos homens gerenciarem o controle sobre
seus impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente, começa a haver uma
subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair
por terra o instinto maternal e a raça feminina. O tabu da virgindade feminina (Freud,
1917) revela o temor de ambos os sexos em relação à passagem da menina à sua
condição de mulher sexuada. A
preocupação social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina
para a procriação e para o casamento, era uma tentativa de evitar um excesso
sexual perturbador e temido. Acresce-se
a isso a complexidade da relação dos homens com a figura
da mãe-mulher,que no melhor dos casos, produzia uma separação entre a mãe virgem e pura de um lado e a mulher sensual
e sexuada de outro ( Freud,1912).
No plano do conhecimento humano, o século XIX vivia um embate entre o legado das tradições e as
rupturas a estas que não cessavam de se suceder. Reinava o pensamento crítico,
as idéias de progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e
da ignorância pela difusão da ciência e
da cultura em geral. Tal
efervescência gerava a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos,
políticos e religiosos que pretendiam ora analisar ora criticar a convivência
de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondessem aos
alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucediam às antigas.
Por seu lado, a psicanálise ampliava seus saberes sobre a construção de
uma interioridade psíquica cujo personagem principal era a complexa e
enigmática sexualidade humana, com
destaque para seu papel no interior da família, na constituição psíquica da
criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O amor dos
pais, tão reverenciado, precisava existir na justa medida entre os cuidados e a
erotização do corpo infantil responsável pelo anseio de viver e ser amado,
e certas rupturas de um estado fusional
e primitivo com a mãe, que o auxiliassem a entrar no mundo simbólico e
partilhado da cultura, carregando o legado das aspirações parentais e das
crenças, ideais e proibições vigentes no discurso social. Nasce o sujeito
dividido entre o que ele quer, o que ele teme e o que a cultura lhe permite e
oferece. O conflito entre a necessidade de amparo e amor e o anseio de
separação e independência ocupa o centro da constituição desta subjetividade
moderna, uma “subjetividade amorosa”.
No pensamento moderno deveria caber a cada indivíduo
construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não
dependeria mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em
novos sentidos para a existência humana que acenem com uma maior satisfação, prazer e
conforto. A conquista desta
individualidade autônoma dentro do círculo doméstico começa a se dar à medida
que o poder familiar vai se restringindo e os interesses pessoais aumentando em
consonância com uma exigência de
simetria entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres vão ganhando espaço
público e com o advento dos métodos
anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre , ao aborto e ao
divórcio. Homens ou mulheres, cada um se
torna o único ou o principal
regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para
experimentá-las e gerenciá-las. Sem as amarras
das regras de aliança, homens,
mulheres, homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados somente em
escolhas amorosas e mantidos por acordos e negociações. Tal liberdade incide
tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das
relações quando estas se mostram
impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados.
Muda a realidade
social,despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas. A
formação dos pares conjugais fica
independente do sexo ou da orientação
sexual de cada um. Resultado de um movimento de desvencilhamento da tradição e
das regras coercitivas sociais, ao manterem apenas o amor como eixo central de suas escolhas, estas novas parcerias inauguram uma
nova ética e estética do convívio amoroso
e embarcam em uma aventura incerta. Com relações amorosas mais efêmeras os indivíduos
passam a formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que
altera a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre os pais
que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos.
Os métodos anticoncepcionais e a biogenética rompem a antiga junção casamento-sexo-procriação. A
concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar
casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só tem o
reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem
uma função parental.
A partir dos novos casamentos que cada um dos pares pode
fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os núcleos familiares precisam
receber os filhos de um ou ambos os
integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a
fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida
diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma
criança pode pertencer simultaneamente a
mais de um grupo familiar e sua
circulação entre eles pode ser constante e organizada ou irregular e
informal. Alguns núcleos formam redes em que convivem ex-cônjuges, antigos e
novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.
A filiação passa a não ser mais definida pelos laços
sanguíneos, legais ou residenciais e sim
por uma filiação social ou sócio-afetiva, fundando um grupo doméstico
cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro ou
de ambos. Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de parentalidade depende apenas de um comprometimento. O lugar
do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais
legítimos nem por um homem e por uma mulher assim como a "função
paterna" ou "função materna" não implicam a presença de um homem
e de uma mulher.
As relações familiares se horizontalizam e provocam uma maior
proximidade entre as gerações nos modos de existir, desconstruindo as antigas atribuições
de poder e autoridade. Ao se tornar
preferencialmente uma tarefa amorosa, o exercício da função parental impõe uma
nova forma de convivência entre pais e filhos. O bem-estar dos filhos se torna
um ideal importante para seus pais. Mais atenciosos disponíveis e
compreensíveis, o imperativo de amá-las que decorre da necessidade narcísica de
vê-las felizes, provoca não só angústia e culpa se o sentimento de seu amor for
insuficiente, como os enche de incertezas quanto ao seu papel de transmissor de
valores e normas se significar frustrá-los. Qualquer obstáculo real ou imaginário
que se oponha a este ideal de felicidade causa desconforto quanto às direções
de sua tarefa educativa e a assunção da dessimetria de sua função parental. Por
outro lado, o alto valor narcísico atribuído aos filhos cobra seu preço nas expectativas de que estes sejam
perfeitos e sem falhas. Muitas vezes por ocupar este lugar de espelho narcísico e de produção de satisfação para os pais, os
filhos ficam sem um lugar de verdade,
aquele em que cada um precisa buscar para si no mundo adulto, das leis e normas
da sociedade em que vive.
O individualismo social promove indivíduos autônomos
necessariamente narcísicos, diz Calligaris (1996). Sua consistência subjetiva,
mais livre das obrigações simbólicas e sem o peso da herança dos valores e tradições da família e
da cultura, é fruto de contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos
dos outros. O momento narcisista de sua constituição subjetiva, definido como a
condição em que toma a si mesmo como objeto de amor está vinculado a uma superestima parental. É
ela que o faz especial, perfeito, belo, inteligente e desprovido de defeitos.
Este amor do narcisismo parental, produto de suas aspirações não realizadas (
ideal do eu) será o responsável pela idealização que cada um fará de si mesmo-
seu eu ideal. Instala-se um circuito amoroso em que o ideal de eu, enquanto
instância narcisicamente investida e voltada para os futuros interesses no
mundo e na cultura, contém em sua origem
o desejo de ser dos pais. É assim que o
ideal de eu torna-se o meio pelo qual os indivíduos se relacionam
mutuamente em busca de aceitação, reconhecimento e proteção. A tarefa amorosa
da subjetividade atual se confunde com o
esforço de cada um em coincidir com a imagem que possa satisfazer primeiramente
aos pais e depois aos outros. Se cada um vive ansiando ser amado e admirado
pelos outros, a cultura passa a oferecer dispositivos que auxiliem a enfrentar a precariedade da presença deste amor, já que as
dores serão quase na sua totalidade, dores de amor. Assim como no plano subjetivo,
busca-se saídas alternativas ao submetimento, à alienação ou à adição.
Não há dúvidas de que na cultura atual o amor se tornou o
eixo central da vida e das escolhas dos indivíduos. Dos primórdios da
psicanálise, quando Freud se deparava com uma cultura que cerceava o indivíduo,
impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), até a sociedade
atual que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e
estimula a busca do prazer, o ideal de amor romântico ganhou novas roupagens. As
formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a
felicidade, fazem parte dos valores morais que na modernidade mantêm uma
parceria exitosa com a literatura, o cinema e a música, os quais refletem
e produzem repertórios amorosos (conjugais
ou familiares) e ajudam a compor o imaginário popular. Se a literatura romântica da era burguesa
exaltava o amor para evitar os excessos de uma sexualidade ainda enigmática, a
incorporação do saber sobre o sexual contemporâneo separou amor e sexo, e
manteve o amor despojado de sua idealização anterior, ainda que apostando no
seu valor de felicidade. O conflito entre pulsões sexuais e repressão cultural que
produzia sujeitos inibidos e recalcados dá lugar a sujeitos que buscam o prazer
sem culpa, mas oscilam entre potencia
e impotência diante dos múltiplos
mandatos culturais a que se deparam e que anseiam cumprir para serem
reconhecidos.
A fabricação do sujeito moderno está intimamente ligada à sua
singularização, base e convicção do individualismo como ideologia. As muitas
dimensões do individualismo que se configuraram na época atual questionaram
todo e qualquer constrangimento social, com destaque especial para as questões
sobre a sexualidade e a autoridade patriarcal. Na contemporaneidade a formação
de pares conjugais e o exercício da tarefa parental elegem o amor como principal e às vezes único
critério. É o amor dos pais que produz uma confirmação narcisica , promove a
erotização do corpo e “inventa” a criança perfeita, a qual por identificação
constrói seu eu ideal. É este eu que ela vai amar que dará uma representação de
quem ela é e de quem é o outro. Por
outro lado a organização dos
arranjos familiares e a relação entre
seus membros incorporou grande parte das descobertas feitas pela psicanálise
neste século. Se como diz Foucault, é a subjetividade que se encarrega de
interrogar os limites, os ideais e os restos que organizam as relações entre os
indivíduos, talvez coubesse à psicanálise, que
analisou regiamente a subjetividade moderna do século anterior, se desvencilhar de sua nostalgia e se
autorizar a encarar as mudanças, não como escombros irremediáveis de um modelo familiar idealizado, mas como novas
possibilidades do viver humano.
.
ADENA, M.S., SPELLER, M. A. R. A psicanálise e as novas
configurações familiares, in Pulsional
Revista de Psicanálise, São Paulo
ARIÈS, P. História social da criança
e da família. Rio Janeiro: Ed.Guanabara, 1978.
BEZERRA JUNIOR, B. C. . O ocaso da
interioridade e suas repercussões sabre a clínica. In: Plastino, Carlos
Alberto. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro, 2002, v. , p. -.
BEZERRA JUNIOR, B. C. . A retomada do
futuro: tempo e utopia na subjetividade contemporânea. In: Solange Jobim.
(Org.). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro, 2000, v. , p. 81-95.
BIBLIOTECA DA ASSOCIAÇÃO
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. Laço conjugal. In Cadernos (publicação interna).
PortoAlegre, março de 1991.
CALLIGARIS, C. Crônicas do
individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996
_______________ Adolescência, São Paulo:Publifolha, 2003
______________
Terra de Ninguém: 101 crônicas. São Paulo: Publifolha,2004
______________ Quinta Coluna: 101 crônicas. São Paulo:
Publifolha, 2008
CECCARELLI, P. R. Configurações
Edípicas da Contemporaneidade:
reflexões sobre as novas formas de filiação, in Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XV, 161, 88-98, set. 2002
reflexões sobre as novas formas de filiação, in Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XV, 161, 88-98, set. 2002
FREIRE COSTA, J. - Sem fraude nem favor, Rio de
Janeiro: Rocco, 1998.
FOUCAULT, M. Historia da Sexualidade I: a vontade de
saber. Rio de janeiro: Graal,1988
FREUD, S. Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira Rio de Janeiro: Imago,
1996.
___________. Três Ensaios para uma teoria sexual infantil (1905)
__________. Moral Sexual “Civilizada” e Doença nervosa Moderna (1908).
__________.Um tipo especial da escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições
à Psicologia do Amor) (1910).
__________.Sobre a tendência Universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições a psicologia do amor) (1912).
__________. O tabu da virgindade (Contribuições a Psicologia do Amor)
(1917).
__________. Psicologia de grupo e análise do ego (1921).
__________. Mal estar na civilização (1930).
GAY, P. A experiência burguesa da
Rainha Vitória a Freud: A educação dos sentidos, São Paulo: Cia das Letras,
1999.
__________. A experiência burguesa da
Rainha Vitória a Freud: A paixão terna São Paulo: Cia das Letras, 2000.
GIDDENS, A. A transformação da
intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, Araraquara:
UNESP,1993
HADDAD, G. Reflexões sobre a
manutenção do ideal de amor romântico na atualidade: um estudo sobre a
fidelidade conjugal Dissertação de
mestrado apresentada ao Curso de Pós‑Graduação em Psicologia da Universidade São
Marcos, 2006.
JULIAN, P. A feminilidade velada. Rio
de Jan.: Cia de Freud ,1997
KAMERS, M. As novas configurações da
família e o estatuto simbólico das funções parentais Estilos clin., dez.
2006, vol.11, no.21, p.108-125. ISSN 1415-7128.
KEHL, M. R. Em defesa da família tentacular, In:
Direito de Família e Psicanálise: Rumo a uma Nova Epistemologia Cunha Pereira e
Groeninga (Org.), Rio de Janeiro:
Imago, 2003
_____ Lugares do masculino e do
feminino na família. In M.C. Comparato & D.S.F. Monteiro (Orgs.), A criança
na contemporaneidade e a psicanálise. (Vol. 1, pp. 29-38). São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2001.
LOUREIRO, I. O carvalho e o pinheiro – Freud e o
estilo romântico São Paulo: Escuta/Fapesp, 2002.
MIGUELEZ, N.B.S. Complexo de Édipo, hoje?,São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2007
MONZANI, L.R. Desejo e prazer na idade moderna,
Campinas: UNICAMP, 1995
ROUDINESCO, E.
A família em desordem , Rio de Janeiro :Jorge Zahar, 2002.
RUFO, M. Me larga!Separar-se para crescer, São Paulo
WMF Martins Fontes, 2007
SENNET, R. O declínio do homem público: As tiranias da
intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988
Trabalho apresentado no VII Encontro
Nacional sobre o Bebê : Nascimento-
Antes e Depois - Cuidados em Rede,
realizado no Rio de Janeiro em maio de 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário