segunda-feira, 12 de junho de 2017

Pensando a psicanálise

Pensando a Psicanálise

Gisela Haddad

Gostaríamos de trazer dois temas que poderiam nos ajudar a discutir a psicanálise em sua relação com a cultura atual: o consumo e o ressentimento.
Antes, porém situaremos a Psicanálise em um contexto histórico, o que nos leva a fazer um pequeno resumo do que seria a modernidade e seu berço. Para diferenciar a modernidade dos dias atuais, tentaremos descrever o que se convencionou chamar de pós-modernidade, particularmente nas subjetividades atuais. Destacaremos as contradições a que está exposto o sujeito contemporâneo no cenário da subjetivação do consumo e como há uma promessa e uma decepção ressentida presentes aí.
Poderíamos apontar muitas diferenças entre as sociedades tradicionais e a moderna, mas iremos privilegiar algumas diferenças  que consideramos importantes às mudanças que queremos marcar.
Idade Média
O sujeito da idade média vivia em um mundo onde o seu sentido já estava previamente definido, assim como sua classe social e o que era esperado dele.
Veremos como este sujeito sofrerá uma crise de identidade  com as mudanças sociais que ocorrerão. No final da Idade Média, acontecem as grandes navegações, as descobertas de novos continentes, o contato com outros povos e outra cultura, a queda do regime feudal com a urbanização das cidades e o surgimento de novos serviços. Este homem maravilhado com as mudanças, liberado de suas tradições sociais e culturais e da servidão feudal irá se desgarrar de um mundo onde ocupava um lugar e um estatuto e perder sua segurança e sua confiança na possibilidade de constituir um conhecimento.
Muitos autores costumam adjetivar a Idade Média como a idade das trevas em oposição a das luzes ou o iluminismo da idade moderna. Mas muitos historiadores versam sobre seu valor.
Idade Moderna
Podemos destacar duas grandes tradições do projeto moderno: a racionalista, onde Descartes é o expoente principal, inaugurando o sujeito do conhecimento e o romantismo que, de certa maneira faz uma crítica à racionalidade ao dar ênfase às paixões. Descartes foi um filósofo francês do século XVII que viveu este momento de crise e participou da organização do discurso moderno, onde o sujeito começará a questionar, a querer conhecer a natureza. O projeto cartesiano inaugura a modernidade ao construir um método racionalista que deseja constituir o sujeito do conhecimento. Haveria de existir algum tipo de “verdade” que fundamentasse o conhecimento. Descartes quer instaurar o sujeito purificado. Mas o que seria isso?
Ele acreditava que se privilegiássemos a sua parte confiável, ou seja, a razão, esta seria a responsável pela produção de conhecimentos e certezas. O famoso Método de Descartes, portanto irá descrever o pensamento com regras explícitas e seu objetos com representações claras e distintas para que pudessem se constituir em objetos da ciência. O que Descartes pretendia e de certa maneira conseguiu era constituir uma ciência, algo com que o homem pudesse contar e que lhe desse algumas certezas a respeito de si e do mundo.
No entanto, para objetivar o mundo foi necessário fazer uma cisão e deixar de fora uma parte do sujeito que não estaria apta a produzir conhecimento. Haveria que se deixar de lado as paixões e os afetos para conhecer a natureza.
Poderíamos dizer que é encima do que fica excluído do racionalismo que nasce o romantismo, ou seja, o corpo, os afetos e as paixões se impõem como objetos de conhecimento a serem incorporadas pelo sujeito. É diante de perguntas do que se faz para conhecer e conviver com esses ruídos do corpo que não silenciam que nascem as ciências humanas, como a Sociologia e a Antropologia.
O movimento romântico pode ser abordado de diversos ângulos e em vários países da Europa do século XVIII e XIX , mas é  na Alemanha que ele irá se configurar como um movimento cultural do qual Goete é  um dos seus expoentes. E será pela maneira aprisionante com que o racionalismo explica a natureza que o romantismo fará a reconciliação da sensibilidade com a razão.
Serão os sentidos nutrindo a razão e trazendo à cena a dimensão da interioridade.
Podemos dizer que a Psicanalise irá beber destas duas fontes: o racionalismo e o romantismo, já que ambas as tradições são versões do projeto moderno e pretendem instituir o sujeito como fundamento. Assim Freud tem um pé em cada uma destas tradições modernas. É médico com uma formação acadêmico-científica na área de neurologia, fisiologia e anatomia, mas mantêm uma interlocução constante com a produção literária do movimento romântico. Isto será de fundamental importância no nascimento da Psicanálise. Como pesquisador nos laboratórios do Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena, atividade esta que estava totalmente de acordo com as bases das ciências naturais da época, Freud era um leitor assíduo dos filósofos e da literatura romântica, o que muito influirá em sua criação de uma teoria original do psiquismo.
Embora professasse sua inclinação para a manutenção de um discurso cientifico, não é difícil vê-lo, em seus textos, flertar o tempo todo com a liberdade especulativa dos filósofos  ou mergulhar nas profundezas da alma humana tal e qual os poetas faziam para extrair conhecimento.
Uma pequena ilustração destas duas vertentes na sua obra são os textos “Projeto de uma Psicologia científica” escrito em 1895 e “a Interpretação dos Sonhos” escrito em 1900.Emboraa fossem produzidos praticamente na mesma época, no primeiro Freud desejava construir uma teoria do aparelho psíquico em bases científicas e assim privilegia os neurônios, as quantidades, os investimentos ,os deslocamentos de energia, etc. Já em “Interpretação dos Sonhos” ele trabalha com temas do cotidiano. Os sonhos seriam os restos daquilo que interessava ao pensamento científico do final do século XIX.
Por outro lado, a modernidade inaugura um amplo processo de individualismo, que permitirá o nascimento de uma forma subjetiva particular, caracterizada tanto pela interioridade psicológica como pela construção de identidades fundadas em atributos e sentimentos privados, muito diferentes do que se via antes, onde as identidades e papéis sociais eram atribuídos por herança, conforme laços de pertencimento definidos ao nascer. Ser alguém significava fazer parte de um todo.
Na era moderna, ser alguém será tornar-se alguém e conceber sua existência como uma realização pessoal ao longo da vida.
Isto é o que chamamos a construção do sujeito moderno da Psicanálise. Um sujeito que terá que dar conta das exigências da vida burguesa, se haver com o choque entre suas aspirações e seus desejos reprimidos, e com as regras rígidas impostas pelas convenções sociais. Nasce assim a cultura do psicológico e da intimidade onde o sofrimento é experimentado como conflito interior.
Este quadro, no entanto sofreu imensas transformações e hoje é bem diferente daquele que vimos no nascimento da Psicanálise.
Estas mudanças tem sido objeto de muitas discussões de vários autores, tanto psicanalistas (Birman, Calligaris, Figueiredo, Freire Costa, Bezerra Junior) como historiadores ou cientistas sociais (Roudinesco, Bauman, Lash, Debord)
Claro que as mudanças no campo político com o advento do projeto neoliberal que institui o capital e seus derivados diretos como o mercado e o consumo, a velocidade do avanço da tecnobiociencia e as modernas tecnologias de comunicação criam novos ideais, valorizam novas formas de pensar e modificam as condutas. Isto causa mudanças nas formas de subjetivação produzindo como consequência sujeitos diferentes, que em geral são diferenciados pelo que consomem.
Adquirir bens e produtos consumíveis passa a definir a nossa imagem, classe social e status. Seguimos uma lógica que interfere na nossa autoestima, pois apesar da promessa embutida nos sonhos de consumo, estes objetos sempre nos frustram, pois nunca  coincidem com as imagens desejadas. São apenas imagens, sem a extensão simbólica necessária.
Tomemos certas musas de carnavais como a Feiticeira, a Tiazinha, ou a Adriane Galisteu. A cada ano é uma figura que ocupa a imagem de musa, com direito às capas de revistas e aos olhares de reverência das pessoas. Mas como toda imagem isso não persiste e nem confere valor às pessoas que se tornam meros personagens de si mesmas. Poder-se-ia usar como exemplo aquelas fotos que tiramos em parque de diversões em que  escolhemos o personagem que queremos ser e colocamos nossa cabeça no vão deixado ali para ser preenchido. Após a foto vamos embora e deixamos aquele invólucro para ser preenchido por outras pessoas que farão o mesmo.
Essa necessidade de se tornar visível na sociedade de espetáculo contribui para o esvaziamento da importância da esfera da intimidade e do mundo privado e muda os critérios de definição do sofrimento psíquico.
Na cultura do psicológico e da intimidade esses sofrimentos eram da esfera do conflito entre nossos desejos e as proibições que nos seriam impostas. Na cultura das sensações e do espetáculo o mal estar se situa no campo da performance,  já que podemos construir uma imagem, mas muitas vezes ficamos longe de uma apropriação subjetiva.
Pode-se malhar o corpo e deixa-lo sarado para coincidir com a imagem do gatão desejado pelas mulheres, mas isso não muda o fato de ser impotente ou ainda passar horas esculpindo ou bronzeando o abdome para exibi-lo em roupas sensuais e atrair os olhares de todos os meninos, embora o ideal de homem desejado seja aquele que respeita e deseja se comprometer.
O sujeito da pós-modernidade parece ficar esvaziado de questões sobre si o que o faz sentir-se incompetente, insuficiente ou ressentido.
Não se pode dizer que o sonho da cultura centrada no indivíduo não tenha se realizado.
Somos todos membros de uma humanidade comum. Já fomos filhos do mesmo Deus e todos dotados de razão. Atualmente somos refém do mercado e do consumo e isso precisa ser analisado como um movimento cultural que deixa sua marca em  nossa subjetividade.
Como ilustração de modos de subjetivação, inspirados em Luís Claudio Figueiredo, podemos lembrar-nos de “O cavaleiro inexistente”, novela de Ítalo Calvino que configura três possibilidades de sujeitos encarnados em três personagens distintos. Agilufo é o estranho cavaleiro de armadura branca, dentro da qual nada existe, a não ser sua voz metálica e os movimentos que indicam a existência-inexistência desse comedido e sistemático cavaleiro, que tem consciência de existir, mas de fato não existe. Gordulu é pura imanência com a natureza, sensibilidade corpórea e, embora exista, não tem consciência disso. Finalmente  Rambaldo, que é uma espécie de consciência encarnada em busca de um frágil ponto de equilíbrio entre os dois primeiros.  


 Aula ministrada para alunos de psicologia da PUC SP 2003

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