segunda-feira, 6 de abril de 2020

Cenas de um próximo filme (ou Os sons da dor)


Cenas de um próximo filme (ou Os sons da dor)

Gisela Haddad

Mel não conseguia suportar aquela sensação de vazio. Estaria condenada ao fracasso? Há dois anos sua produção artística zerara. Incomodava lhe o fato de suas lembranças surgirem fragmentadas e de imediato culpava sua fraca memória, embora este argumento não se sustentasse. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, evitava trazer à tona as passagens tristes que lhe arrancaram a alma. Ainda assim, não se decidia a levar adiante esta inquietante constatação. Parecia-lhe doída demais.
Acabara de ler o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, contava o quão se debatia com os entrecortes de sua memória, dificuldade que lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, fossem cartas, bilhetes ou cadernos, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças, infelizmente uma sensação efêmera. Seguia aflito como se vivesse em mundos paralelos, ora sendo um, ora outro, o que lhe causava uma estranheza exasperadora. Seu primeiro e até então único livro, no entanto, fizera muito sucesso, mas com ele as aflitivas entrevistas, em que era invariavelmente questionado sobre os caminhos de sua inspiração. O mal estar era tal que se viu obrigado a vasculhar o motor que movia sua necessidade de escrever. Sabia ser-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade, escrever, que agora (oh céus) se tornara ferramenta de trabalho, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. A escrita era este outro ele mesmo que como um interlocutor silencioso, lhe possibilitava “falar” qualquer coisa sem censura e assim, de tempos em tempos, quando se permitia (e conseguia) voltar a ler seus textos, por vezes tinha a oportunidade de traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. E se esta leitura podia ser motivo de júbilo, em geral causava-lhe dores n’alma, às vezes ressoando pelo corpo. E se fossem elas, as dores, as responsáveis pelos seus inúmeros momentos de paralização que lhe transportavam para o vazio?
Mel ficara impactada com este depoimento. Parecia-lhe familiar, pensava em suas dores e o ar parecia lhe faltar. Demorara a se considerar uma artista com algum valor. Temia que sua arte vagasse em um espaço sem sentidos definidos. Criava seus roteiros aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-los em seguida como a poderem ser guardados em algum arquivo imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se esta simples tarefa outrora lhe trouxera conforto, no momento só havia espaço para as dúvidas. Precisava, tal como aquele escritor, achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse este fio que a costurasse à sua história. Estes pensamentos a perturbavam já que o contrário, ou seja, construir a história de sua arte parecia-lhe o caminho para entender a sua própria. À medida que seu pensamento seguia livre, sentia sua respiração ficar mais ofegante. E se sua arte sempre fora uma espécie de imposição dos vãos de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na linha do tempo? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma?
Foi socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores/críticos que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolheriam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas (pré) visões. Sim, respirou aliviada, sua arte era parte importante de sua história, mas a transcendia.
Mel pressentia, no entanto, que mordera a isca e não havia mais volta. Precisava tornar compreensível a si mesma (e quiçá aos admiradores de sua arte) seus modos de sofrer, suas dores e amores. Quantas e tantas vezes ouvira elogios de seus amigos a certos livros que falavam ao ponto mais íntimo de nós, auxiliando-nos na construção de nosso imaginário ao inserir palavras, histórias ou situações que não se poderia formular sozinho. Livros que deixam suas marcas. Não lhe era muito claro o papel da literatura para a sua vida, mas era certo que algumas leituras teriam aberto horizontes, despertando-a para universos desconhecidos e inimagináveis. Se alguns podiam reconhecer seus próprios desejos desde muito cedo, nomeando-os e perseguindo-os, ela não pertencia a este grupo. Porém esses livros haviam lhe mostrado que o “mundo” (aquele composto pelo acervo cultural humano) deveria ser muito maior do que o que lhe era dado conhecer. Podia reconhecer em si esse longínquo desejo de conhecer o máximo que pudesse sobre ele. Como isso a acalmava! Dava-lhe uma sensação de destino. De vida vivida.
Mas durava pouco. Bastava uma noite de insônia e o vazio a invadia novamente, como se o dia seguinte não existisse mais. O cérebro pensante e o coração pulsante ficavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angústia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças.
Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar, e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 12 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narrassem este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores das perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo.
Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois destes anos juntos, a vida a dois ficara quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre grudados ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou lhes causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se ficariam parecidos com aquela senhorinha gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.
Desconfiava que quase todos fossem reféns do amor nessa incessante (e impossível) viagem para ser único e especial para alguém. Essa possibilidade imaginária funcionaria legal ao proporcionar uma visão de vida, ao oferecer alguma remissão e um significado à existência. Seriam poucos os que não se declarariam dependentes de um olhar amoroso, de poder contar com um outro que respondesse sobre sua importância. Uma aposta alta e por isso sempre acompanhada do medo do não, do abandono ou da traição. Terrível paradoxo! Habitar esta terra do romance que permite que se construam pontes e acessos imaginários para a “posse” completa do outro. Ao contrário, ela sabia que era às duras penas que se conseguia ajustar o olhar às cores pastéis do amor para poder trocar o verbo “precisar” do amor do outro, e inventar tantos outros verbos em que se corre o risco de não ser amado ou de ser amado de forma diferente do que se quer. Só assim é possível localizá-lo nos pequenos detalhes, nas trocas de olhares, nos pactos, nos sorrisos, na antecipação de certos desejos, na cumplicidade com as fragilidades, enfim, na responsabilidade com os cuidados e afetos que cada um (por sua conta e risco) se compromete a assumir. Nem um mar de alegrias sem fim, nem um lago escuro e gelado em que só habitem feras hostis. Para ela uma razão para viver. “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?” – Mel gostava de cantarolar esta frase do Renato Russo. Perfeita!
Agora se sentia refém da dor. A vida estaria lhe dando uma chance ou lhe punindo? Ora se entregava à dor insuportável da perda desta experiência tão rica, ora Pedro parecia lhe acenar para que ela voltasse à superfície. Sua “presença” ainda lhe salvava.
Lembrou-se quando mudara para o Rio de Janeiro atrás de seus sonhos e sim... Podia dizer sem titubear que muitos deles se realizaram. Conseguira cavar um lugar no mundo incerto do jornalismo. Depois o cinema – sua grande paixão – com a carreira de roteirista, algo que imaginara desde a sua infância, quando “dirigia” a turma da rua improvisando cenários e vestimentas. Que sensação gostosa se lembrar dos roteiros que escrevera ainda menina, das reuniões sempre tumultuadas para a escolha dos atores principais. Tivera que criar uma estratégia para evitar os conflitos advindos dos ciúmes e das rivalidades, e assim proporcionar maior legitimidade aos eleitos. Os “estúdios” de seu Cinemoção ficavam no enorme quintal de sua casa e seus pais jamais se opuseram, ao contrário, até palpitavam e algumas vezes ajudavam na composição dos cenários e nos figurinos. Sua mãe, ah... Que saudades daquele olhar interessado, investido de energia. Sua paixão pela vida a alimentara e a movera o tempo todo. Um legado.
Pensou em Pedro e de como ele admirava nela esta mesma ligação apaixonada com a vida, uma estrada aberta para acolher as possibilidades de prazeres diversos. Mas agora que ele se fora, anoitecera. O dia não amanhecia. Perdera para sempre seu olhar devoto, amoroso, que tanto alimentara sua coragem, seus projetos, sua vida.
Não encontrava palavras para descrever sua dor. Ainda não. Ela lhe ultrapassava. As cenas evocadas pela memória ora traziam Pedro ora sua mãe, que se fora lentamente antes de morrer, durante o calvário do Alzeimer, aquele que rompe os fios da memória deixando todos atônitos. Consultas ao Google, aos neurocientistas, aos familiares de outros atingidos por esta doença não puderam responder a pergunta que insistia: por quê? Como é possível que ainda saudável, resultados de exames conferindo-lhe saúde de uma jovem, sua mãe houvesse abandonado sua bem instalada identidade, sua mais valiosa moradia, para aos poucos ficar sem lugar, sem história, em um caminho sem volta até perder-se de si mesma? Tinha sido dramático estar ao seu lado, ao lado daquele corpo tão conhecido e tão querido e perceber que em algum lugar dele havia um “ralo” sugador de histórias recentes e passadas, das quais ela se sentia parte. História de uma mulher e mãe tão sabida, centro nervoso da casa, daquelas que levavam a palavra aonde ainda não existia. Que sabia tecer devagarinho as asas de seus filhos e separar-se deles na hora certa. Todos puderam voar, talvez porque supunham que ela estaria sempre ali para recebê-los, atender seus telefonemas a qualquer hora e dia (oh céus, como isso fazia diferença). Era óbvio que não havia se preparado para perder sua mãe. E agora Pedro.
Pensou nos inúmeros filmes baseados nas memórias de dores, mas de descobertas de alguém, histórias que fazem chorar, arrepiar e acelerar os corações! Ali, em silêncio, Mel imaginou a cena de um filme futuro, em que as duas, mãe e filha, conversariam sobre a dor da morte dela e de Pedro. E sua mãe a lhe garantir a possibilidade de inventar novos laços para ocupar o lugar dos perdidos. A impedir que sua memória-história se perdesse e com ela a sua paixão pela vida e seus roteiros.



Gisela Haddad é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância, do Grupo Generidades, da equipe editorial da Revista Percurso e do Blog do Departamento. É mestre em Psicologia Clínica e autora do livro Amor e Fidelidade, Coleção Clínica Psicanalítica da Casa do Psicólogo (2009).

Gisela Haddad foi irmã-mãe de seis, é mãe sortuda de duas pérolas e avó de um pedacinho de diamante. Faz muitas viagens pelas letras, pelas comidas e pelas estradas, sempre atenta às novas possibilidades de se articular o belo ao amoroso e ao genial. É aflita e agita-se muito, mas às vezes adormece e sonha.

Texto originalmente publicado no livro "Perche mi piace - a vida com elas" organizado por Maria Leticia Oliveira Reis ( Calligraphie Editora 2018)