sexta-feira, 29 de março de 2013

O peso da liberdade


Uma amiga me contava que a vida em cidades do interior, se tem suas vantagens no quesito “qualidade” também pode ser bem pesada quando certas condutas consideradas “outsiders” (fora do padrão, ou melhor, fora do esperado) ficam mais expostas aos julgamentos morais da maioria. Detalhe, ela reclamava das reações à sua recente separação conjugal, que imaginava não ser mais motivo para tantas exclamações. Afinal porque era tão difícil respeitar escolhas tomadas na intimidade de vidas privadas? À medida que ela me contava sua aflita sensação de estar sendo equivocadamente julgada me lembrava de uma época já distante, criança ainda, em que a quase totalidade da população de minha cidade, incluídos aí meus pais, seguiam os preceitos da religião católica. Encaminhar os filhos às escolas para serem alfabetizados tinha o mesmo peso de envia-los ao catecismo, cujas aulas faziam parte dos currículos das escolas primárias. O discurso “laico”, ou seja, dos professores e pais confundia-se com as normas religiosas. Batismos, primeira-comunhões, crismas, missas aos domingos e procissões eram eventos sociais que compunham a vida de quase todos e estavam pareados em importância com outras festas (pagãs) como os bailes, o carnaval, o réveillon, os desfiles patrióticos, os campeonatos esportivos, os jogos coletivos, etc. Pensei de imediato como aquilo que tomamos como “normalidade”, ou melhor, o que a cada época instituímos como permitido, como esperado, está à mercê das leituras que fazemos (com nossa comunidade, nossa cultura) sobre os sentidos e modos de se estar no mundo. A inusitada troca de papas acontecida recentemente trouxe à tona uma infinidade de debates a respeito do destino do catolicismo (e de suas mais polêmicas restrições), algo que na época descrita acima seria impensável, quando ao contrário, a maioria dos “pais” desfrutava do conforto das normas religiosas na escolha dos caminhos morais da educação de seus filhos. Emprestando sua leitura sobre o certo e o errado como verdades inquestionáveis a religião católica era uma grande parceira nesta empreitada. Mas os movimentos de transmissão, aquilo que passamos à geração seguinte, costumam balançar entre a continuidade e a ruptura e quando existe um espaço de liberdade, as inquietações, os pesares e amarras são repensadas, não sem muitas resistências do que parecia estabelecido. A antropóloga e professora da UNB (Universidade de Brasília) Debora Diniz participou dia 1° de março em Belém da primeira reunião de conselheiros médicos do país para a discussão da descriminalização do aborto no Brasil, uma espécie de deliberação sobre o direito das mulheres decidirem sobre o futuro de suas gestações. Levava consigo os números de uma pesquisa em saúde pública brasileira sobre o aborto ilegal e inseguro e muitas histórias de mulheres em sofrimento. Segundo ela entre os 18 e os 39 anos, mais de 3 milhões de mulheres, em algum momento de suas vidas reprodutivas, realizaram um aborto ( ilegal, é claro) e temeram pela sua saúde (e vida), pela sua fé ou pela sua prisão. Na mesma reunião participavam um representante da igreja católica e um promotor de justiça, ambos defendendo os riscos do aborto, cada um em sua praia. No texto em que descreve suas impressões sobre o evento (publicado no caderno Alias do Estadão no dia 24 de março ultimo) a antropóloga faz um balanço dos 20 anos desde que, pela primeira vez, a descriminalização do aborto foi pensada pelo Conselho Federal de Medicina como uma necessidade de saúde para as mulheres. Sentiu-se premiada ao presenciar a declaração do CFM  “a favor da vida”, ao assumir uma posição ética que reconhecia a autonomia das mulheres para decidir pelo aborto e dos médicos pela assistência à saúde. Ao se posicionar a favor do direito de escolha, o CFM ajudava a retirar o tema do aborto de uma ordem moral religiosa, hegemônica até então em nosso país, e a serviço do silenciamento de temas que nos são caros, geradores de conflitos e angustias, como a morte e o sexo. Claro que poderíamos construir muitos parágrafos se quiséssemos dar voz a um júri composto de pessoas diversas, convocadas a opinar sobre o tema. A gritaria em torno da escolha do pastor Feliciano para o comando da comissão de Direitos Humanos é um exemplo de como a sociedade se divide quanto às suas escolhas “morais”. O fato é que a falta de um consenso sobre nossas condutas morais, que muitas vezes nos faz sentir saudades das velhas referências, parece ser o preço a pagar pela conquista de nossa liberdade de escolha. E quem sabe viver uma boa vida hoje não mais signifique “adaptar-se” completamente  a algum status quo,  mas conseguir  certa flexibilidade capaz de matizar as mudanças. Minha amiga está bem, mas teve que se haver com a falta de consenso em torno de sua decisão.   

Quem sou este


Um texto indignado, mas corajoso do jornalista carioca Luiz Fernando Vianna foi publicado na Ilustríssima (Folha de SP) de 17 de março de 2013. Próximo ao recém-instituído (2008) dia mundial da conscientização do autismo, 2 de abril, não se pode deixar de celebrar qualquer espaço midiático que se abre para este que é um tema dos mais controvertidos. Escrito de forma coloquial, o reporter se apresenta desde o início como pai de uma criança autista agora com 12 anos e discorre com um tom às vezes áspero e sarcástico, outras cético e até melancólico sobre as agruras deste lugar revelando sua pesada bagagem no trato da natureza dos constrangimentos em torno desta “viagem”. Se há pontos de interrogações, debates ou mesmo disputas nos campos médicos e psi em torno das origens, do diagnóstico e dos “tratamentos” não é nada dificil imaginar como muitos destes pais ficam à deriva, batendo de porta em porta em busca de respostas  e direções. Em uma tentativa de discutir as implicações desse diagnóstico para a vida de uma criança e de seus pais, Vianna toma um atalho bastante pessoal ao percorrer seus impactos morais, pedagógicos e emocionais e, embora dedique algum espaço ao ressentimento diante do preconceito, celebra o auxilio dos recentes relatos de autistas na web e/ou produções literárias e cinematográficas de biografias sobre o tema. Ainda em uma jornada muito pessoal, critica e contrapõe as metodologias terapeuticas segundo uma abordagem cognitivo- comportamental ou psicanalitica e aponta as controversias em relação às recentes pesquisas na área médica que sinalizam fatores neurologicos ou genéticos. Como cada campo acena com suas “verdades” sobre o tema geralmente cabe aos pais (nem sempre com um consenso entre os conjuges) escolher (acreditar, apostar) em algum destes caminhos. A propria definição de autismo pode variar segundo a época e os grupos que se ocupam de pesquisa-lo e/ou oferecer tratamentos. Na linguagem acadêmica atual o autismo – que atinge quase 1% da população global - tem sido tratado como uma disfunção global do desenvolvimento que altera e afeta a capacidade de comunicação, de socialização (estabelecer relacionamentos) e de comportamento (responder apropriadamente ao ambiente). E para acomodar os diversos modos de manifestação e a gama de possibilidades dos sintomas mais recentemente cunhou-se o termo Transtorno do Espectro Autista. A psicanálise esteve desde sempre associada aos caminhos e descaminhos deste transtorno e muitos psicanalistas se dedicaram ao que lhes parecia ser um campo fertil de pesquisa sobre os primórdios da constituição do psiquismo humano, compondo relatos e teorias importantes através de suas clínicas. Mas, afora os quadros fenomenológicos descritivos, é provavel que o fato de não existir uma teoria consensual sobre o autismo pese sobre a respeitabilidade social das práticas, assim como pela manutenção do preconceito. Também é provavel que algumas das teorias no campo da psicanalise tenham contribuido para que certas representações culturais sobre o autismo fossem relacionadas à ideia de deficit, de impossibilidade, de um mundo psíquico desvitalizado ou de pais que não ofereciam as condições necessárias para um desenvolvimento “adequado”. Se, no entanto for possivel – como já acontece em alguns lugares - não engessar a “condição” autista com teorias fechadas e rígidas e tornar seu campo mais aberto a atendimentos feitos por equipes multidisciplinares, é provavel que não seja mais o adjetivo “vergonha” (destacado pelo reporter)  que abaterá  aos pais que descobrem ter um filho com este diagnóstico. Para a psicanálise em especial, toda e qualquer criança cumpre uma trajetória singular de desenvolvimento e constituição, ainda que nasça com alguma alteração genética.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Quem é a criança do século XXI?


Uma  manchete da Folha on line do dia 12 de março de 2013 chamava a atenção para as dificuldades de se colocar limites para as crianças. Um dos destaques do texto do caderno Equilíbrio era a pesquisa da mestre em educação e autora de "Limites Sem Trauma”, Tania Zagury para quem as famílias estariam sob o governo de uma tirania infantil. Baseada em um estudo com 160 famílias no início dos anos 90, ela afirmava que os pais dos anos 80 ao desejarem uma educação menos cerceadora para seus filhos, teriam perdido a medida. O título da matéria ainda sugeria um debate com especialistas sobre os motivos pelos quais seria tão difícil aos pais nos dias atuais, encontrarem a tal medida equilibrada para conter as birras ou as transgressões nos horários de alimentação, sono e estudos. Em geral diante de situações difíceis  tentamos fazer comparações entre épocas passadas e atuais, discorrendo sobre as desvantagens e vantagens de uma e outra. É claro que cada época traz uma nova leitura da realidade, novos parâmetros e valores. E há também novas leituras sobre os descaminhos humanos. Não há como negar que vivemos na época atual, uma crise geral de autoridade, em todos os níveis da sociedade. Mas as “crises” não significam fim e sim um remanejamento temporário de certas “verdades” instituídas. O problema é que em períodos de crise ficamos desamparados, quase sem referencias sobre certas ações, comportamentos e ideias antes tão claras. Não é fácil esvaziar estereótipos e dar lugar a novas maneiras de estar no mundo. Uma  “verdade” de nossa época é que jamais a infância foi tão valorizada, destacada, estudada, cuidada, etc. Não por acaso. Se há um bocado de razões, podemos sublinhar o fato de que a infância é mais do que em qualquer época de nossas vidas, aquela que parece ser definitiva dos rumos que cada um tomará. Assim, uma boa infância ou uma infância feliz seria uma espécie de garantia de um adulto satisfeito consigo próprio, com pique e ferramentas para enfrentar os percalços da vida. Quase todos os pais de hoje só se sentem realizados quando sua prole cresce e se transforma em adultos “felizes”. Mas certamente esta não é uma tarefa simples e muito menos fácil e é comum nos depararmos com o desamparo do adulto diante das exigências ou dos conflitos dos filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”. São pais que ora se sentem exasperados, ora  culpados ou  impotentes, e muitas vezes incapazes de educar sua criança. Na melhor das hipóteses, a não imposição de limites e o “medo” de desaprovação de sua função de pai ou de mãe faz com que muitos desistam de exercer sua responsabilidade e autoridade. Digo no melhor das hipóteses porque não se podem deixar de fora aqueles pais que abusam, rivalizam, violentam, ou seja, desrespeitam os direitos de suas crianças que por seu lado não têm como se defender da displicência, da irresponsabilidade nem dos excessos de amor e ira de seus pais. Difícil mesmo. Talvez a mais importante e mais complexa tarefa de nossos tempos: “criar” um novo ser humano.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Você tem um sonho?



Em uma entrevista concedida a Marilia Gabriela o diretor do filme “Colegas” que está estreando em circuito nacional confessa que a ideia de criar um roteiro protagonizado por atores com Síndrome de Down era um sonho antigo, uma homenagem amorosa ao tio materno, portador da mesma síndrome, de quem ele tinha lembranças intensas, de alguém generoso e muito divertido. Mais, seu filme deveria recriar o clima de aventura que ele guardava dos momentos em que brincavam juntos. Entre a ideia, o projeto (com tudo o que isso significa em termos de roteiro, seleção de atores, captação de recursos, etc.) e a consolidação do sonho, com direito ao premio de melhor filme no festival de Gramado de 2012, passaram-se sete anos. Na entrevista, realizada com o diretor e os três atores, Marcelo Galvão conta que sua intenção sempre fora tentar passar para o público os mesmos sentimentos que guardava em relação a sua convivência com o tio, ou seja, de como o laço amoroso que os unia ignorava as diferenças entre eles. Embora a Síndrome de Down - um distúrbio genético caracterizado pela presença do cromossomo 21 adicional em todas as células do organismo - seja bastante conhecida por suas características físicas específicas e pelo desenvolvimento geral mais lento de seus portadores, o comportamento e a personalidade de cada um ficam muito mais submetidos às influencias do meio familiar e cultural a que pertencem. Isso fica claro na entrevista dos três protagonistas que a despeito de partilharem algumas dificuldades, vão narrando suas historias de vida, com suas conquistas e dores, como as nossas. Ou seja, mostram que podem ser pessoas ricas ou pobres, cultas ou sem instrução, felizes ou infelizes. Se por um lado o filme pode circular exibindo apenas o rótulo de uma comédia romântica bem ao estilo “queremos, logo podemos” tendo como fundo a força dos sonhos de cada um, certamente os prêmios, o marketing e o espaço que a mídia está oferecendo a ele poderão funcionar como uma chamada ao polêmico tema da inclusão de pessoas com deficiência em diversos âmbitos da sociedade. Lembremos que essa é uma ideia nova, que tem apenas algumas décadas, e por isso mesmo está longe de amparar todos os que precisam desta “inclusão”. Destes, destacamos os pais, para os quais os desafios desta jornada são vividos com muito desamparo, inúmeras  incertezas, sentimentos confusos e contraditórios. O que fazer? Como oferecer a seus bebes um futuro promissor? O que é melhor, lutar para que sejam aceitos em escolas regulares e enfrentem as discriminações ou isola-los em classes ou instituições com seus pares? E quando alcançarem a adolescência? E se quiserem se casar?  Qualquer um que se puser no lugar destes que perguntam  poderá imaginar a dor que enfrentam e as diferenças com as quais cada família tentará contornar a perda do “bebê perfeito” e enfrentar a nova e inesperada realidade, que no mínimo lhes exigirá  muitas mudanças. Por isso, talvez o maior valor da ideia deste filme seja a sensível experiência de seu diretor, que graças a convivência amorosa com seu tio, soube ser possível transformar um pré-conceito muitas vezes tácito e silencioso, por isso mesmo mais danoso do que podemos perceber.