sábado, 4 de julho de 2009

Como 2 e 2 são 5

Há um consenso em torno do fato da literatura moderna ter sido um dos fatores que auxiliou o homem a aprender a falar de si. Desde que a leitura de livros tornou-se prática comum, é de praxe seguirmos indicando ou buscando indícios de narrativas que falem sobre o nosso mundinho e que contem estórias de personagens como nós, banais, às voltas com nossos desassossegos, angústias e dilemas, principalmente amorosos. Na semana passada noticiou-se o lançamento de mais um livro escrito por Chico Buarque, compositor de algumas das mais belas músicas brasileiras feitas nestas últimas décadas. Aguardado pela mídia que anunciou exaustivamente o sumiço do autor por estar concentrado neste projeto literário, Leite Derramado é a história narrada por seu próprio protagonista, o Sr. Eulálio Montenegro d'Assumpção ( com “p” mudo ), que tenta costurar as origens elitistas de sua família, sempre próxima ao poder, fosse do Império ou da República Velha, mas que se encontra abandonado em um hospital do Rio de Janeiro. Aos 100 anos, sem seus privilégios e poses, resta-lhe contar e recontar ( entre delírios e devaneios) sua vida aparentemente venturosa. Agradável e irônico, o livro tenta mostrar os ingredientes da ginga e do jeitinho brasileiro diante de questões de peso como a presença da escravidão, a convivência ambígua dos “brasileiros” com as diversas etnias que os compõem, a atração pelos privilégios de classe e sua capacidade corruptora de abrir portas sociais e bons negócios com os governos, mas traz como eixo principal e motor das lembranças deste ancião, sua paixão por Matilde. Morena de cor escura, mulata não confessa e bem ao gosto do desejo masculino, Matilde provoca lembranças ambíguas a este marido e narrador, que mesmo contra as expectativas de sua mãe, casa-se com ela e é em seguida abandonado em pleno período de amamentação de sua filha Maria Eulália. Os relatos de Eulálio se concentram neste breve mas intenso casamento, em que felicidade e traição serão o mote para as ficções que ele, bem ao modo de Bentinho e suas suspeitas não comprovadas sobre Capitu, irá construir a respeito do destino e das razões do sumiço de sua amada,odiada e desprezada esposa. Tal como o alicerce de qualquer construção, os romances nos capturam pela via destes elementos, mesmo que nos tragam informações históricas ou reflexões filosóficas mais nobres. O desejo de um homem por uma mulher ou a grande paixão de uma mulher por algum homem, os percalços desta busca humana por alguém especial que comprove, ainda que por algum tempo, que se pode ser amado, a descrição das dores provocadas pelo ciúme, sempre presente, sejam os motivos reais ou fantasiosos. Este trivial triângulo amor-ódio- ciúmes é o responsável pelas fantásticas cores de felicidade, prazeres, dores e sofrimento, que fazem parte das relações amorosas de todos. São nossas relações amorosas desde nossa infância, as responsáveis pela construção de nossas ficções. São elas que servem de ponte de contato com o mundo e nos auxiliam na composição de um lugar para nós, além de nos fornecer uma história que poderemos achar especial, mas que trará em seu bojo a repetição destes anseios de cada um.



coluna do dia 03 de março de 2009

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