Deus está em São Paulo, por pouco tempo, e pasmem,
resolveu procurar uma terapeuta para tratar sua angústia. Com uma boa mistura
entre o humor e a reflexão sobre temas complexos que envolvem a relação do
homem com Deus e as dores da existência, este é o mote da peça “Meu Deus!” que
estreou há duas semanas no Teatro FAAP. Longe do Todo-Poderoso dos velhos
tempos da criação, Deus está desesperado e pelo telefone, implora urgência para
sua consulta. Certa de estar recebendo um psicótico em franco delírio – por
este se apresentar como Deus- a psicóloga Ana (Irene Ravache) vai abrindo
espaço para ouvir o improvável: a história de Deus, sua depressão frente à situação
da humanidade, seu sentimento de fracasso, sua solidão. Em um “tour de force”,
ambos – Deus e a terapeuta - acostumados a ouvir os lamentos, as dores, as
tristezas, e acolher o sofrimento de forma a dar-lhe alguma direção, passam uma
revista pela história humana à luz da história de Deus e aproveitam para olhar
a si próprios. Não muito longe dali, em algumas salas de cinema, Deus está
contracenando com Noé (que também estreou na semana passada). E o cenário é de
caos e barbárie. Guardando alguma semelhança com algumas cenas do mundo atual
em que impera a violência, o ódio, o descaso, a miséria, Noé se transforma em
instrumento da vontade de Deus ao construir uma arca que deverá abrigar apenas
os que se salvarão de sua Ira. Sua missão, no entanto, poderia abrir um debate
sobre o temido e previsto Juízo Final, quando Deus deverá julgar a todos,
discriminando os que merecem ser salvos dos que serão condenados. Tarefa
possível? No filme, Noé incorpora a ira e a indignação de Deus, tornando-se ele
próprio um perseguidor atroz, mas nem sempre justo, de todos que julga não
estarem aptos a fazer parte desta missão higienista. Tais simbologias sagradas
ganham significados importantes quando revistas por historiadores do naipe do
francês Jacques Le Goff, falecido no ultimo dia 1 de abril. Conhecido por ter apresentado
ao mundo uma "outra Idade Média", ele buscou apreender os sonhos e
terrores de seus homens, bruxas e monjas, suas sombras e luzes e revelou ter
sido ali gestado a matriz de nossa modernidade e o elemento fundamental de nosso
cristianismo. Em a “A Invenção do Purgatório” que acontece no século 12, Le
Goff mostra como o surgimento desta ideia estaria ligada ao fato dos homens de
então passarem a rejeitar a divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados,
inferno e paraíso e buscarem uma alternativa a este maniqueísmo pérfido através
dos estágios intermediários do purgatório que assim poderia abrigar a infinita
variedade do Mal e do Bem. Nesta escala, entre a ira e o poder Divino ou sua
misericórdia e compaixão, poderia se assentar o humano em sua eterna e incerta
busca por uma vida digna. Graças a Deus!
Para conferir:
"Meu Deus!" - texto de Anat Gov, direção
de Elias Andreato, em cartaz no Teatro FAAP-SP com Irene Ravache e Dan Stulbach.
Noé – direção Darren Aronofsky , com Russel Crowe em
cartaz nos cinemas