segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Apocalipse já


As vésperas do final do mundo anunciado pelo calendário Maia, duas noticias diferentes podiam ser apreciadas na mesma página de uma mídia digital. De um lado, uma charge em que algumas pessoas do lado ocidental assistem e comentam as imagens ao vivo exibidas por uma TV sobre o final do mundo na Austrália e no Japão (que sempre acontece antes), de outro uma foto em que algumas pessoas sentadas em círculo aguardam a passagem do dia 21 de dezembro, data mística em que eles acreditam encerrar um circulo. Ou seja, embora a grande maioria da população mundial faça piada ou descarte o valor desta profecia, há sempre uma parcela que encampa a ideia de um apocalipse, um final dos tempos, uma passagem importante. Apesar do prognóstico moderno de um esvaecimento da religião, mantém-se a crença na existência de uma força superior, de forças sobrenaturais ou de sinais que confirmam um lugar para o “divino”. Por quê? Estaria a religiosidade a serviço de tornar tolerável o intolerável da condição humana? Ou de dar um sentido especial, menos “cru” para as nossas vidas? Não parece haver consenso neste quesito, ao contrário, o assunto é sempre polêmico mesmo entre os que pertencem à categoria dos “crentes” ou seguidores de algum conjunto de dogmas ou práticas. Não é difícil aceitar  que a ideia de “Deus” seja hoje bastante flexível, variando conforme as tradições de cada cultura, ou de cada sociedade. Se não há mais uma Grande Religião, que forneça um (quase) único conjunto de valores ou que regule de forma absoluta o permitido e o proibido mantemos no mundo atual um espaço de “religiosidade” ou de espiritualidade que, para alguns, pode prover um sentido para as suas vidas, para outros fornecer códigos que os ampare e permita um guia sobre temas complexos da vida humana como a sexualidade, o casamento, a morte, o mal e o bem, a pobreza, a miséria, etc. Há pouco tempo assisti a um filme que esteve em cartaz no Brasil, um projeto coletivo, chamado “Sete dias em Havana”, que se dividia em episódios para cada dia da semana cada um filmado por um diretor diferente. Em comum, apenas a visão de cada um deles para Havana, a capital da mítica ilha de Cuba. Mas porque fazer um filme sobre a Cuba atual, alquebrada, com problemas sócio-políticos e financeiros que mantém um líder acamado, que segue propagando a seu povo um ideal revolucionário empoeirado? Uma pergunta que se assemelha e muito a muitas que foram feitas por  todos que se surpreenderam com o barulho em torno da profecia dos maias. Com origens e sensibilidades diferentes nenhum dos diretores construiu alguma tese histórica ou politica sobre Cuba, mas prestou sua homenagem ao pequeno país, destacando temas de seu cotidiano e aspectos de seu povo e sua cultura. Estavam lá o  sonho de escapar para uma vida menos dura no exterior, os "jeitinhos", a boa música, a beleza e a sensualidade, o sincretismo religioso, a tristeza dos que convivem com o exilio de seus queridos, o “mito” encarnado mas já desgastado de Fidel. Parece que estamos fadados a criar espaços em que depositamos crenças importantes para cada época. E hoje também podemos conhecer um pouco mais sobre as crenças de cada um ou mesmo sobre a falta delas.

Afia-se olhares


O que o tráfico e a exploração sexual de mulheres no exterior, a morte da enfermeira que atendeu a princesa britânica Kate, o julgamento do Mensalão ou o documentários sobre bullying podem ter em comum, além de serem pautas de notícias recentes e despertarem polêmicas ou debates acirrados? Vejamos. Tema da nova novela da Globo, o tráfico e exploração sexual de mulheres no exterior volta ao centro da controvérsia entre os que defendem os direitos humanos e os que militam pelos direitos das prostitutas. Uma leitura cuidadosa dos argumentos de ambas as partes apenas revela suas complexas tramas. Ponto para a novela que provoca tais discussões trazendo à tona um debate de questões delicadas, que habitam as fronteiras do preconceito e dos tabus além de ser um tema sob o foco das políticas restritivas de imigração de países europeus. Dois apresentadores de um programa de rádio australiano telefonaram para o hospital em que a princesa Kate Middleton havia se internado e, com gravação ao vivo e imitando a voz da rainha, pediram para uma enfermeira que lhe dessem informações sobre o estado de saúde da duquesa. Vítima da “pegadinha” , que rapidamente se espalhou pela mídia, a enfermeira teria cometido suicídio dias depois. Afinal como podemos definir o humor, sua função no mundo atual e seus limites? Se para provocar risos o humor necessita buscar a contradição, a transgressão, o deslocamento de algo, sempre de forma inesperada, também é verdade que ele pode ser violento quando, por meio do risível, humilha, faz cruéis caricaturas ou envergonha radicalmente suas “vítimas”. Ou seja, um setor que também vive em fronteiras delicadas. Ainda em andamento, o julgamento do Mensalão continua a forjar dissidências e discursos inflamados, mas são poucas as vozes que apontam para o fato, inédito em nosso país, da decisão do Supremo Tribunal Federal de punir políticos que ocupam posições de poder estabelecidas. Nem governos de direita, nem de esquerda deveriam se considerar acima da lei e o Estado não poderia estar a serviço do sistema politico ou de grupos específicos; precisaria antes, ser um bem público que pertencesse aos cidadãos. Mas que espécie de “cidadãos” somos nós, brasileiros? Estaríamos dispostos, cada um, a reconhecer a universalidade das normas quando aplicadas a nós mesmos ou não abrimos mão das benesses do poder e dos favoritismos?  Bullying, o inquietante documentário do diretor norte-americano Lee Hirsch, escolhe cinco casos emblemáticos, em quatro Estados americanos, acompanhando-os ao longo de um ano, não só para investigar com mais acuidade a violência física e psicológica entre alunos, mas ampliar o debate sobre um tema que envolve pais, alunos, educadores e policiais. Segundo estatísticas, em 2011 treze milhões de crianças americanas teriam sofrido algum tipo de bullying, nas escolas, nos ônibus, em casa, ou através de celulares e internet. Claro que em maior ou menor grau, todos nós, em algum momento de nossas vidas, mas principalmente na infância ou adolescência, somos vítimas ou sofremos gozações e/ou constrangimentos por ações de grupos ou pessoas. Até mesmo um bullying silencioso, tramado por intrigas, difamações, em que se espalham comentários boca a boca, via internet ou redes sociais. Mas o que o documentário expõe é quando esta prática ultrapassa a fronteira do permitido, viola radicalmente as leis do convívio humano e instala a lei da selva. Ou seja, em cada uma das notícias aqui veiculadas esbarramos nas difíceis e permanentes fronteiras de todo processo civilizatório, quando fica a cada um e seus descendentes a tarefa de desenvolver uma sensibilidade ética. Uma tarefa para lá de delicada, que exige daquele que cuida ao menos um reconhecimento da existência do outro. Pano para muita manga e muita discussão.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Novos guias para velhas questões


No final da década de setenta, finda a minha graduação de Psicologia em Ribeirão, parti para São Paulo em busca de especializações na área de clínica. Vinha com meu fusca e nenhum casaco de lã na mala. Soluções para as temporadas de frio foram fáceis, mas dirigir em São Paulo se mostrava enlouquecedor. A lógica era outra, as ruas quase nunca seguiam uma reta, ou mantinham-se paralelas umas às outras, as avenidas não tinham retorno à vista e as distâncias para se chegar a algum lugar ficavam infinitas. Costumava colocar no colo um calhamaço de páginas que eu comprara chamado Guia de Ruas de São Paulo, mas ainda assim era difícil entender as rotas e alcançar os destinos de chegada, e o alívio era indescritível se isso acontecesse. Quando meu filho fez 18 anos e tirou sua carteira de motorista, a cada vez que ele precisava ir a algum lugar novo, construíamos um mapa caseiro com algumas indicações importantes para evitar que ele se perdesse em algum dos “logradouros” sem saída. Afim de que ele pudesse se situar na disposição dos bairros e ter minimamente uma direção de ida e volta, compramos um mapa da cidade que ficava aberto e pendurado como quadro em seu quarto, com algumas marcas dos lugares mais comuns pelos quais ele transitava. A ideia era que aos poucos ele pudesse se familiarizar com a paisagem urbana um tanto quanto “caótica” e se sentisse mais seguro para arriscar novos caminhos. Estas lembranças me vieram à tona ao ler, na Ilustríssima do último domingo, o depoimento do escritor gaúcho André Czarnobai que, desafiado a passar uma semana sem entrar ou usar a internet, narrou dia após dia os pormenores de sua abstinência. Pensei em como os usuários do Google sentem-se a “salvo” não só por suas dúvidas e inquietações, mas por seus desejos, já que há ali uma oferta rápida e eficiente de informações que antes precisavam ser checadas em instituições, dicionários, pais, autoridades, mapas, professores, médicos, advogados, etc. Ainda que uma grande parte de gerações anteriores não aderiu ao mundo digital e pouco se utiliza da internet, as “redes” que foram possíveis serem construídas, o acesso à comunicação com amigos ou às informações diversificadíssimas vão aos poucos constituindo um Grande Lugar de Amparo, inédito e surpreendente. Se é verdade como preconizam muitos, que a nossa era se caracteriza pela falência quase total de antigas referências que nos guiavam em nossos modos de viver o presente e projetar nossos futuros, parece que as novas gerações se encarregaram de buscar novas formas que deem conta deste desamparo. Vejamos. Caso alguém queira organizar suas finanças, mas não tenha ideia de regras ou funcionamento do mercado, fazer uma maquiagem, mas não confia muito na sua escolha de produtos ou de cores, preparar um jantar para amigos queridos com um cardápio inesquecível, conferir a grafia daquela palavra que há tempos não utiliza ou fazer consultas sobre o melhor custo benefício de qualquer produto que necessite, pode dispor de todas essas informações no clicar de teclas nas pontas de seus dedos. É pouco? É possível também agendar e pagar as contas, ler em qualquer tempo sobre algum tema que lhe seja caro, assistir a um programa de TV, um filme, um show, ouvir aquela música que tantas recordações lhe traz, buscar imagens/guias de cidades, países, obras de artistas significativos ou ainda conferir/reclamar sobre qualquer produto comprado. Enfim, não há fim para o sem- número de opções que se pode encontrar armazenados à disposição dos usuários da internet. A ideia atrás da proposta feita ao escritor gaúcho era definir se sua relação com a internet estaria já no campo do vício, tal e qual uma droga. Mas a “falta” da internet nos sete dias propostos permitiu a ele perceber que sua vida ficava sem este grande recurso facilitador. Seria possível viver sem ela? Claro que sim, mas não valia a pena. Faz muito tempo que meu filho não precisa mais dos mapinhas caseiros. E se isso confirma o lugar de conforto que a Internet oferece aos jovens é importante lembrar que em qualquer tempo ou lugar as novas invenções produzidas (por nós mesmos) para ampliar o número de ferramentas que facilitem ou promovam maior satisfação a nós ou às nossas vidas, jamais nos livrarão da responsabilidade que cada um deve ter sobre seu uso.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Quem quer ser milionário?


Há poucos dias assisti um debate informal (mas inflamado) deflagrado a partir de um tema polêmico surgido em uma roda de amigos. A aprovação pelo Legislativo, em agosto último, de cotas de 50% nas universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas, sendo priorizados estudantes negros, indígenas e/ou de baixa renda, provocava indignação em grande parte dos presentes, às vésperas dos exames vestibulares de filhos e netos. Embora eu tenda a simpatizar com iniciativas que busquem promover inclusão social, resolvi apurar os argumentos prós e contras que ali travavam uma disputa. Havia paixão, muita paixão nas defesas dos pontos de vista e era isso que mais chamava a atenção. Afinal, as cotas para estudantes de baixa renda, negros e índios para além de escancarar as enormes disparidades do nosso Brasil desigual, pareciam não demonstrar tantas diferenças de desempenho dos “cotistas” em relação aos outros estudantes, segundo algumas Universidades que já a implantaram. O que parecia prevalecer ali, em um dos polos, era uma grande resistência para pensar novas soluções para velhos problemas principalmente quando estas ameaçavam a destituição de um conforto aparentemente “adquirido”. De certa maneira há no Brasil um consenso (para o que têm e os que não têm) em torno de certas garantias de “bem estar” social para a elite. Do lado oposto, alguém se  lembrou que o escritor afro americano Teju Cole, um dos convidados da última FLIP, a feira de literatura internacional, estranhou não cruzar com visitantes negros em Paraty. Pus-me a pensar que em meu bairro (SP) não há negros fazendo compras nos supermercados, lojas, dirigindo carros nas ruas, comendo ou bebendo nos bares e restaurantes. Detalhe, eles compõem um pouco mais da metade de nossa população. Outros frisaram como alguns países europeus, que adotaram políticas de inclusão generalista para deficientes (incluindo idosos que utilizam cadeiras de rodas ou andadores) promoveram o aumento desta população na ocupação de espaços públicos, o que poderia surpreender a todos os brasileiros, caso isso começasse a acontecer por aqui. Não estamos acostumados a ver deficientes nas ruas porque não temos políticas que promovam seu acesso aos lugares ou transportes públicos. Estes defendiam que a lei das cotas poderia servir para facilitar o acesso das classes menos favorecidas ao ensino superior. Ponto. A questão é que este tipo de discussão não se esgota em um plebiscito que pede o sim ou o não. Ela é para lá de complexa. Se por um lado nos ufanamos de nossa diversidade étnica, resultado de uma confluência de origens diferentes- indígenas,  portugueses, escravos negros africanos, das ondas imigratórias de europeus, árabes e japoneses e mais recentemente asiáticos e sul-americanos - e muitas vezes somos lembrados por promover uma integração e uma miscigenação racial, tanto os negros quanto os indígenas brasileiros sempre ocuparam posições menos prestigiadas em nossa sociedade. Acostumamos a viver aceitando que sobre o grupo "negro", por exemplo, recaiam todos os tipos de estereótipos negativos. Há também certo “sossego” em relação a uma marca brasileira, o clientelismo, em que as relações pessoais ficam acima do poder público, a lei tende a ser aplicada apenas para os menos favorecidos, enquanto uma minoria privilegiada consegue burla-las. Minoria esta que é sempre branca, sendo o “branco” não apenas uma cor, mas uma qualidade social: aquele que sabe ler, que é mais educado e que ocupa uma posição social mais elevada. E se recentemente  começa a existir um movimento de contestação destes valores, seja por meio de políticas oficiais mas sobretudo via cultura ( literatura, cinema, música, redes sociais), as desigualdades e sua “violência” no dia-a-dia continuam ignoradas. O preconceito é velado talvez porque de foro íntimo, e se reflete nas escolhas que fazemos ou nas relações que estabelecemos. Mais que isso, tendemos a colocar esta discussão como se fosse algo que não nos implica, ou seja, se há uma agencia promovendo leis, cabe-nos ser contra ou a favor, sem que seja necessário refletirmos sobre o sofrimento que esta exclusão produz. Sofrimento (no geral) do qual ninguém escapa, e diante do qual todos gostaríamos de ser acolhidos.