O lugar da loucura na sociedade
A loucura é historicamente marcada pelo estigma social e diz
respeito a manifestação radical de uma diferença ao se expressar numa experiência
dilacerante e refratária ao laços sociais. A exclusão do louco estaria
relacionada à negação que a sociedade faz de sua própria loucura, e se a
loucura fica depositada na figura do louco, isso permite à comunidade, por
oposição imaginar-se sã.
Se focarmos na história da loucura veremos que ela é tão
antiga quanto a humanidade, sendo que até a idade média era vista como
diversidade, carregada de conteúdo místico e tratada através de exorcismo ou sacrifício.
Em seguida passou a exercer um certo
fascínio pelo saber que dela decorria. Loucura e razão passaram a ter uma
relação muito próxima e confundiam-se entre si.
Foi a partir do século XVI, com as mudanças sócio-políticas da
modernidade que os espaços sociais e de trabalho se modificaram consolidando um
processo de segregação de todos os que ameaçam a ordem social: mendigos, doentes,
loucos, ociosos e prostitutas.
A miséria e a loucura deixaram de ter a positividade mística
herdada pela Igreja e passaram a ser um obstáculo contra a boa marcha do Estado.
Sem a referencia do sagrado para os miseráveis e loucos, eles passam a ser
confinados por serem ociosos e incapacitados
para o trabalho. Um confinamento que interna no mesmo lugar o enfermo, o
libertino, a prostituta, o imbecil e o insano.
A construção da noção de psicopatologia nos reporta a história
da construção da tradição da psiquiatria moderna e a transformação que esta
imprimiu à loucura na modernidade ocidental. Ao descrevê-la como desrazão e
depois como doença mental retirou-lhe o estatuto de espaço oracular de
enunciação da verdade, inserida nos rituais comunitários e, portanto em permanente
diálogo com a cultura. Foi esta substituição da experiência trágica pela
experiência crítica da loucura que a inscreveu como uma experiência estranha ao
homem e a cultura.
Foucault, aponta também o nascimento de uma nova
sensibilidade social à miséria, aos deveres da assistência, aos problemas
políticos e econômicos, e ao sonho de
uma cidade onde a obrigação moral se uniria a lei civil.
Esta mesma confusão entre loucos e criminosos será vista com
espanto já que a loucura passa a ser mais bem observada e entendida como uma
limitação humana que provocava incapacitação para o trabalho.
Com a revolução francesa a reforma política econômica e administrativa
nas relações sociais faz com que a loucura deixe de ser um objeto do poder
judiciário e passe a ser encargo da medicina. Essa passagem para o campo a saúde
dará início a um outro capítulo da história da loucura.
O século XVIII tem como referencia ideológica o iluminismo e
o racionalismo que dá inicio ao individualismo, libertando o individuo da
ignorância e da submissão às superstições e a religião.
Embora haja uma transformação na consciência da loucura e na
proposição de assisti-la, ela ainda será confinada, e este asilo será uma
metáfora da exclusão.
A transformação da loucura em doença mental que acontece
junto ao nascimento da psiquiatria como ciência e do asilo como espaço de tratamento
da alienação mental, coloca a loucura como objeto de uma terapêutica e de um
saber médico e a diferencia dos que transgrediam as leis. Mas a estratégia de
tratamento utilizada visava silenciar as manifestações que passam a ser vistas
como doenças.
Claro que nestes 200 anos que nos separam da obra de Pinel,
o médico francês que ligou seu nome à libertação dos loucos, muitas mudanças
ocorreram no tratamento da loucura, principalmente a partir do questionamento da
própria ordem psiquiátrica feita nas últimas décadas.
As comunidades terapêuticas, o movimento da antipsiquiatria,
a psicoterapia institucional e a psiquiatria democrática realizaram uma crítica
profunda da cultura asilar e manicomial.Mesmo que os asilos ainda permaneçam aqui
e acolá, as transformações ocorridas na assistência psiquiátrica foram
inúmeras.
O que hoje leva o nome de Reforma Psiquiátrica pretendeu
tanto desconstruir a cultura manicomial hegemônica, criada em torno do asilo,
suas práticas de exclusão e redução da loucura a doença mental quanto criar um
novo campo de atenção psicossocial. Reformular as práticas terapêuticas, criar
leis, mudar a imagem da loucura no imaginário social, no entanto é um processo
complexo que aponta não só para uma mudança política quanto clinica.
Por outro lado, a mudança mais difícil talvez seja aquela
que pretende modificar a figura do louco no imaginário social, deslocando-o de
objeto humano desprovido de razão para um sujeito que precisa ser tratado tanto
na sua dimensão psíquica como social (relação com a família, grupos sociais,
escola, trabalho, comunidade e lazer).
Abordar o sofrimento psíquico em uma perspectiva de cuidados
e não de cura faz um deslocamento importante na direção de uma mudança neste
imaginário social.
Aqui no Brasil, após a reforma ocorrida na década de 90
proliferam os hospitais-dia, os lares abrigados e os CAPs (Centro de Atenção Psicossocial)
que substituíram os antigos asilos e que oferecem uma alternativa de tratamento
multidisciplinar para a população carente.
A defesa da cidadania do louco, de seus direitos, a
exigência de respeito social à sua diferença, a criação de espaços de
sociabilidade para ele estão entre as reivindicações e conquistas mais freqüentes
dos profissionais de saúde que lutam pela inserção do louco na cultura.
O Acompanhante Terapêutico, atividade que tem se difundido
bastante recentemente, tem se mostrado um bom dispositivo na tentativa de
inserção do louco na sociedade, uma preocupação recente dos profissionais com a
reabilitação psicossocial inclusive como uma exigência ética, que visa a (re)
construção do exercício da cidadania e de um lugar efetivo na casa, no trabalho e na rede social.
Mas é importante apontar a complexidade desta tarefa que
visa intervir na existência e no sofrimento destas pessoas, e não confundi-las
com mero entretenimento, ou com adestramento.
Apesar da criação desta rede, os modos tradicionais de
tratar a loucura ainda permanecem e isto também se deve à reincidência da resistência
humana em contestar sua relação com o louco e uma recusa em ouvir sua linguagem
perturbadora e aparentemente estranha.
Porque, afinal, a loucura mantém esta dimensão de repúdio,
de estranheza, e muitas vezes de fascínio?
Há pouco mais de 100 anos Freud mostrou que não era preciso
opor a loucura à normalidade. Deslocou-a do registro do erro e colocou-a em um
modo particular do sujeito dizer sobre si. Com sua prática clinica, descobriu
que a loucura mostrava o que de certa maneira já estava no inconsciente de cada
um. Os loucos seriam aqueles que teriam sucumbido a uma luta que seria a mesma
para todos. Ao contrário da concepção psiquiátrica, Freud valorizou o discurso
do psicótico e suas produções, e percebeu que este discurso falava dele, de
seus desejos, ainda que ele mesmo não pudesse se reconhecer. O delírio, por
exemplo, seria um veículo de comunicação de seu sintoma, e paradoxalmente uma
tentativa de cura. Apesar destes feitos, Foucault faz uma crítica ao discurso
da psicanálise, que não teria restituído a experiência trágica da loucura,
mantendo-a na tradição da psiquiatria que visava uma cura e, portanto uma
normatização da experiência humana.
A escuta da loucura não marca apenas uma possibilidade de
humanização da relação do louco com quem o assiste ou com os demais, mas
principalmente um respeito à sua palavra e uma implicação efetiva na
possibilidade dele poder fazer parte da sociedade. É isto que marca a diferença
com as assistências alienantes, que tratam o louco como um objeto que não porta nenhum saber sobre si
mesmo e que demanda cuidados de proteção definidos a priori tal e qual um bebê,
o que o torna refém de uma prática moral
educativa.
Perdem-se assim a escuta do novo, o reconhecimento e o
respeito pela diferença e cai-se em um cuidado formal, uma prática do exercício
de caridade ou piedade. Se há comunicação entre razão e desrazão, isto permite
desvendar a singularidade de cada sujeito no enfrentamento de um conflito que é
de todos ainda que ganhe destinos diferentes.
Como vimos os loucos ainda hoje exercem este duplo fascínio:
ao mesmo tempo em que impõem aos cidadãos métodos efetivos para tratá-los e inseri-los
na sociedade, recuperando sua autonomia e cidadania, mantêm sua condição de
objeto de repúdio e de estranheza.
Estamira
Ao contrário do filme “Bicho de 7 cabeças” que denuncia o
sistema manicomial, em “Estamira” seu diretor resolve “escutar” durante quatro anos
o que esta senhora que viveu entre sua casa e o lixão onde trabalha tem a dizer
sobre si, seu mundo, suas crenças, seus desejos.
Apesar de este discurso expor uma percepção do mundo e de si
confusa e delirante, (o psicótico precisa inventar sozinho um sentido para a
sua presença no mundo), muitas vezes é possível ouvi-la falar de questões que
podemos identificar como nossas, tais como as que desvendam o desamparo humano
social, econômico e político. A diferença entre as crenças e a visão de mundo
de Estamira e as nossas é que as nossas são amparadas por uma credibilidade já
que compartilhadas pela maioria.
O filme não pretende
fazer denúncias sobre a exclusão e nem busca uma idealização do louco, mas
coloca em evidência a humanidade da loucura, mostrando-a como uma
possibilidade, por vezes a única, do sujeito sobreviver.
O louco permanece sendo para a sociedade, alguém que recebe
ou nosso olhar compassivo, ou de exclusão ou de zombaria e ódio.
É bom lembrar que nosso ódio ou desprezo pelo diferente está
ligado a nossa necessidade de expulsar de nós mesmos aquela semelhança
percebida nele que nos assombra.
Já em um plano mais cultural e menos pessoal, a loucura
interroga diretamente a capacidade dos humanos de estar junto, se agruparem,
fazer trocas, ou seja, de viver em sociedade, já que nos coloca diante dos
enigmas do que acontece no espaço entre humanos quando os códigos sociais
convencionais falham.
Palestra proferida para a turma de jornalismo da PUC SP 2003
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