Uma amiga me contava que a vida em cidades do
interior, se tem suas vantagens no quesito “qualidade” também pode ser bem
pesada quando certas condutas consideradas “outsiders” (fora do padrão, ou
melhor, fora do esperado) ficam mais expostas aos julgamentos morais da
maioria. Detalhe, ela reclamava das reações à sua recente separação conjugal,
que imaginava não ser mais motivo para tantas exclamações. Afinal porque era
tão difícil respeitar escolhas tomadas na intimidade de vidas privadas? À
medida que ela me contava sua aflita sensação de estar sendo equivocadamente
julgada me lembrava de uma época já distante, criança ainda, em que a quase
totalidade da população de minha cidade, incluídos aí meus pais, seguiam os
preceitos da religião católica. Encaminhar os filhos às escolas para serem
alfabetizados tinha o mesmo peso de envia-los ao catecismo, cujas aulas faziam
parte dos currículos das escolas primárias. O discurso “laico”, ou seja, dos
professores e pais confundia-se com as normas religiosas. Batismos,
primeira-comunhões, crismas, missas aos domingos e procissões eram eventos
sociais que compunham a vida de quase todos e estavam pareados em importância
com outras festas (pagãs) como os bailes, o carnaval, o réveillon, os desfiles patrióticos,
os campeonatos esportivos, os jogos coletivos, etc. Pensei de imediato como
aquilo que tomamos como “normalidade”, ou melhor, o que a cada época
instituímos como permitido, como esperado, está à mercê das leituras que
fazemos (com nossa comunidade, nossa cultura) sobre os sentidos e modos de se
estar no mundo. A inusitada troca de papas acontecida recentemente trouxe à
tona uma infinidade de debates a respeito do destino do catolicismo (e de suas
mais polêmicas restrições), algo que na época descrita acima seria impensável,
quando ao contrário, a maioria dos “pais” desfrutava do conforto das normas
religiosas na escolha dos caminhos morais da educação de seus filhos. Emprestando
sua leitura sobre o certo e o errado como verdades inquestionáveis a religião
católica era uma grande parceira nesta empreitada. Mas os movimentos de
transmissão, aquilo que passamos à geração seguinte, costumam balançar entre a continuidade
e a ruptura e quando existe um espaço de liberdade, as inquietações, os pesares
e amarras são repensadas, não sem muitas resistências do que parecia
estabelecido. A antropóloga e professora da UNB (Universidade de Brasília) Debora
Diniz participou dia 1° de março em Belém da primeira reunião de conselheiros
médicos do país para a discussão da descriminalização do aborto no Brasil, uma
espécie de deliberação sobre o direito das mulheres decidirem sobre o futuro de
suas gestações. Levava consigo os números de uma pesquisa em saúde pública
brasileira sobre o aborto ilegal e inseguro e muitas histórias de mulheres em
sofrimento. Segundo ela entre os 18 e os 39 anos, mais de 3 milhões de
mulheres, em algum momento de suas vidas reprodutivas, realizaram um aborto (
ilegal, é claro) e temeram pela sua saúde (e vida), pela sua fé ou pela sua prisão.
Na mesma reunião participavam um representante da igreja católica e um promotor
de justiça, ambos defendendo os riscos do aborto, cada um em sua praia. No
texto em que descreve suas impressões sobre o evento (publicado no caderno
Alias do Estadão no dia 24 de março ultimo) a antropóloga faz um balanço dos 20
anos desde que, pela primeira vez, a descriminalização do aborto foi pensada
pelo Conselho Federal de Medicina como uma necessidade de saúde para as
mulheres. Sentiu-se premiada ao presenciar a declaração do CFM “a favor da vida”, ao assumir uma posição
ética que reconhecia a autonomia das mulheres para decidir pelo aborto e dos
médicos pela assistência à saúde. Ao se posicionar a favor do direito de
escolha, o CFM ajudava a retirar o tema do aborto de uma ordem moral religiosa,
hegemônica até então em nosso país, e a serviço do silenciamento de temas que
nos são caros, geradores de conflitos e angustias, como a morte e o sexo. Claro
que poderíamos construir muitos parágrafos se quiséssemos dar voz a um júri
composto de pessoas diversas, convocadas a opinar sobre o tema. A gritaria em
torno da escolha do pastor Feliciano para o comando da comissão de Direitos
Humanos é um exemplo de como a sociedade se divide quanto às suas escolhas
“morais”. O fato é que a falta de um consenso sobre nossas condutas morais, que
muitas vezes nos faz sentir saudades das velhas referências, parece ser o preço
a pagar pela conquista de nossa liberdade de escolha. E quem sabe viver uma boa
vida hoje não mais signifique “adaptar-se” completamente a algum status quo, mas conseguir certa flexibilidade capaz de matizar as
mudanças. Minha amiga está bem, mas teve que se haver com a falta de consenso
em torno de sua decisão.
sexta-feira, 29 de março de 2013
Quem sou este
Um texto indignado, mas
corajoso do jornalista
carioca Luiz Fernando Vianna foi publicado na Ilustríssima (Folha
de SP) de 17 de março de 2013. Próximo ao recém-instituído (2008) dia mundial
da conscientização do autismo, 2 de abril, não se pode deixar de celebrar
qualquer espaço midiático que se abre para este que é um tema dos mais
controvertidos. Escrito de forma coloquial, o reporter se apresenta desde o início
como pai de uma criança autista agora com 12 anos e discorre com um tom às vezes
áspero e sarcástico, outras cético e até melancólico sobre as agruras deste
lugar revelando sua pesada bagagem no trato da natureza dos constrangimentos em
torno desta “viagem”. Se há pontos de interrogações, debates ou mesmo disputas
nos campos médicos e psi em torno das origens, do diagnóstico e dos
“tratamentos” não é nada dificil imaginar como muitos destes pais ficam à
deriva, batendo de porta em porta em busca de respostas e direções. Em uma tentativa de discutir as
implicações desse diagnóstico para a vida de uma criança e de seus pais, Vianna
toma um atalho bastante pessoal ao percorrer seus impactos morais, pedagógicos
e emocionais e, embora dedique algum espaço ao ressentimento diante do
preconceito, celebra o auxilio dos recentes relatos de autistas na web e/ou
produções literárias e cinematográficas de biografias sobre o tema. Ainda em
uma jornada muito pessoal, critica e contrapõe as metodologias terapeuticas
segundo uma abordagem cognitivo- comportamental ou psicanalitica e aponta as
controversias em relação às recentes pesquisas na área médica que sinalizam fatores
neurologicos ou genéticos. Como cada campo acena com suas “verdades” sobre o
tema geralmente cabe aos pais (nem sempre com um consenso entre os conjuges)
escolher (acreditar, apostar) em algum destes caminhos. A propria definição de
autismo pode variar segundo a época e os grupos que se ocupam de pesquisa-lo
e/ou oferecer tratamentos. Na linguagem acadêmica atual o autismo – que atinge quase
1% da população global - tem sido tratado como uma disfunção global do
desenvolvimento que altera e afeta a capacidade de comunicação, de socialização
(estabelecer relacionamentos) e de comportamento (responder apropriadamente ao
ambiente). E para acomodar os diversos modos de manifestação e a gama de
possibilidades dos sintomas mais recentemente cunhou-se o termo Transtorno do
Espectro Autista. A psicanálise esteve desde sempre associada aos caminhos e
descaminhos deste transtorno e muitos psicanalistas se dedicaram ao que lhes
parecia ser um campo fertil de pesquisa sobre os primórdios da constituição do
psiquismo humano, compondo relatos e teorias importantes através de suas
clínicas. Mas, afora os quadros fenomenológicos descritivos, é provavel que o
fato de não existir uma teoria consensual sobre o autismo pese sobre a respeitabilidade
social das práticas, assim como pela manutenção do preconceito. Também é
provavel que algumas das teorias no campo da psicanalise tenham
contribuido para que
certas representações culturais sobre o autismo fossem relacionadas à ideia de
deficit, de impossibilidade, de um mundo psíquico desvitalizado ou de pais que
não ofereciam as condições necessárias para um desenvolvimento “adequado”. Se,
no entanto for possivel – como já acontece em alguns lugares - não engessar a
“condição” autista com teorias fechadas e rígidas e tornar seu campo mais
aberto a atendimentos feitos por equipes multidisciplinares, é provavel que não
seja mais o adjetivo “vergonha” (destacado pelo reporter) que abaterá
aos pais que descobrem ter um filho com este diagnóstico. Para a
psicanálise em especial, toda e qualquer criança cumpre uma trajetória singular
de desenvolvimento e constituição, ainda que nasça com alguma alteração
genética.
quinta-feira, 14 de março de 2013
Quem é a criança do século XXI?
Uma manchete
da Folha on line do dia 12 de março de 2013 chamava a atenção para as dificuldades de se colocar
limites para as crianças. Um dos destaques do texto do caderno Equilíbrio era a
pesquisa da mestre em educação e autora de "Limites Sem Trauma”, Tania
Zagury para quem as famílias estariam sob o governo de uma tirania infantil.
Baseada em um estudo com 160 famílias no início dos anos 90, ela afirmava que os
pais dos anos 80 ao desejarem uma educação menos cerceadora para seus filhos, teriam
perdido a medida. O título da matéria ainda sugeria um debate com especialistas
sobre os motivos pelos quais seria tão difícil aos pais nos dias atuais,
encontrarem a tal medida equilibrada para conter as birras ou as transgressões
nos horários de alimentação, sono e estudos. Em geral diante de situações
difíceis tentamos fazer comparações
entre épocas passadas e atuais, discorrendo sobre as desvantagens e vantagens
de uma e outra. É claro que cada época traz uma nova leitura da realidade,
novos parâmetros e valores. E há também novas leituras sobre os descaminhos
humanos. Não há como negar que vivemos na época atual, uma crise geral de
autoridade, em todos os níveis da sociedade. Mas as “crises” não significam fim
e sim um remanejamento temporário de certas “verdades” instituídas. O problema
é que em períodos de crise ficamos desamparados, quase sem referencias sobre certas
ações, comportamentos e ideias antes tão claras. Não é fácil esvaziar
estereótipos e dar lugar a novas maneiras de estar no mundo. Uma “verdade” de nossa época é que jamais a
infância foi tão valorizada, destacada, estudada, cuidada, etc. Não por acaso.
Se há um bocado de razões, podemos sublinhar o fato de que a infância é mais do
que em qualquer época de nossas vidas, aquela que parece ser definitiva dos
rumos que cada um tomará. Assim, uma boa infância ou uma infância feliz seria
uma espécie de garantia de um adulto satisfeito consigo próprio, com pique e
ferramentas para enfrentar os percalços da vida. Quase todos os pais de hoje só
se sentem realizados quando sua prole cresce e se transforma em adultos “felizes”.
Mas certamente esta não é uma tarefa simples e muito menos fácil e é comum nos
depararmos com o desamparo do adulto diante das exigências ou dos conflitos dos
filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”. São pais
que ora se sentem exasperados, ora
culpados ou impotentes, e muitas
vezes incapazes de educar sua criança. Na melhor das hipóteses, a não imposição
de limites e o “medo” de desaprovação de sua função de pai ou de mãe faz com
que muitos desistam de exercer sua responsabilidade e autoridade. Digo no
melhor das hipóteses porque não se podem deixar de fora aqueles pais que
abusam, rivalizam, violentam, ou seja, desrespeitam os direitos de suas
crianças que por seu lado não têm como se defender da displicência, da
irresponsabilidade nem dos excessos de amor e ira de seus pais. Difícil mesmo.
Talvez a mais importante e mais complexa tarefa de nossos tempos: “criar” um
novo ser humano.
sexta-feira, 8 de março de 2013
Você tem um sonho?
Em uma entrevista concedida a Marilia Gabriela o
diretor do filme “Colegas” que está estreando em circuito nacional confessa que
a ideia de criar um roteiro protagonizado por atores com Síndrome de Down era
um sonho antigo, uma homenagem amorosa ao tio materno, portador da mesma
síndrome, de quem ele tinha lembranças intensas, de alguém generoso e muito
divertido. Mais, seu filme deveria recriar o clima de aventura que ele guardava
dos momentos em que brincavam juntos. Entre a ideia, o projeto (com tudo o que
isso significa em termos de roteiro, seleção de atores, captação de recursos, etc.)
e a consolidação do sonho, com direito ao premio de melhor filme no festival de
Gramado de 2012, passaram-se sete anos. Na entrevista, realizada com o diretor
e os três atores, Marcelo Galvão conta que sua intenção sempre fora tentar
passar para o público os mesmos sentimentos que guardava em relação a sua
convivência com o tio, ou seja, de como o laço amoroso que os unia ignorava as
diferenças entre eles. Embora a Síndrome de Down - um distúrbio
genético caracterizado pela presença do cromossomo 21 adicional em todas as
células do organismo - seja bastante conhecida por suas características físicas
específicas e pelo desenvolvimento geral mais lento de seus portadores, o comportamento
e a personalidade de cada um ficam muito mais submetidos às influencias do meio
familiar e cultural a que pertencem. Isso fica claro na entrevista dos três
protagonistas que a despeito de partilharem algumas dificuldades, vão narrando
suas historias de vida, com suas conquistas e dores, como as nossas. Ou seja,
mostram que podem ser pessoas ricas ou pobres, cultas ou sem instrução, felizes
ou infelizes. Se por um lado o filme pode circular exibindo apenas o rótulo de uma
comédia romântica bem ao estilo “queremos, logo podemos” tendo como fundo a
força dos sonhos de cada um, certamente os prêmios, o marketing e o espaço que
a mídia está oferecendo a ele poderão funcionar como uma chamada ao polêmico
tema da inclusão de pessoas com deficiência em diversos
âmbitos da sociedade. Lembremos que essa é uma ideia nova, que tem apenas
algumas décadas, e por isso mesmo está longe de amparar todos os que precisam
desta “inclusão”. Destes, destacamos os pais, para os quais os desafios desta
jornada são vividos com muito desamparo, inúmeras incertezas, sentimentos confusos e
contraditórios. O que fazer? Como oferecer a seus bebes um futuro promissor? O
que é melhor, lutar para que sejam aceitos em escolas regulares e enfrentem as
discriminações ou isola-los em classes ou instituições com seus pares? E quando
alcançarem a adolescência? E se quiserem se casar? Qualquer um que se puser no lugar
destes que perguntam poderá imaginar a
dor que enfrentam e as diferenças com as quais cada família tentará contornar a
perda do “bebê perfeito” e enfrentar a nova e inesperada realidade, que no
mínimo lhes exigirá muitas mudanças. Por
isso, talvez o maior valor da ideia deste filme seja a sensível experiência de seu
diretor, que graças a convivência amorosa com seu tio, soube ser possível transformar
um pré-conceito muitas vezes tácito e silencioso, por isso mesmo mais danoso do
que podemos perceber.
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