A Editora Companhia das Letras divulgou esta semana
que está para ser lançado no Brasil o livro do escritor americano George Saunders, com o qual ele acaba de arrematar a primeira edição do
prêmio Folio, que pretende abarcar toda a ficção de língua inglesa,
independente do gênero literário ou do país de origem do autor. O Folio, que
provavelmente ambiciona se equiparar (ou quiçá suplantar) o prestígio do Man Booker Prize, ao premiar um livro de
contos de um americano, já marcou sua diferença. “Dez de dezembro” reúne dez
contos que, segundo divulgação da editora brasileira, abordam os dramas e as
delícias da classe média urbana, a relação entre pais e filhos, as pequenas imposturas
que cometemos quando queremos agradar um desconhecido, ou seja, questões do
nosso tempo, que nos obrigam a refletir sobre nós mesmos, nossas vidas, nossos
sonhos, nossas picuinhas. Professor de Escrita Criativa na Universidade de Syracuse
no Estado de Nova York, ao ser convidado a fazer o discurso para os formandos
de 2013, Saunders não apenas confirmou seu maior tema- o ser humano e suas
tentativas de viver uma vida digna mesmo sob pressão ordinária e
extraordinária- como se utilizou de uma historia pessoal para tornar sua
narrativa mais próxima de alguma verdade. Lembrou aos jovens que o escutavam,
que havia se tornado comum que alguém com idade mais avançada (no caso, ele),
que já tivesse percorrido um bom pedaço de sua vida, preparasse algum discurso
sobre o “melhor” período da vida, o que consensualmente deveria ser aquele em
que eles estavam prestes a viver. Por sua vez, ele havia escolhido recordar, –
ou quem sabe tivesse sido impelido a isso- certas vivências passadas que lhe traziam
desconforto. Não, não eram as que ele havia sentido medo ou as que lhe
lembravam de algumas faltas e frustrações por desejos não realizados ou
vergonha. Era principalmente aquelas em que ele havia deixado passar
“despercebido” de si mesmo, um sentimento de compaixão por alguém que ele
assistira em apuros emocionais. Por um pequeno espaço de tempo, quando ele era
pequeno e estava na escola, uma menina nova se mudou para o bairro e começou a
frequentar a mesma sala de aula. Ela era bastante tímida, mirrada e usava uns
óculos de mulheres mais velhas, o que lhe dava uma aparência bizarra. Aflita,
mastigava o tempo todo um pedaço de seu próprio cabelo, o que lhe rendia toda
sorte de gozações de seus colegas. A menina e sua família acabaram se mudando deixando
Saunders com uma sensação de “vazio”. Ela havia ido embora sem saber que ele
não compactuava com aqueles meninos que a humilhavam. Ele não tinha tido
coragem de ser gentil com ela, ao oferecer-lhe sua amizade como contraponto ao
clima de violência que ela era obrigada a viver diariamente na escola. George
Saunders tem 58 anos. Escolheu falar sobre a importância da gentileza para uma
turma de formandos provavelmente porque como escritor contemporâneo, sente-se
mais comprometido, e ao mesmo tempo mais livre para divulgar sua visão de mundo,
sua paisagem íntima do social. Para alguns pode parecer piegas, para outros,
coragem.
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segunda-feira, 2 de junho de 2014
quarta-feira, 7 de maio de 2014
Ajuste de contas
A morte de Gabriel Garcia
Marques, quinta feira, dia 17 de abril, me fez recordar uma parte de minha
história, ao relembrar o impacto que a leitura de “Cem anos de solidão” produziu
no meu pequeno percurso de leitora. Quando o li, já fazia alguns anos que ele
surgira no universo literário, fazendo barulho. Afinal, narrar a história
latino-americana com suas guerras e solidão a partir da árvore genealógica da
família Buendía e suas gerações,recorrendo
à fantasia para revelar a realidade, tudo isso sem perder o fio da meada, não é
tarefa para qualquer um. E se hoje esta saga é considerada uma das obras mais
importante da língua espanhola de todos os tempos (depois de Dom Quixote), a
lembrança de minha leitura não contempla tal grandeza. Jovem, ainda, fiquei
capturada pelo realismo mágico com que os personagens eram descritos, com a
liberdade um tanto crua com que suas histórias de amores e dores podiam ser
vividas e a maneira surpreendente com que suas experiências cotidianas eram
transformadas em algo fantástico, mágico, mas ainda assim verossímil. Ainda não tenho muito claro o papel que a
literatura teve na minha visão de mundo. Mas tenho a impressão, quase como se
fosse uma certeza, de que ela abriu horizontes e despertou-me para universos
desconhecidos e inimagináveis. Há quem reconhece seus desejos desde muito cedo
e nao só os nomeia, como os persegue. Nunca pertenci a este grupo, mas se há um
pensamento que permeou minha vida desde bem jovenzinha, é o de que o “mundo” (aquele
composto pelo acervo cultural humano) deveria ser muito maior do que aquele que
eu conhecia ou vislumbrava na cidade interiorana em que eu vivia. E eu
precisava conhecer o máximo que eu pudesse sobre ele, o que com gratidão posso
atribuir uma boa parte às minhas poucas leituras de grandes autores da
literatura. Gabriel Garcia Marques nasceu em uma cidadezinha da Colombia, tendo
vivido uma parte de sua infância sob os cuidados de seus avós, com quem ouviu
muitas das histórias fantásticas que depois utilizaria em seu universo
literário. Em um dos muitos textos que foram escritos após a notícia de sua
morte, um em especial, de seu conterrâneo, amigo e escritor Hugo Abad, narra
sua última visita feita em 2010 a Gabo- como era chamado pelos íntimos- segundo
ele já desmemoriado, mas ainda poético. Foi ali, na cidade de Cartagena, que
ele ouviu Mercedes, esposa de Gabo, contar que quando ali chegaram, a ideia era
comprar uma casa antiga no centro histórico para morarem. Mas Gabo nunca se
decidira sobre isso, com medo dos fantasmas. Fiquei a imaginar o escritor
Gabriel Garcia Marques, que já se despedira do mundo intelectual desde 2006
quando resolvera não mais escrever, a habitar a pátria que todos temos em
comum: nossa infância. Obrigada Gabo!
domingo, 5 de janeiro de 2014
Contabilidade
Não há época em que a cidade de São Paulo fique mais
silenciosa e vazia do que nos últimos dias do ano e nos primeiros do ano
seguinte. Já antecipando o êxodo geral, muitos estabelecimentos fecham,
aumentando ainda mais a sensação de se estar em uma “outra” cidade. Paradoxalmente
instala-se um frenesi geral para
organizar qualquer viagem que prometa a “continuidade” daquela aceleração, como
se quase ninguém pudesse ou quisesse escutar aquele silêncio. De outro lado, o tão
almejado destino da orla marítima exige
que cada um se revista de 100% de tolerância na disputa dos espaços públicos,
fato que nem sempre é computado mas muito comentado. Lembro-me que diante do
inevitável correr do calendário, anunciando sua entrada triunfal no dezembro
dos 2013, tive que puxar o freio e repensar minha agenda de compromissos. Olhei
para a pilha de livros de literatura que foram se acumulando ao lado de minha
escrivaninha, e que por teimosia eu ali deixava, como a me cobrar por não lhes
dar outra atenção senão a de namorá-los de vez em quando com vontade de lê-los.
Sem a avidez de outrora que teria me forçado a selecionar ao menos três, decidi
escolher apenas um, separando-o para o meu final de ano. Pude com isso passar
meu mês de dezembro desejando que ele chegasse ao fim para que enfim eu pudesse
ler o livro daquele angolano simpático que mora desde pequeno em Portugal e que
cá esteve em 2011 para participar da FLIP e fazer discursos amorosos para o
nosso país. Valter Hugo Mãe, 41 anos, surpreende não só pelo nome diferente,
mas pela agudez e sensibilidade com que fala sobre nós, seres humanos que
somos. “a máquina de fazer espanhóis”, escrito assim em minúscula como todo o
livro, é a aventura de um tal antónio silva, um senhor de 84 anos que ingressa
num lar de idosos após a morte de sua esposa e desesperado por esta perda e
pelo novo destino se põe a nos relatar sobre o (seu) viver e o (seu querer e
não querer) morrer. Em entrevistas a várias mídias no brasil, valter hugo teve
que se explicar sobre as minúsculas e sua resposta me tocou. Com uma percepção
que impressiona sobre o sentido de nossa “passagem” pelo mundo, as letras
minúsculas estariam a serviço de um ponto de vista que nos iguala como seres,
nosso instinto de sobrevivência, que de certa maneira nos põe a andar para
frente. É assim, de forma simples, mas muito esclarecedora que este autor ainda
jovem consegue colocar em palavras o que cada um de nós sentimos, mas nem
sequer conseguimos pensa-lo. E, ao contrário de muitos escritores que escrevem
para “sobreviver”, vater hugo parece apreciar as pessoas comuns e ter grande
curiosidade pelas convicções populares, a maneira como contamos nossas
histórias, como inventamos, acrescentamos e nos alimentamos de verdades e
fantasias. Sem querer que o livro se acabe, percebo que não basta entendermos cada
vez mais como funcionamos e principalmente como sentimos medo, horror, ódio,
frustração, mas como podemos, apesar de tudo, sentir amor, compaixão e sermos
generosos para conosco e com os outros. Querer ser um pouco melhor pode ser um bom
motivo para celebrar o 2014. Um bom ano a todos e obrigada aos que me
acompanharam às quartas feiras de 2013.
Para conferir: “a máquina de fazer espanhóis” -
valter hugo mãe
2011/ Cosac Naify
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
Falar o que?
O filósofo francês Michel de Montaigne (1533-92) é geralmente evocado
por todos aqueles que escrevem ou que elegem a escrita como forma de entender o
mundo e as pessoas. Foi ele quem, em seu “Ensaios” inaugurou uma certa
informalidade na escolha dos temas a serem tratados, dedicando-se a analisar o
cotidiano das pessoas e incluindo-se ao descrever suas experiências e
referir-se às próprias dúvidas, prazeres e inquietações. Manteve-se como uma
referencia também por seu estilo charmoso, elegante, inteligente e bem
humorado, além de ter caracterizado sua análise por uma postura tolerante em relação às ações
e sentimentos humanos comezinhos. Um verdadeiro precursor dos blogueiros do
século XXI já que, ao contrário da época em que viveu, hoje ninguém se
surpreende com relatos feitos na primeira pessoa em que se acentuam as cores do
íntimo e do psicológico. Nestes 500 séculos que nos separam desta época, o
lugar do privado e do publico sofreu transformações interessantes. No auge da
consolidação da era moderna, em pleno século XVIII a divisão nítida entre estes
dois espaços era condição sine qua non. Na esfera pública, os indivíduos eram
cidadãos, submetidos a leis e normas impostas pelo Estado, enquanto na esfera
privada eram pessoas prontas a defender seus interesses individuais. A família,
o trabalho e os negócios eram espaços privados, e a política e o Estado,
públicos. A tensão permanente entre o público e o privado foi se intensificando
à medida que as sociedades se tornaram mais complexas. Dentre as múltiplas
variáveis, certamente a mídia e a literatura contribuíram para que o espaço
privado ampliasse seus tentáculos e invadisse o publico. Hoje quase todos os
que escrevem o fazem traduzindo a realidade segundo seus pontos de vista, mesmo
quando pretendem uma compilação de fatos passados, já que as narrativas
de muitos historiadores levam seus leitores ao seu “imaginado” passado. Também
nos parece natural ler um texto em que seu autor é um tradutor de si mesmo,
capaz de transformar seu universo intimo e subjetivo em um mundo que faça
sentido e gere interesse aos seus leitores. Um colunista, que como eu, tem como
tarefa, a cada semana, escolher – entre as inúmeras opções que nossa vida
contemporânea oferece- um tema que possa ser minimamente interessante, poderia
se sentir “esgotado”, enfastiado, perdido e outros tantos adjetivos aflitivos. Mas
se ele se mantém escrevendo ao longo dos anos, é provável que o exercício da
escrita lhe seja não só prazeroso, mas importante. Em geral, aqueles que
escrevem por prazer, são os que estão sempre conferindo/perscrutando a vida, o
mundo, as pessoas, os lugares, as tramas, os desassossegos, as alegrias, em um
interminável questionamento das razões de se viver. E é quase certo que os
temas elegidos lhe sejam caros, o que faz com que o texto adquira um tônus
vital e encarnado, que contenha algumas respostas para as suas infinitas
perguntas.
segunda-feira, 16 de julho de 2012
Por quais livros/autores dobram os sinos?
Ainda que alguns críticos/intelectuais (poucos,
ainda bem) torçam o nariz para a “festa” literária que acontece anualmente em
Paraty, seria muito proveitoso perguntar por que ela continua sendo um evento
disputado após 10 anos de existência. E nesta toada, analisar seu sucesso não
só pelo prisma do espetáculo ou mesmo do lugar que a literatura “ainda” ocupa
no mundo atual, mas também pelo surpreendente número de leitores brasileiros –
em um país quase sem tradição literária - que continuam a reverencia-la. E o
que buscam estes “leitores”? Não é fácil responder a esta questão quando se acompanha
os comentários espalhados pela mídia, tanto de “turistas” que ali comparecem ou
dos inúmeros jornalistas que cobrem o evento. Mas a própria diversidade dos
enfoques já anuncia a consagração deste que é um dos maiores e melhores acervos
de nossa história humana: as narrativas que cumprem essa função integradora do
corpo social ao acompanhar os desafios (internos e externos) de cada época. E,
se a iniciativa de se fazer uma feira/festa literária tem seus interesses
capitalistas, com editoras e autores sonhando em aumentar suas cifras, a
proposta de tornar acessível ao público (em geral) um pouco mais do produto dos
que dedicam parte de suas vidas a escrever sobre algo que interessa a muitas
pessoas do mundo todo, não deixa de ter um efeito midiático interessante. Ao
lado da tietagem que normalmente caracteriza algumas relações entre leitores e
autores, há o fato inusitado de se forçar um escritor a “falar” sobre seu
processo criativo, as escolhas de seus temas, a relação de suas narrativas com
sua própria vida, enfim, faze-lo refletir sobre o lugar que a escrita ocupa em
sua vida e como ele percebe/analisa o interesse de seus temas para o público. É
neste confronto que se percebe a variedade das análises - sempre particulares -
que acabam compondo um leque imenso de possibilidades de narrar nossa história
coletiva. Pode estar a serviço de uma ampliação do contato consigo próprio, da
preservação da memória ou o contrário, da tentativa de confundi-la; pode falar
da própria literatura, das cidades, das injustiças sociais; pode dizer o que
ainda não foi dito ou pode simplesmente guardar um anseio de ser lido/reconhecido
por muitos. Os verbos também podem deslizar para o entreter, perpetuar, transmitir,
refletir, e assim vai. E para isso vale falar sobre as entranhas humanas , seja
para apaziguar ou impulsionar seus fantasmas. Sobre os fracassos, a solidão, o
desamparo, os amores, os lugares e as pessoas que lhe são importantes; sobre os
aspectos políticos e sociais do mundo, a violência, as injustiças ou a vida banal
nas cidades. Como vimos não há limites. A leitura de uma boa obra pode ser uma
experiência transformadora para alguns leitores, mas é basicamente uma experiência “humana” em que cada um se
reconhece e dialoga com seu semelhante independente das diferenças étnicas
culturais ou das distancias geográficas entre quem escreve e quem lê. Se uma
análise crítica deve tentar compreender mais do que
conjecturar ou agourar, podemos deixar registrado com certa satisfação que a Flip tem
propiciado um bom e inusitado debate de ideias entre escritores de diferentes
culturas e idades além de dar visibilidade para a literatura. E se ela, a literatura,
estrela máxima do evento, consegue se manter sendo a memória cultural de uma
era, se em última instancia é isso que se constrói e conserva quando se
escreve, é bem capaz que os livros continuem a ser escritos e lidos. Oxalá.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Arte e deuses
Em conversas ao pé da porta com uma querida amiga, ela me contava como às vezes se entristecia ao perceber que suas lembranças de infância lhe surgiam fragmentadas. E se durante muito tempo seguiu culpando sua fraca memória, este argumento já não cabia. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, teria evitado trazer à tona passagens muito tristes ou impactantes de sua vida. Havia lido em algum lugar o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, também se debatia com os entrecortes de sua memória infantil. E tal dificuldade lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, cartas, cadernos ou diários, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças. Só depois de muitas entrevistas em que foi questionado sobre os caminhos de sua inspiração, teria passado a tentar entender o motor que movia sua necessidade de escrever. Era-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade, escrever, que agora poderia ser sua melhor ferramenta, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. Quando de tempos em tempos se permitia (ou podia) voltar a ler seus textos, por vezes conseguia traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. O relato de tal escritor teria sido muito inspirador para ela, que não sendo uma escritora e sim artista plástica, via sua arte vagando em um espaço sem sentidos definidos. Como ele havia confessado, ela também criava suas peças aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-las em seguida como a poderem ser guardadas em algum “arquivo” imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se durante um bom tempo esta simples tarefa lhe trouxe conforto, neste momento as dúvidas lhe assaltavam e o que parecia ordenado passou a lhe perturbar. Precisava achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse um sentido para ela. E isso a levava a outra premissa, a de que ao construir a história de sua arte pudesse entender a sua própria. Mas...e se sua arte fosse uma espécie de imposição dos “vãos” de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na “linha do tempo”? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma? Sua aflição me parecia genuína. Como ajudá-la? O que dizer? Fui socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolhiam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas ( pré) visões.
terça-feira, 7 de julho de 2009
Flipando
Os leitores que, como eu, apreciam uma boa leitura, provavelmente estiveram antenados com a realização da ultima FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, que desde 2003 acontece na primeira semana de julho e já é conhecida ( e reconhecida) pela qualidade dos autores convidados, pelo irresistível entusiasmo de seu público e pela descontraída hospitalidade da charmosa cidade. Evento mais que moderno, há muito pouco tempo nem imaginaríamos estar face a face com autores de livros que apreciamos, ouvindo-os falar sobre seus processos de criação, sobre suas vidas íntimas, suas hesitações ou esperanças. Como em todos os espetáculos, em meio aos burburinhos suscitados pelos “eleitos” e mais assediados, aqui e ali é sempre possível extrair falas de alguns escritores que se encaixam a certos anseios de seus leitores. Foi neste clima que “bebi” as palavras do escritor francês Grégoire Bouillier , em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, dias antes de sua chegada ao Brasil, quando afirmou ser o desafio maior da literatura, aquele de tornar compreensível ao próprio autor e aos seus leitores, o que se sofre e se experimenta pessoalmente, já que a vida nos desafia permanentemente a contá-la, e devemos aproveitar nossas dúvidas e questões para virá-las lentamente em direção à luz. Para ele, os livros mais reverenciados seriam os que falam ao ponto mais íntimo de nós mesmos, constroem nosso imaginário e inserem palavras, histórias ou situações que não poderíamos formular sozinhos. Quando alguns livros continuam a viver em nós e a nos influenciar sem que o saibamos, é porque eles nos fizeram diferença e é possível verificar em algum momento de nossas vidas, suas marcas e influências. Lembrei-me imediatamente do livro que classifico como o divisor de águas de minha vida, quando aos 19 ou 20 anos li “O jogo da amarelinha” do escritor argentino Julio Cortázar. Embora já houvesse “conhecido” Garcia Marquez, Jorge Amado e outras obras contemporâneas que desconstruíam a lógica amena dos romances de então, este livro perturbava em todos os sentidos. Com uma narrativa incomum, cujo objetivo não era o desfecho de uma trama, este anti-romance invertia a ordem convencional ao privilegiar a subjetividade dos personagens sem colocá-los em uma história de começo, meio e fim. A proposta desconcertante do autor, de que cada leitor pudesse escolher ler a obra seguindo um ordenamento linear dos capítulos ( do 01 ao 56) ou saltando segundo suas instruções ao final de cada capítulo ( começando pelo capitulo 72),já indicava sua ousadia formal. Melhor ainda era mergulhar na alma de seus personagens, que como ele, eram em sua maioria, imigrantes latinos vivendo na Paris dos anos 50 e 60, palco de questionamentos políticos e sociais, mas principalmente de encenações do que viria a se constituir uma verdadeira revolução cultural. Os diálogos, as manias, os livros, as músicas e as idéias e a ânsia de viver dos personagens já anunciavam este nosso novo mundo. Maior impacto ainda era o fato destes personagens não se levarem tão a sério, utilizando-se de uma via irônica para se referir aos seus dramas cotidianos, que revelava uma coragem em se apresentar por suas falhas, feridas e perdas. Lido no início dos anos setenta, o livro me causou um alvoroço interno, ainda que não houvessem palavras para definir meus sentimentos. Provavelmente são estas obras que chamamos de vanguarda, e que em diferentes tempos e lugares se tornam o arauto de mudanças importantes, ao apontar caminhos inesperados.
coluna do dia 7 de julho de 2009
coluna do dia 7 de julho de 2009
sábado, 4 de julho de 2009
Como 2 e 2 são 5
Há um consenso em torno do fato da literatura moderna ter sido um dos fatores que auxiliou o homem a aprender a falar de si. Desde que a leitura de livros tornou-se prática comum, é de praxe seguirmos indicando ou buscando indícios de narrativas que falem sobre o nosso mundinho e que contem estórias de personagens como nós, banais, às voltas com nossos desassossegos, angústias e dilemas, principalmente amorosos. Na semana passada noticiou-se o lançamento de mais um livro escrito por Chico Buarque, compositor de algumas das mais belas músicas brasileiras feitas nestas últimas décadas. Aguardado pela mídia que anunciou exaustivamente o sumiço do autor por estar concentrado neste projeto literário, Leite Derramado é a história narrada por seu próprio protagonista, o Sr. Eulálio Montenegro d'Assumpção ( com “p” mudo ), que tenta costurar as origens elitistas de sua família, sempre próxima ao poder, fosse do Império ou da República Velha, mas que se encontra abandonado em um hospital do Rio de Janeiro. Aos 100 anos, sem seus privilégios e poses, resta-lhe contar e recontar ( entre delírios e devaneios) sua vida aparentemente venturosa. Agradável e irônico, o livro tenta mostrar os ingredientes da ginga e do jeitinho brasileiro diante de questões de peso como a presença da escravidão, a convivência ambígua dos “brasileiros” com as diversas etnias que os compõem, a atração pelos privilégios de classe e sua capacidade corruptora de abrir portas sociais e bons negócios com os governos, mas traz como eixo principal e motor das lembranças deste ancião, sua paixão por Matilde. Morena de cor escura, mulata não confessa e bem ao gosto do desejo masculino, Matilde provoca lembranças ambíguas a este marido e narrador, que mesmo contra as expectativas de sua mãe, casa-se com ela e é em seguida abandonado em pleno período de amamentação de sua filha Maria Eulália. Os relatos de Eulálio se concentram neste breve mas intenso casamento, em que felicidade e traição serão o mote para as ficções que ele, bem ao modo de Bentinho e suas suspeitas não comprovadas sobre Capitu, irá construir a respeito do destino e das razões do sumiço de sua amada,odiada e desprezada esposa. Tal como o alicerce de qualquer construção, os romances nos capturam pela via destes elementos, mesmo que nos tragam informações históricas ou reflexões filosóficas mais nobres. O desejo de um homem por uma mulher ou a grande paixão de uma mulher por algum homem, os percalços desta busca humana por alguém especial que comprove, ainda que por algum tempo, que se pode ser amado, a descrição das dores provocadas pelo ciúme, sempre presente, sejam os motivos reais ou fantasiosos. Este trivial triângulo amor-ódio- ciúmes é o responsável pelas fantásticas cores de felicidade, prazeres, dores e sofrimento, que fazem parte das relações amorosas de todos. São nossas relações amorosas desde nossa infância, as responsáveis pela construção de nossas ficções. São elas que servem de ponte de contato com o mundo e nos auxiliam na composição de um lugar para nós, além de nos fornecer uma história que poderemos achar especial, mas que trará em seu bojo a repetição destes anseios de cada um.
coluna do dia 03 de março de 2009
coluna do dia 03 de março de 2009
terça-feira, 30 de junho de 2009
Capitulando
Apesar de não sermos um país que dispense um lugar tão diferenciado para a sua própria literatura, o romance Dom Casmurro e seus personagens Capitu e Bentinho são velhos conhecidos da maioria. Na cola da comemoração do centenário de morte de Machado de Assis reverenciado e com razão, como um dos maiores escritores brasileiros, a Rede Globo colocou no ar desde ontem, uma minissérie em cinco capítulos sobre esta trama que, por supor um adultério feminino e expor a hipocrisia da sociedade imperial da época, foi e continua a ser motivo de debates e controversas além de palco de alguns júris que se propuseram a tentar condenar e/ou defender Capitu. Não custa lembrar que o romance é narrado por Bentinho como a fazer uma retrospectiva de sua vida e da suposição que o perseguiu ( e ainda o persegue quando escreve) de que sua Capitu, então amada esposa , teria se envolvido com seu melhor amigo Escobar e que seu único filho Ezequiel pudesse ser fruto deste relacionamento. Fosse como dúvida ou como realidade, a grande genialidade de Machado de Assis não foi repetir a velha fórmula do triangulo amoroso, sempre um bom ingrediente para nossas histórias amorosas, mas sim revelar através da ambigüidade de seu personagem narrador, a “verdadeira” natureza humana. É justamente por Bentinho ter optado por acreditar em suas suposições e ter deixado Capitu e seu filho na Suíça, que ele precisa fazer este exercício atormentado de escrever e rememorar seu passado, na tentativa de justificar e sacramentar sua decisão, demonstrar a culpa de Capitu e se livrar de sua própria culpa em relação aos seus sentimentos de ciúmes, inveja, rivalidade e por que não crueldade. É esta sensibilidade apontada em Machado de Assis por quase todos os seus estudiosos e leitores apaixonados, que lhe confere a capacidade de analisar as nuances nem sempre perceptíveis da alma humana. A leitura de um texto desta grandeza não só promove diferentes maneiras de apreensão por parte de cada um dos leitores, como a cada época, graças ao bonde da história que jamais pára, pode permitir novas reflexões sobre os mesmos dramas humanos.É assim que o adultério feminino foi durante quase sete décadas o grande tema a se destacar deste texto e, podemos dizer hoje ,a empobrecer sua riqueza, já que não se trata de chegar a este tipo de “verdade”moral.Para além da possibilidade de traição de Capitu, há um homem que se dispõe a abrir sua alma e relatar seu drama, sua paixão,suas dúvidas, seus ciúmes,seu ódio e suas escolhas.Os romances, assim como os filmes e as canções são produtos desta pequena parcela humana de autores,a quem nunca podemos deixar de agradecer e reverenciar por nos oferecer constantemente possibilidades de estudar, perscrutar e entender um pouco mais de nós mesmos.
Coluna do dia 09 de dezembro de 2008
Coluna do dia 09 de dezembro de 2008
Novas cores do amor
É agradável ler um texto cujas idéias andam passeando por nossa cabeça. É como se alguém tivesse sido generoso e pudesse nos ajudar a organizar nossa estante de palavras, ajeitando-as de forma mais harmoniosa, tirando os excessos, acrescentando adjetivos mais apropriados, etc. Foi assim que me senti ao ler o texto de Jonathan Franzen no caderno Mais! da Folha do último domingo, “ Amor sem pudor”. Embora polêmico e controverso, o amor ocupa um lugar meio sagrado no imaginário social. Com um passado glorioso, desde sempre foi alçado a condição de sublime, fosse identificado a um Bem acima de qualquer suspeita, a um sentimento que deveria ser devotado exclusivamente aos deuses, ou a algo especialíssimo entre dois seres quando agraciados e capturados por ele, certos de estarem na rota da felicidade. Mas assim como a sexualidade humana, o amor também viajou no trem da história e adquiriu tonalidades que não possuía. Em nome dele muitos crimes foram e ainda são cometidos e muitas coerções são admitidas , assim como algumas dores dilacerantes são perpetuadas. Por outro lado, este mesmo amor, foi e continua a ser bandeira de muitas lutas contra discriminações sociais, étnicas, sexuais e religiosas. Sentimento privilegiado da zona privada das vidas das pessoas, no mundo atual ninguém questiona os rituais amorosos, sejam os que se realizam em torno do amor de pais por seus filhos, destes por seus pais ou de pares que desejem exibir suas paixões. Mas por ter se tornado inquestionável como condição nas relações mais íntimas, sua antiga moradia privada tem escancarado suas cortinas. Franzen é um escritor americano de 47 anos considerado há quase uma década uma destas boas revelações da literatura mundial. A palavra “mundial” deve ser destacada já que um escritor desta geração, pelo menos cá em nosso Ocidente, deve oferecer uma leitura cujas referências culturais ou questionamentos sobre a vida humana farão parte de nosso repertório. É assim que ele descreve neste texto um pouco de sua inquietação ao se deparar, em qualquer recinto público, com pessoas penduradas em seus celulares, que de forma automática e sem se sentirem constrangidas por não trocarem palavras com os que os estão auxiliando nos serviços, passam a falar em voz alta sobre suas vidas íntimas ou profissionais, rindo ou se exaltando seja em alguma fila, na compra de ingressos ou objetos,em mesas de bares ou restaurantes, etc. E se pergunta como foi que em tão pouco tempo todos se autorizaram a divulgar em alto e bom tom, pedaços enormes de suas vidas privadas em recintos públicos repletos de estranhos? Será que seria ele o “vovô” da história, ao se sentir desconfortável em ouvir declarações de amor de enamorados ou de pais para seus filhos no caixa dos supermercados? É interessante como Franzen estaria revelando a partir de seu constrangimento, um temor do qual compartilho, o de que o “amor” se banalize e que nossas vidas, já sem muitos guias de destinos, fiquem sem este que ainda nos presenteia com um sentido. Mesmo que adquira outras cores.
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Coluna do dia 18 de novembro de 2008
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Coluna do dia 18 de novembro de 2008
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