Pensando a Psicanálise
Gisela Haddad
Gostaríamos de trazer dois
temas que poderiam nos ajudar a discutir a psicanálise em sua relação com a
cultura atual: o consumo e o ressentimento.
Antes, porém situaremos a
Psicanálise em um contexto histórico, o que nos leva a fazer um pequeno resumo
do que seria a modernidade e seu berço. Para diferenciar a modernidade dos dias
atuais, tentaremos descrever o que se convencionou chamar de pós-modernidade,
particularmente nas subjetividades atuais. Destacaremos as contradições a que
está exposto o sujeito contemporâneo no cenário da subjetivação do consumo e
como há uma promessa e uma decepção ressentida presentes aí.
Poderíamos apontar muitas
diferenças entre as sociedades tradicionais e a moderna, mas iremos privilegiar
algumas diferenças que consideramos importantes
às mudanças que queremos marcar.
Idade Média
O sujeito da idade média
vivia em um mundo onde o seu sentido já estava previamente definido, assim como
sua classe social e o que era esperado dele.
Veremos como este sujeito
sofrerá uma crise de identidade com as
mudanças sociais que ocorrerão. No final da Idade Média, acontecem as grandes
navegações, as descobertas de novos continentes, o contato com outros povos e
outra cultura, a queda do regime feudal com a urbanização das cidades e o
surgimento de novos serviços. Este homem maravilhado com as mudanças, liberado
de suas tradições sociais e culturais e da servidão feudal irá se desgarrar de
um mundo onde ocupava um lugar e um estatuto e perder sua segurança e sua
confiança na possibilidade de constituir um conhecimento.
Muitos autores costumam
adjetivar a Idade Média como a idade das trevas em oposição a das luzes ou o
iluminismo da idade moderna. Mas muitos historiadores versam sobre seu valor.
Idade Moderna
Podemos destacar duas
grandes tradições do projeto moderno: a racionalista, onde Descartes é o
expoente principal, inaugurando o sujeito do conhecimento e o romantismo que,
de certa maneira faz uma crítica à racionalidade ao dar ênfase às paixões.
Descartes foi um filósofo francês do século XVII que viveu este momento de
crise e participou da organização do discurso moderno, onde o sujeito começará
a questionar, a querer conhecer a natureza. O projeto cartesiano inaugura a
modernidade ao construir um método racionalista que deseja constituir o sujeito
do conhecimento. Haveria de existir algum tipo de “verdade” que fundamentasse o
conhecimento. Descartes quer instaurar o sujeito purificado. Mas o que seria
isso?
Ele acreditava que se
privilegiássemos a sua parte confiável, ou seja, a razão, esta seria a responsável
pela produção de conhecimentos e certezas. O famoso Método de Descartes,
portanto irá descrever o pensamento com regras explícitas e seu objetos com
representações claras e distintas para que pudessem se constituir em objetos da
ciência. O que Descartes pretendia e de certa maneira conseguiu era constituir
uma ciência, algo com que o homem pudesse contar e que lhe desse algumas
certezas a respeito de si e do mundo.
No
entanto, para objetivar o mundo foi necessário fazer uma cisão e deixar de fora
uma parte do sujeito que não estaria apta a produzir conhecimento. Haveria que
se deixar de lado as paixões e os afetos para conhecer a natureza.
Poderíamos
dizer que é encima do que fica excluído do racionalismo que nasce o romantismo,
ou seja, o corpo, os afetos e as paixões se impõem como objetos de conhecimento
a serem incorporadas pelo sujeito. É diante de perguntas do que se faz para
conhecer e conviver com esses ruídos do corpo que não silenciam que nascem as
ciências humanas, como a Sociologia e a Antropologia.
O
movimento romântico pode ser abordado de diversos ângulos e em vários países da
Europa do século XVIII e XIX , mas é na
Alemanha que ele irá se configurar como um movimento cultural do qual Goete
é um dos seus expoentes. E será pela
maneira aprisionante com que o racionalismo explica a natureza que o romantismo
fará a reconciliação da sensibilidade com a razão.
Serão
os sentidos nutrindo a razão e trazendo à cena a dimensão da interioridade.
Podemos
dizer que a Psicanalise irá beber destas duas fontes: o racionalismo e o romantismo,
já que ambas as tradições são versões do projeto moderno e pretendem instituir
o sujeito como fundamento. Assim Freud tem um pé em cada uma destas tradições modernas.
É médico com uma formação acadêmico-científica na área de neurologia,
fisiologia e anatomia, mas mantêm uma interlocução constante com a produção
literária do movimento romântico. Isto será de fundamental importância no
nascimento da Psicanálise. Como pesquisador nos laboratórios do Instituto de
Fisiologia da Universidade de Viena, atividade esta que estava totalmente de
acordo com as bases das ciências naturais da época, Freud era um leitor assíduo
dos filósofos e da literatura romântica, o que muito influirá em sua criação de
uma teoria original do psiquismo.
Embora
professasse sua inclinação para a manutenção de um discurso cientifico, não é difícil
vê-lo, em seus textos, flertar o tempo todo com a liberdade especulativa dos
filósofos ou mergulhar nas profundezas
da alma humana tal e qual os poetas faziam para extrair conhecimento.
Uma
pequena ilustração destas duas vertentes na sua obra são os textos “Projeto de
uma Psicologia científica” escrito em 1895 e “a Interpretação dos Sonhos”
escrito em 1900.Emboraa fossem produzidos praticamente na mesma época, no primeiro
Freud desejava construir uma teoria do aparelho psíquico em bases científicas e
assim privilegia os neurônios, as quantidades, os investimentos ,os
deslocamentos de energia, etc. Já em “Interpretação dos Sonhos” ele trabalha
com temas do cotidiano. Os sonhos seriam os restos daquilo que interessava ao
pensamento científico do final do século XIX.
Por
outro lado, a modernidade inaugura um amplo processo de individualismo, que
permitirá o nascimento de uma forma subjetiva particular, caracterizada tanto pela
interioridade psicológica como pela construção de identidades fundadas em
atributos e sentimentos privados, muito diferentes do que se via antes, onde as
identidades e papéis sociais eram atribuídos por herança, conforme laços de pertencimento
definidos ao nascer. Ser alguém significava fazer parte de um todo.
Na
era moderna, ser alguém será tornar-se alguém e conceber sua existência como
uma realização pessoal ao longo da vida.
Isto
é o que chamamos a construção do sujeito moderno da Psicanálise. Um sujeito que
terá que dar conta das exigências da vida burguesa, se haver com o choque entre
suas aspirações e seus desejos reprimidos, e com as regras rígidas impostas
pelas convenções sociais. Nasce assim a cultura do psicológico e da intimidade onde
o sofrimento é experimentado como conflito interior.
Este
quadro, no entanto sofreu imensas transformações e hoje é bem diferente daquele
que vimos no nascimento da Psicanálise.
Estas
mudanças tem sido objeto de muitas discussões de vários autores, tanto psicanalistas
(Birman, Calligaris, Figueiredo, Freire Costa, Bezerra Junior) como
historiadores ou cientistas sociais (Roudinesco, Bauman, Lash, Debord)
Claro
que as mudanças no campo político com o advento do projeto neoliberal que
institui o capital e seus derivados diretos como o mercado e o consumo, a
velocidade do avanço da tecnobiociencia e as modernas tecnologias de
comunicação criam novos ideais, valorizam novas formas de pensar e modificam as
condutas. Isto causa mudanças nas formas de subjetivação produzindo como
consequência sujeitos diferentes, que em geral são diferenciados pelo que
consomem.
Adquirir
bens e produtos consumíveis passa a definir a nossa imagem, classe social e
status. Seguimos uma lógica que interfere na nossa autoestima, pois apesar da
promessa embutida nos sonhos de consumo, estes objetos sempre nos frustram,
pois nunca coincidem com as imagens
desejadas. São apenas imagens, sem a extensão simbólica necessária.
Tomemos
certas musas de carnavais como a Feiticeira, a Tiazinha, ou a Adriane Galisteu.
A cada ano é uma figura que ocupa a imagem de musa, com direito às capas de
revistas e aos olhares de reverência das pessoas. Mas como toda imagem isso não
persiste e nem confere valor às pessoas que se tornam meros personagens de si
mesmas. Poder-se-ia usar como exemplo aquelas fotos que tiramos em parque de
diversões em que escolhemos o personagem
que queremos ser e colocamos nossa cabeça no vão deixado ali para ser preenchido.
Após a foto vamos embora e deixamos aquele invólucro para ser preenchido por
outras pessoas que farão o mesmo.
Essa
necessidade de se tornar visível na sociedade de espetáculo contribui para o
esvaziamento da importância da esfera da intimidade e do mundo privado e muda
os critérios de definição do sofrimento psíquico.
Na
cultura do psicológico e da intimidade esses sofrimentos eram da esfera do
conflito entre nossos desejos e as proibições que nos seriam impostas. Na
cultura das sensações e do espetáculo o mal estar se situa no campo da
performance, já que podemos construir
uma imagem, mas muitas vezes ficamos longe de uma apropriação subjetiva.
Pode-se
malhar o corpo e deixa-lo sarado para coincidir com a imagem do gatão desejado
pelas mulheres, mas isso não muda o fato de ser impotente ou ainda passar horas
esculpindo ou bronzeando o abdome para exibi-lo em roupas sensuais e atrair os
olhares de todos os meninos, embora o ideal de homem desejado seja aquele que respeita
e deseja se comprometer.
O
sujeito da pós-modernidade parece ficar esvaziado de questões sobre si o que o
faz sentir-se incompetente, insuficiente ou ressentido.
Não
se pode dizer que o sonho da cultura centrada no indivíduo não tenha se
realizado.
Somos
todos membros de uma humanidade comum. Já fomos filhos do mesmo Deus e todos dotados
de razão. Atualmente somos refém do mercado e do consumo e isso precisa ser
analisado como um movimento cultural que deixa sua marca em nossa subjetividade.
Como
ilustração de modos de subjetivação, inspirados em Luís Claudio Figueiredo, podemos
lembrar-nos de “O cavaleiro inexistente”, novela de Ítalo Calvino que configura
três possibilidades de sujeitos encarnados em três personagens distintos. Agilufo
é o estranho cavaleiro de armadura branca, dentro da qual nada existe, a não
ser sua voz metálica e os movimentos que indicam a existência-inexistência
desse comedido e sistemático cavaleiro, que tem consciência de existir, mas de
fato não existe. Gordulu é pura imanência
com a natureza, sensibilidade corpórea e, embora exista, não tem consciência disso.
Finalmente Rambaldo, que é uma espécie
de consciência encarnada em busca de um frágil ponto de equilíbrio entre os
dois primeiros.
Aula
ministrada para alunos de psicologia da PUC SP 2003
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