domingo, 13 de abril de 2014

Seja o que Deus quiser

Deus está em São Paulo, por pouco tempo, e pasmem, resolveu procurar uma terapeuta para tratar sua angústia. Com uma boa mistura entre o humor e a reflexão sobre temas complexos que envolvem a relação do homem com Deus e as dores da existência, este é o mote da peça “Meu Deus!” que estreou há duas semanas no Teatro FAAP. Longe do Todo-Poderoso dos velhos tempos da criação, Deus está desesperado e pelo telefone, implora urgência para sua consulta. Certa de estar recebendo um psicótico em franco delírio – por este se apresentar como Deus- a psicóloga Ana (Irene Ravache) vai abrindo espaço para ouvir o improvável: a história de Deus, sua depressão frente à situação da humanidade, seu sentimento de fracasso, sua solidão. Em um “tour de force”, ambos – Deus e a terapeuta - acostumados a ouvir os lamentos, as dores, as tristezas, e acolher o sofrimento de forma a dar-lhe alguma direção, passam uma revista pela história humana à luz da história de Deus e aproveitam para olhar a si próprios. Não muito longe dali, em algumas salas de cinema, Deus está contracenando com Noé (que também estreou na semana passada). E o cenário é de caos e barbárie. Guardando alguma semelhança com algumas cenas do mundo atual em que impera a violência, o ódio, o descaso, a miséria, Noé se transforma em instrumento da vontade de Deus ao construir uma arca que deverá abrigar apenas os que se salvarão de sua Ira. Sua missão, no entanto, poderia abrir um debate sobre o temido e previsto Juízo Final, quando Deus deverá julgar a todos, discriminando os que merecem ser salvos dos que serão condenados. Tarefa possível? No filme, Noé incorpora a ira e a indignação de Deus, tornando-se ele próprio um perseguidor atroz, mas nem sempre justo, de todos que julga não estarem aptos a fazer parte desta missão higienista. Tais simbologias sagradas ganham significados importantes quando revistas por historiadores do naipe do francês Jacques Le Goff, falecido no ultimo dia 1 de abril. Conhecido por ter apresentado ao mundo uma "outra Idade Média", ele buscou apreender os sonhos e terrores de seus homens, bruxas e monjas, suas sombras e luzes e revelou ter sido ali gestado a matriz de nossa modernidade e o elemento fundamental de nosso cristianismo. Em a “A Invenção do Purgatório” que acontece no século 12, Le Goff mostra como o surgimento desta ideia estaria ligada ao fato dos homens de então passarem a rejeitar a divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso e buscarem uma alternativa a este maniqueísmo pérfido através dos estágios intermediários do purgatório que assim poderia abrigar a infinita variedade do Mal e do Bem. Nesta escala, entre a ira e o poder Divino ou sua misericórdia e compaixão, poderia se assentar o humano em sua eterna e incerta busca por uma vida digna. Graças a Deus!

Para conferir:

"Meu Deus!" - texto de Anat Gov, direção de Elias Andreato, em cartaz no Teatro FAAP-SP com  Irene Ravache e Dan Stulbach.

Noé – direção Darren Aronofsky , com Russel Crowe em cartaz nos cinemas


O estado do Estado

Grosso modo, quando se comenta sobre as diferenças de cultura de países que foram colonizados por católicos ou protestantes, um dos pontos de maior relevância é a autonomia que a necessidade de alfabetização dos protestantes, e, portanto de proliferação de escolas, mais do que igrejas, deixou como marca. O trabalho, a conquista, o empenho eram valores reconhecidos pelos pastores. Não por acaso o país que mais se aproxima da instalação de um regime verdadeiramente democrático seja o Estados Unidos. Visto de longe, sob nosso olhar tupiniquim, é possível estranhar a diversidade que o “estado” americano precisa administrar, seja de valores, de crenças (religiosas ou não), de contras ou a favor, de ultraconservadores a superliberais. A democracia nem é o regime perfeito, mas é aquele que consolida a liberdade dos seus cidadãos (através de regras, claro) e por isso mesmo admite as diferenças, as controversas. Nos USA há conchavos, corrupção, demagogia, manipulações, mas ninguém espera que o “estado” americano o proteja de suas irresponsabilidades ou ilegalidades. Embora a pesquisa da Datafolha divulgada pela Folha de São Paulo em 30 de abril último demonstre que 62% dos brasileiros consideram que a democracia seja melhor que qualquer outra forma de governo, uma análise mais profunda da cultura brasileira revelaria que aqui pouco se sabe sobre a vida em um regime democrático, que exige, no mínimo, uma consciência cívica do que é comum a todos. Nosso Estado, com E maiúsculo é interventor, diretor, quer ser provedor e raramente está comprometido com o bem estar da comunidade. Por nosso lado, acostumamos a ter este “Estado”,em quem jogamos lama e louros a depender se nos favorece ou nos prejudica. Há certa leviandade nesta relação. Talvez por isso seja desconcertante perceber que passados 50 anos do golpe militar e dos 20 obscuros anos de ditadura ainda estejamos longe de “entender” as regras do jogo democrático. No Caderno Aliás de 30 de abril há uma entrevista com um dos maiores defensores da liberdade irrestrita dos povos sobre o uso da internet, o francês Jeremie Zimmermann, a despeito da votação do Congresso Nacional sobre o Marco Civil da Internet. Considerando-se um cidadão do mundo, ele acredita que estejamos vivendo um momento fundamental para se pensar o mundo nos próximos 50 anos, dependentes que seremos da tecnologia. Seu sonho é um mundo on line, conectado, que garanta a todos, direitos e liberdades. Uma rede neutra que siga os princípios de nossa Declaração Universal dos Direitos Humanos . Zimmermann é jovem, e seu discurso ideológico convoca muito mais a geração de jovens que deveriam querer pensar o futuro à luz da invenção da internet e das novas formas de organização, interação, trabalho e principalmente solidariedade que ela propõe. Se nos parece difícil pensar a Democracia, imagine um mundo em Rede, sem um Estado para nos “garantir” ou “proteger”. Resta apostar em nossos jovens e em sua ousadia.