terça-feira, 7 de julho de 2009

Flipando

Os leitores que, como eu, apreciam uma boa leitura, provavelmente estiveram antenados com a realização da ultima FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, que desde 2003 acontece na primeira semana de julho e já é conhecida ( e reconhecida) pela qualidade dos autores convidados, pelo irresistível entusiasmo de seu público e pela descontraída hospitalidade da charmosa cidade. Evento mais que moderno, há muito pouco tempo nem imaginaríamos estar face a face com autores de livros que apreciamos, ouvindo-os falar sobre seus processos de criação, sobre suas vidas íntimas, suas hesitações ou esperanças. Como em todos os espetáculos, em meio aos burburinhos suscitados pelos “eleitos” e mais assediados, aqui e ali é sempre possível extrair falas de alguns escritores que se encaixam a certos anseios de seus leitores. Foi neste clima que “bebi” as palavras do escritor francês Grégoire Bouillier , em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, dias antes de sua chegada ao Brasil, quando afirmou ser o desafio maior da literatura, aquele de tornar compreensível ao próprio autor e aos seus leitores, o que se sofre e se experimenta pessoalmente, já que a vida nos desafia permanentemente a contá-la, e devemos aproveitar nossas dúvidas e questões para virá-las lentamente em direção à luz. Para ele, os livros mais reverenciados seriam os que falam ao ponto mais íntimo de nós mesmos, constroem nosso imaginário e inserem palavras, histórias ou situações que não poderíamos formular sozinhos. Quando alguns livros continuam a viver em nós e a nos influenciar sem que o saibamos, é porque eles nos fizeram diferença e é possível verificar em algum momento de nossas vidas, suas marcas e influências. Lembrei-me imediatamente do livro que classifico como o divisor de águas de minha vida, quando aos 19 ou 20 anos li “O jogo da amarelinha” do escritor argentino Julio Cortázar. Embora já houvesse “conhecido” Garcia Marquez, Jorge Amado e outras obras contemporâneas que desconstruíam a lógica amena dos romances de então, este livro perturbava em todos os sentidos. Com uma narrativa incomum, cujo objetivo não era o desfecho de uma trama, este anti-romance invertia a ordem convencional ao privilegiar a subjetividade dos personagens sem colocá-los em uma história de começo, meio e fim. A proposta desconcertante do autor, de que cada leitor pudesse escolher ler a obra seguindo um ordenamento linear dos capítulos ( do 01 ao 56) ou saltando segundo suas instruções ao final de cada capítulo ( começando pelo capitulo 72),já indicava sua ousadia formal. Melhor ainda era mergulhar na alma de seus personagens, que como ele, eram em sua maioria, imigrantes latinos vivendo na Paris dos anos 50 e 60, palco de questionamentos políticos e sociais, mas principalmente de encenações do que viria a se constituir uma verdadeira revolução cultural. Os diálogos, as manias, os livros, as músicas e as idéias e a ânsia de viver dos personagens já anunciavam este nosso novo mundo. Maior impacto ainda era o fato destes personagens não se levarem tão a sério, utilizando-se de uma via irônica para se referir aos seus dramas cotidianos, que revelava uma coragem em se apresentar por suas falhas, feridas e perdas. Lido no início dos anos setenta, o livro me causou um alvoroço interno, ainda que não houvessem palavras para definir meus sentimentos. Provavelmente são estas obras que chamamos de vanguarda, e que em diferentes tempos e lugares se tornam o arauto de mudanças importantes, ao apontar caminhos inesperados.

coluna do dia 7 de julho de 2009

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