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sexta-feira, 6 de março de 2020

Amor e fidelidade no século XXI resenha de Renata Cromberg



Amor e fidelidade no século xxi

Resenha de Renata Cromberg*

Haddad, Gisela. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. 187 p.

Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz.
Consta no Google, no Twitter, no face, no Tinder, no WhatsApp,
no Instagram, no Snapchat, no Orkut, no Skype.
(Chico Buarque e Clara Buarque interpretam “Dueto”, com um acréscimo feito em 2017 à letra original)

    O livro de Gisela Haddad antecipa uma discussão nevrálgica em tempos tecnológicos e de todas as mudanças que as redes sociais e os novos meios de comunicação estão trazendo desde os anos 2000 no campo dos afetos e dos comportamentos sexuais de todas as idades. Ele fala das vicissitudes das relações entre sexo, amor e fidelidade. Sua questão central, em torno da qual muitas espirais se abrirão, é que o amor e a fidelidade não são verdades sagradas e eternas nem sinônimos, mas são construções culturais que mudam ao longo da história humana.
Recentemente realizado, o filme A vigilante do amanhã (Ghost Shelter/2017) expressa uma distopia futura que pode tornar a dúvida freudiana – se a sexualidade ainda permaneceria no futuro –  uma afirmação plausível.  No filme, a personagem principal tem corpo sintético, escultural e belo, mas sem orifícios. A sexualidade genital é algo remoto, aludido a um passado. Os personagens se relacionam com muita disputa guerreira através de longas línguas tecnológicas que sugam os cérebros uns dos outros, regressão primária oral espantosa. De humano resta o cérebro extraído de uma moça morta cuja trajetória de vida a heroína tenta remontar e recordar a partir de flashes e encontros, mostrando que a necessidade de uma origem e uma história é o que ainda dá a possibilidade de sentido e um toque final não desumano, num mundo em que a guerra e a disputa de poder predominam.
Com uma escrita fluida e de agradável leitura, com epígrafes de composições musicais de Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso e Ed Motta, que trazem uma divertida poesia aos temas, Haddad reflete sobre as razões da insistência do ideal mítico do amor romântico nas uniões amorosas e sexuais no nosso imaginário cultural e em sua insistência, mesmo na era do individualismo radical da contemporaneidade. Entendo que esse individualismo se expressa no campo amoroso e sexual de várias formas em uma exposição desmedida e sem controle de imagens sexuais nos meios midiáticos, acessível a todas as idades e formas de sexualidade em todas as manifestações possíveis: bi, hetero, trans, e nos 75 gêneros já catalogados, em poliamor ou monogamicamente, em relações longas ou breves, nas quais a singularidade de cada organização fantasiosa é o que rege os arranjos e acordos sexuais.
É insólita essa persistência porque, na própria definição de amor romântico, está implícita uma união conjugal duradoura e exclusiva, que implica um sentimento de completude amorosa e sexual. O objeto escolhido deve ser único e insubstituível,  pois para o sujeito do amor romântico seu objeto é permanente e exclusivo, fazendo com que ele não tenha de sentir desejo por outro objeto, o que o torna fiel sem necessidade de imposições externas. É mantendo-se como o único que poderá verdadeiramente produzir uma satisfação sexual plena. A fidelidade faz parte dessa idealização amorosa e é causa recorrente das dores de amor.
As pesquisas de Miriam Goldenberg e Maria Luiza Heilborn, ambas de 2004, parecem confirmar à autora que a maioria dos homens e mulheres aspira a uma relação mais duradoura com um único parceiro. Mas, segundo as pesquisas, a relação deveria preservar a individualidade, o respeito à privacidade e a independência financeira das duas partes.
Gisela Haddad cerca-se de bons companheiros no percurso de desdobramento de sua questão. Muitas leituras de psicanalistas, filósofos, músicos e escritores. O Banquete, de Platão, e seus sete discursos sobre os diferentes tipos de amor, aparecem como referência-mor de literatura sobre o amor no Ocidente. Foucault ajuda a pensar a naturalização e a normatização da sexualidade pela Igreja. Jurandir Freire Costa, em Sem fraude nem favor (1998), aponta a naturalização do ideal do amor romântico impedindo a percepção de que ele é produzido culturalmente, o que o torna um ideal inalcançável. Inês Loureiro traz sua cuidadosa e exaustiva pesquisa sobre as relações da psicanálise com o romantismo e teorizações freudianas sobre o campo amoroso e sexual. Stendhal, Balzac, Flaubert e Tolstói trazem as formas nas quais a literatura figurou, no século XIX, o ideário do amor romântico.
No primeiro capítulo, Haddad traça um panorama histórico dos caminhos do amor e da idealização romântica do amor e sua articulação com o nascimento da psicanálise e da subjetividade moderna. A concepção de amor moderna e ocidental é uma invenção recente e diz respeito a uma relação exclusiva entre um homem e uma mulher que aspiram a se unir na busca de uma completude feliz. Se a relação amorosa e o casamento existiam desde a Antiguidade, foi no século burguês que a conjunção amor, casamento e sexo deu origem ao amor romântico. Entre o final da Idade Média e o começo da modernidade teria havido uma produção da intimidade subjetiva do amor.  Ao cindir de um lado o amor e de outro o amor de si e o sexo, a Igreja Católica produziu uma literatura importante sobre a luta íntima que cada um travava pela necessidade de renunciar aos apelos das paixões sexuais e agressivas e aos desejos de ser amado e reconhecido por seus semelhantes a fim de se sentir digno do amor divino. A partir das reformas cristãs propostas por Lutero, a relação do homem com Deus passa a ser individual e não mais hierarquicamente determinada, e ele começa a buscar a verdade dentro de si, corroborando a produção de uma interioridade que será valorizada na modernidade. Freud viveu o apogeu do amor romântico e é a valorização da interioridade que fará com que a experiência amorosa ocupe um lugar privilegiado na sua obra bem como a renúncia das paixões humanas ou a interdição de um gozo, imprescindível enquanto base para os pactos sociais que fundam ou mantêm as civilizações. O amor cortês valorizou a figura da mulher através dos trovadores e a inacessibilidade idealizada da mulher foi a herança do amor romântico nos tormentos, dores e frustrações do sujeito do amor. O estilo romântico das produções literárias oitocentistas revelam de maneira inédita os anseios amorosos de cada indivíduo em busca de completude, inaugurando um novo mito do amor, cuja meta é a plenitude conseguida por meio da união de dois corpos e duas almas.  Agora o sentimento amoroso está num patamar elevado e passa a ser visto como fonte de felicidade e destino pessoal de homens e mulheres. A subjetividade amorosa toma um espaço central na vida de homens e mulheres. A interioridade passa a ser alimentada em suas fantasias humanas e ideais amorosos pela literatura romântica nascente. Aos poucos, as mulheres passam a ser sujeitos de uma escolha amorosa. A revolução que Freud trouxe, indo atrás dos percalços do inconsciente, exigia um confronto com a hipocrisia da época, que impunha silêncio sobre o tema tabu da sexualidade, enquanto reivindicava a inclusão da sexualidade na vida cotidiana.
No segundo capítulo, a autora realiza um recenseamento histórico da fidelidade entre dois imperativos culturais em épocas distintas: o da pressão sexual e o do gozo sexual. As qualidades morais de lealdade, firmeza e constância nas afeições e nos sentimentos nem sempre foram associadas à exclusividade sexual num par amoroso e se deu apenas na Era Moderna, em que compôs uma complexa e intricada faceta do amor romântico na constituição dos pares conjugais. Aí exclusividade sexual passa à manutenção da família tradicional, regulando a obrigação moral da monogamia e reinando como norma para acasalamento no mundo ocidental por séculos. No entanto, segundo Foucault, ela já estava presente na ética dos comportamentos do casal homem e mulher na Grécia Antiga, num casamento que privilegiava seu objetivo de descendência, cujo ethos será preservado pelo cristianismo. Neste momento, se a fidelidade masculina dizia respeito a um fator de delicadeza, de uma conduta hábil e afetuosa, cujos deslizes deveriam ser tolerados pelas mulheres, a fidelidade feminina era delegada a um cuidado legislado pelos homens, que precisavam manter sob controle a reprodução da espécie e, por extensão, o corpo da mulher. A autora se aprofunda na análise das transformações ocorridas a partir da modernidade. Os debates sobre a sexualidade feminina nos séculos XIX e XX tiveram efeitos decisivos sobre a vida das mulheres e de homens e iriam desembocar em mudanças importantes no casamento como célula da família burguesa, na relação entre os sexos e no lugar da fidelidade sexual. Nos manuais sobre casamento na era vitoriana já não se conseguia esconder a inquietação sobre o erotismo feminino em erupção. É nesse caldeirão que surge Freud, no final do século XIX, ao apontar que por trás da máscara cultural da vergonha, da reticência e da frigidez paralisante, estava a sexualidade humana e em especial a feminina. A autora aprofunda-se então nas considerações sobre a fidelidade sexual e o enigmático feminino, bem como no reinado da infidelidade sexual masculina e nos laços entre fidelidade e conjugalidade, traçando toda a complexidade do par amor e sexo. Ao se tornar o eixo da vida dos indivíduos, o amor inaugura uma nova maneira de existir, mais centrada na tarefa amorosa de cuidado com as crianças e na ânsia de ser amado e reconhecido pelos pares. “Os sujeitos contemporâneos se definem pelo romance que tecem sobre si desde sua infância e que se destina a responder sobre o quantum de amor que lhes cabe” (p. 94).
É no terceiro capítulo que as teses freudianas sobre a vida amorosa de homens e mulheres de seu tempo são apresentadas. Haddad traça um roteiro completo e cronológico dos escritos em que Freud contribuiu para pensar sua questão mestra. A fidelidade em Freud está ligada ao sentimento de exclusividade na idealização amorosa vivida na relação originária com a mãe, a memória fantasiada de um tempo de plenitude que se deseja repetir. Mas ela indica também o sofrimento produzido pela perda dos objetos amados originários. Tanto a perda amorosa originária como a edipiana serão responsáveis pelos sentimentos de ciúmes e rivalidade na luta por essa exclusividade, compondo a novela familiar do intrincado mundo afetivo infantil até alcançar o lugar de sujeito apto a compartilhar e buscar na cultura seu futuro. Desde os primeiros textos Freud marcava tanto a impossibilidade de se manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas de infidelidade, como o fato de a exigência de fidelidade criar um impasse nas uniões conjugais, ao lembrá-las de sua existência precária e sem garantias.

      De um lado, uma fidelidade amorosa a um objeto original, buscando o retorno a uma perfeição narcísica; de outro, a infidelidade do desejo diante dos objetos impessoais da pulsão. A fidelidade e as infidelidades ainda irão se articular à figura do terceiro, responsável pela constituição da alteridade, delineando mapas diferentes para cada gênero, assim como condições singulares para cada sujeito. (p. 118)

No quarto capítulo, sugestivamente denominado “Perto demais ninguém é fiel”, a análise do filme Closer (Perto demais) funciona aqui como um estudo de caso do paradigma dos amores contemporâneos em que as infidelidades detonam dores e sofrimento provocados pelas experiências de perdas ou pelas vicissitudes que rondam as expectativas de fidelidade sexual. As narrativas dos sentimentos dos quatro personagens, entre 30 e 40 anos, de classe média de uma grande metrópole, que compõem casais alternados, são traçadas do ponto de vista de quem traiu e de quem trai e apontam essa experiência não de acordo com seu rompimento com as convenções sociais, o que indicaria seu valor moral, mas do ponto de vista de um individualismo radical e, portanto, na esfera exclusiva do foro íntimo. A narrativa da autora dá um retrato ficcional à faixa de população das pesquisas sobre amor e fidelidade que ela utiliza nos capítulos anteriores. Ela conclui que não é fácil renunciar à promessa de completude e exclusividade que se mantém através do ideal amoroso romântico.

"A expectativa de fidelidade entre os pares parece comungar  na tentativa de encobrir a verdade sobre a necessidade de aceitar a atenuação do prazer absoluto, assim como as infidelidades desvendam essa ilusão. O jogo amoroso pressupõe mediação, recalque e aceitação da impossibilidade do gozo pleno, ou tentativas de se esquivar e velar sua impossibilidade, ainda que nós e a cultura optemos por manter estampado em algum lugar de nossos futuros os letreiros que acenam com o amor verdadeiro." (p. 174).

Nas conclusões, Gisela Haddad refaz sua questão: seria o paradoxo do amor manter-se indefinidamente alimentado pela ilusão apontada por Freud de uma unidade imaginada plena ou da promessa de uma indenização amorosa alhures a que em geral se acredita de direito?
Embora a transitoriedade do amor seja mais aceita, a fidelidade não esteja mais do lado da convenção social, já que o proibido e o permitido convivam e estejam mais nuançados, Haddad nos diz que ele faz parte mais do que nunca das grandes ilusões humanas ocidentais. Seu reiterado fracasso não parece fazer com que se abdique de buscá-lo assim como de se esperar a fidelidade do amado e uma união mítica ancorada em acordos mútuos que possam fornecer uma certeza mínima de um compromisso de preservação deste desejo de união amorosa.
Acrescento a sua renovada questão a minha questão a partir da leitura deste estimulante e inquietante livro: como construir uma intimidade que possa preservar a alteridade de cada um no amor e uma união que saia de um pacto mortífero que transforma a fusão amorosa na destruição da alteridade e, portanto, na morte do desejo e do outro e do Outro para cada um? Como construir um íntimo entre dois que seja esteio para a criação singular de cada um e que, com isso, alimente a invenção e reinvenção constante do amor?
Os tempos tecnológicos contemporâneos oferecem facilmente os meios de realização do perverso polimorfo da sexualidade, na consumação instantânea, ao sabor das fantasias ou dos actings out “no Google, no Twitter, no face, no Tinder, no WhatsApp, no Instagram,  no Snapchat, no Orkut, no Skype”, conforme a epígrafe que escolhi para esta resenha.
Mas eles também podem ser novos veículos de transposição de todos os obstáculos que se renovam para a promessa em devir de que “Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz”, para além da guerra e da morte, alimentando o devir do mar dos “Futuros amantes”, lindamente poetado por Chico Buarque de Holanda, tão homenageado pelo livro de Gisela Haddad.

RENATA UDLER CROMBERG
Rua Inhambu, 873/203
04520-013 – São Paulo – SP
Telefone 11 992790487
renatauc@uol.com.br

* Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae, pós-doutora pelo Instituto de Psicologia (IP-USP), autora dos livros Cena incestuosa e Paranoia, da coleção Clínica Psicanalítica, e de Sabina Spielrein – vida e obra de uma pioneira da psicanálise (Vol. I).




segunda-feira, 12 de junho de 2017

A família entre a cultura e a subjetividade atual: o papel do amor

A família entre a cultura e a subjetividade atual: o papel do amor

O trabalho de Foucault é hoje uma referência para pensarmos a contextualização histórica e social  da experiência humana e das verdades  e crenças  que dão sentido as relações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo. Não sendo a subjetividade nem universal nem prévia, torna-se necessário analisar os mecanismos de sua construção dentro de determinada época para saber sobre a constituição dos estilos de existência, das estruturas sociais que sustentam os sujeitos e das relações de poder que os dominam. Para Foucault (apud Bezerra Junior, 2000), é sobre estas formas de poder que se produzem campos de resistência, que na modernidade concentram-se na esfera subjetiva. A psicanálise freudiana protagonizou uma leitura inédita e subversiva das experiências subjetivas de seu tempo ao dar sentido à sintomas psíquicos perturbadores, revelando um cenário de fantasias humanas nem sempre sensatas ou coerentes e desvendando um sujeito dividido entre seus desejos e as exigências e proibições de sua cultura.
Nas últimas décadas, a cultura ocidental foi palco de intensas mudanças e invadiu quase todos os setores da vida humana. Seus ícones passaram a ser temas de pesquisas de diferentes áreas de conhecimento, que não só reconhecem sua importância e sua permanente  transformação, como buscam refletir sobre seus novos paradigmas. Tema privilegiado pela sociedade ocidental, a família, ícone cultural por excelência, tem sido alvo de estudos interdisciplinares que buscam constituir um saber a respeito de seu sentido e função na era contemporânea. Lugar especial no qual o bebê humano nasce, é cuidado, satisfaz suas primeiras necessidades, efetua seus primeiros intercâmbios afetivos, e é objeto de investimento amoroso, a família reúne um sistema de relações simbólicas e emocionais que lhe asseguram o lugar de importante núcleo de produção de subjetividade. No último século, este núcleo  familiar viu-se atropelado por mudanças culturais importantes  e por novas possibilidades que a ciência produziu.
Os avanços  da biotecnociências foram responsáveis por uma reviravolta no processo da reprodução humana, provocando uma revolução no próprio conceito que designava até pouco tempo a união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os filhos. Mudanças nos papéis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, na gestão da autoridade, na educação e transmissão dos valores e normas para as novas gerações, produzem discursos às vezes  alarmantes às vezes nostálgicos diante de um futuro que se apresenta incerto. Este texto pretende refletir sobre estas mudanças através da articulação entre a cultura e a produção de subjetividade na atualidade e analisar as regras e normas que hoje orientam e regulamentam a vida familiar ocidental e sua absorção de tais mudanças. Para isso partiremos de uma breve revisão da história da família moderna, ressaltando o valor do amor na constituição de um novo modelo familiar e de uma particular subjetividade que passa a existir a partir da Modernidade.
Após as revoluções burguesas do século XVIII  o espírito moderno apostou que a razão humana igual para todos pudesse assumir o exercício  de organizar as condutas e os consensos necessários ao convívio. Mas a tarefa de nos livrarmos das hierarquias pré-estabelecidas e exaltar o indivíduo como membro de uma humanidade comum se mostrou lenta e árdua, além de produzir inúmeros restos. O modelo familiar que conhecemos surge em meio à euforia do projeto civilizatório iluminista e teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal projeto englobava uma proposta filosófica e política para a sociedade burguesa que  pretendia fazer do amor apaixonado a base da construção da família, o que significava integrar a sexualidade ao amor e ao casamento. Bem recebida na época pelos literatos em geral, tal composição não só se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos como previa um arranjo conjugal em que a sexualidade ganhava legitimidade. Mas Gay (2000) denuncia como a imaginação do século XIX vai ficar capturada pelo componente físico da vida erótica e das estratégias de conquista sexual, com suas promessas de êxtase. Para a sociedade burguesa de então, era de mister importância que a bandeira do amor servisse de norte para os excessos do sexo e não faltava literatura cuja finalidade era a de mostrar os destinos trágicos do apaixonamento quando este não se enquadrava  na construção da família. O amor poderia incluir os suspiros do sexo, mas deveria seguir um percurso de sensatez e atender os compromissos de criação dos filhos, reprodução da família e formação do cidadão. Era este o cenário em que a dupla moral burguesa denunciada por Freud (1908),  expunha  as limitações impostas pela cultura à satisfação sexual principalmente das mulheres, chamadas a  privilegiar seu papel de mãe. A literatura romântica da época era pródiga em incentivar  o amor como remédio aos excessos do sexo, prescrevendo  destinos trágicos às paixões que se afastavam dos moldes previstos pela família burguesa. Grande parte dos romances narravam histórias de amor em que os sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências amorosas cujas paixões e  desesperos passam a colorir  as fantasias humanas. As  narrativas românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar  uma interioridade psicológica  com  identidades  fundadas em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência amorosa inédita. Nascia um novo conhecimento, uma ciência do homem, de suas particularidades e singularidades, expressa por uma nova linguagem, auto-referente, com  sujeitos capazes de falar de si.
O amor romântico se consolida em um  ideal reverenciado pela sociedade,  suporte deste modelo de família e parte  de um horizonte futuro da vida de cada um , uma aspiração  poderosa que acenava com a  possibilidade de uma felicidade humana terrena em contraposição aos  antigos ideais religiosos. Também inaugura uma convivência familiar mais centrada em seu núcleo pai-mãe-filhos,  transformando-se  em uma fortaleza afetiva restrita, o que funda a vida privada e íntima, característica da era burguesa.
Como bem aponta Roudinesco ( 2002), os casamentos realizados por amor começam a apresentar, a longo prazo,  um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O  bem-estar familiar  gira em torno deste ‘ninho’ e  à mulher resta o papel de mãe que ganha as atenções e a reverência da sociedade. O amor materno passa a ocupar um espaço jamais conquistado anteriormente na história da humanidade e seu corpo é alçado ao lugar de um paraíso originário. O ocidente passa a cultuar a imagem da Virgem Maria e seu filho como símbolos da maternidade. Tal reverência à maternidade ajuda a incrementar a figura mitológica da “sagrada família” moderna e de mãe para filha, o modelo materno adquire uma áurea própria: ao se casar e ter filhos a mulher se despoja de sua humanidade, recebe o cetro e a coroa e desfruta de seus poderes maternos. Aos poucos a mulher-mãe se torna condição de sobrevivência, indispensável ao desenvolvimento e à educação dos futuros homens. Mas se a influência materna passa a ser decisiva para a criança, os desvios e falhas infantis passam a ser fracassos de sua função de mãe.
Estamos diante do momento histórico (Áries, 1978) em que a infância moderna se instala em um compósito entre a idéia de um tempo feliz protegido pelo amor dos pais, mas principalmente  pelos cuidados de uma mãe amorosa, e a preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. É assim que no plano social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à criança, promovendo o desenvolvimento de uma infinidade de setores que de forma gradual, passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do futuro adulto.
Seguindo Foucault (1988), a organização patriarcal da sociedade, herança do poder soberano, que mantinha a hierarquia entre os gêneros, passa a conviver com uma nova maneira de poder, um poder disciplinar, mais coerente com a ideologia de liberdade, igualdade e autonomia do individualismo social em andamento. Tal poder se dispersa pelos múltiplos setores da cultura (mídia, publicidade, escola, empresa, etc) e subverte o permitido e o proibido, estimula o sexo e os prazeres e funda novas regras e normas de controle sobre a vida dos indivíduos. É este biopoder que vai lentamente invadir a vida privada familiar, oferecendo alternativas de cuidados “mais adequados e saudáveis” para seus membros. As normas e valores patriarcais  perdem sua potência na medida em que o indivíduo, enquanto corpo, passa a ser o objeto de novas estratégias políticas que visam proteger e melhorar as condições da vida de cada um. Novas normas e parâmetros são fixados, novas verdades e estilos de viver, aos quais os indivíduos precisam se ajustar para serem reconhecidos, aceitos e desejados.
Na intimidade da família nuclear, o amor se mantém como item importante na constituição e na regulação das relações entre os homens e as mulheres, mas também se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança e inaugura um prolongamento do ideal de amor e felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização da felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais à seus filhos sustenta-se nesta possibilidade de assisti-los transformarem-se na imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna.
Além da infância, o casamento entre o amor parental narcísico e o individualismo moderno produz outro fenômeno social importante, a adolescência, que surge no pós-guerra como depositária idealizada dos atributos de coragem, alegria e esperança e inaugura um tempo em que a felicidade, o prazer e a boa vida serão admitidos e depois incentivados, entre a infância e a idade adulta. (Calligaris, 2003)
Nascida no caldo cultural moderno, a psicanálise passa a desvendar este particular contexto familiar  e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos  das relações entre mãe,pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar ele possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de  obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo,que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente  para dar lugar  às infinitas condições a que  ela terá que se submeter mas  que tentará evitar. É neste  jogo amoroso singular que ela construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor incondicional imaginado permanecerá na aspiração  de um reencontro amoroso futuro. O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um ideal para o eu (Haddad, 2006). Sabemos o quanto ao longo do último século, a sociedade ocidental tornar-se-á militante do amor, cujo argumento revolverá normas, valores e leis.
À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções parentais  tornam-se  maiores e mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em que sua subjetividade se constitua e  cumprir  a função simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.
Embora esta célula familiar moderna assuma um papel primário na transmissão da cultura e das gerações, ela é ao mesmo tempo fonte de normalidade e das piores patologias, o que faz com que as  funções parentais se tornem cada vez mais alvo de cuidados públicos. Do ponto de vista social e ao longo do tempo, tais funções migram gradualmente do espaço privado ao público. Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família  se torna um centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas características e especificidades para criar todos os tipos de serviços, cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que auxiliem o desenvolvimento de seus membros.
Esta  passagem da função da parentalidade ao espaço público  acontece em concomitância ao desenvolvimento das ciências e outros saberes que passam a assumir parte  das funções de cuidados dos infantes e de leis que garantem à criança esta tutela ou cobram dos pais seus deveres e obrigações. Ao ser  invadida pelo olhar público, a estrutura familiar burguesa  revela seu avesso e sua fragilidade. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam corretivos, a psicanálise segue revelando seus descompassos. Por ser uma sociedade centrada na autoridade patriarcal, as leis de recato sexual tinham o objetivo de regulamentar principalmente  a vida erótica das mulheres já que qualquer exposição de  sua sensualidade era motivo de desconforto. Além de serem mães por “vocação natural”, seus desejos sexuais deveriam ser limitados pelas vicissitudes desta função. Ao escutar as histéricas, Freud desvenda uma subjetividade que não confirma tal “natureza feminina”.
O ideal de amor e  sexo não cessa de alimentar o imaginário cultural  e se mantém ansiado por homens e mulheres.Tal fato contribui para o surgimento de novas perspectivas para se questionar as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar o tema da sexualidade dos bastidores da vida humana. Entre outras coisas, a falsa moral burguesa escondia o medo e a preocupação cultural com a incapacidade dos homens gerenciarem o controle sobre seus impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente, começa a haver uma subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair por terra o instinto maternal e a raça feminina. O tabu da virgindade feminina (Freud, 1917) revela o temor de ambos os sexos em relação à passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. A  preocupação social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina para a procriação e para o casamento, era uma tentativa de evitar um excesso sexual perturbador e temido.  Acresce-se a isso a complexidade da relação dos homens com  a  figura da mãe-mulher,que no melhor dos casos, produzia uma separação entre a  mãe virgem e pura de um lado e a mulher sensual e sexuada de outro ( Freud,1912).
No plano do conhecimento humano, o século XIX  vivia  um embate entre o legado das tradições e as rupturas a estas que não cessavam de se suceder. Reinava o pensamento crítico, as idéias de progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e da ignorância pela  difusão da ciência e da cultura em geral. Tal efervescência gerava a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos, políticos e religiosos que pretendiam ora analisar ora criticar a convivência de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondessem aos alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucediam às antigas.
Por seu lado, a psicanálise  ampliava seus saberes sobre a construção de uma interioridade psíquica cujo personagem principal era a complexa e enigmática sexualidade  humana, com destaque para seu papel no interior da família, na constituição psíquica da criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O amor dos pais, tão reverenciado, precisava existir na justa medida entre os cuidados e a erotização do corpo infantil responsável pelo anseio de viver e ser amado, e  certas rupturas de um estado fusional e primitivo com a mãe, que o auxiliassem a entrar no mundo simbólico e partilhado da cultura, carregando o legado das aspirações parentais e das crenças, ideais e proibições vigentes no discurso social. Nasce o sujeito dividido entre o que ele quer, o que ele teme e o que a cultura lhe permite e oferece. O conflito entre a necessidade de amparo e amor e o anseio de separação e independência ocupa o centro da constituição desta subjetividade moderna, uma “subjetividade amorosa”.
No pensamento moderno deveria caber a cada indivíduo construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não dependeria mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em novos sentidos para a existência humana  que acenem com uma maior satisfação, prazer e conforto.  A conquista desta individualidade autônoma dentro do círculo doméstico começa a se dar à medida que o poder familiar vai se restringindo e os interesses pessoais aumentando em consonância com  uma exigência de simetria entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres vão ganhando espaço público e com o advento  dos métodos anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre , ao aborto e ao divórcio. Homens ou mulheres, cada um se  torna o único ou o principal  regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las. Sem as amarras  das  regras de aliança, homens, mulheres, homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados somente em escolhas amorosas e mantidos por acordos e negociações. Tal liberdade incide tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das relações quando estas  se mostram impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados.  
Muda a  realidade social,despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas. A formação dos pares conjugais  fica independente do sexo ou da  orientação sexual de cada um. Resultado de um movimento de desvencilhamento da tradição e das regras coercitivas sociais, ao manterem apenas o amor como  eixo central de suas  escolhas, estas novas parcerias inauguram uma nova ética e estética do convívio amoroso  e embarcam em uma aventura incerta. Com relações amorosas mais efêmeras  os indivíduos  passam a formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que altera a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos.
Os métodos anticoncepcionais e a biogenética rompem  a antiga junção casamento-sexo-procriação. A concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só tem o reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem uma função parental.
A partir dos novos casamentos que cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os núcleos familiares precisam  receber os filhos de um ou ambos os integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma criança pode  pertencer simultaneamente a mais de um grupo familiar e sua  circulação  entre eles  pode ser constante e organizada ou irregular e informal. Alguns núcleos formam redes em que convivem ex-cônjuges, antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.
A filiação passa a não ser mais definida pelos laços sanguíneos, legais ou residenciais e sim  por uma filiação social ou sócio-afetiva, fundando um grupo doméstico cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro ou de ambos. Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de parentalidade  depende apenas de um comprometimento. O lugar do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais legítimos nem por um homem e por uma mulher assim como a "função paterna" ou "função materna" não implicam a presença de um homem e de uma mulher.
As relações familiares se horizontalizam e provocam uma maior proximidade entre as gerações nos modos de existir, desconstruindo as antigas atribuições de poder e  autoridade. Ao se tornar preferencialmente uma tarefa amorosa, o exercício da função parental impõe uma nova forma de convivência entre pais e filhos. O bem-estar dos filhos se torna um ideal importante para seus pais. Mais atenciosos disponíveis e compreensíveis, o imperativo de amá-las que decorre da necessidade narcísica de vê-las felizes, provoca não só angústia e culpa se o sentimento de seu amor for insuficiente, como os enche de incertezas quanto ao seu papel de transmissor de valores e normas se significar frustrá-los. Qualquer obstáculo real ou imaginário que se oponha a este ideal de felicidade causa desconforto quanto às direções de sua tarefa educativa e a assunção da dessimetria de sua função parental. Por outro lado, o alto valor narcísico atribuído aos filhos cobra  seu preço nas expectativas de que estes sejam perfeitos e sem falhas. Muitas vezes por ocupar este lugar de espelho narcísico  e de produção de satisfação para os pais, os filhos  ficam sem um lugar de verdade, aquele em que cada um precisa buscar para si no mundo adulto, das leis e normas da sociedade em que vive.
O individualismo social promove indivíduos autônomos necessariamente narcísicos, diz Calligaris (1996). Sua consistência subjetiva, mais livre das obrigações simbólicas e sem o peso da  herança dos valores e tradições da família e da cultura, é fruto de contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros. O momento narcisista de sua constituição subjetiva, definido como a condição em que toma a si mesmo como objeto de amor  está vinculado a uma superestima parental. É ela que o faz especial, perfeito, belo, inteligente e desprovido de defeitos. Este amor do narcisismo parental, produto de suas aspirações não realizadas ( ideal do eu) será o responsável pela idealização que cada um fará de si mesmo- seu eu ideal. Instala-se um circuito amoroso em que o ideal de eu, enquanto instância narcisicamente investida e voltada para os futuros interesses no mundo e na cultura,  contém em sua origem o desejo de ser dos pais. É assim que o  ideal de eu torna-se o meio pelo qual os indivíduos se relacionam mutuamente em busca de aceitação, reconhecimento e proteção. A tarefa amorosa da subjetividade atual  se confunde com o esforço de cada um em coincidir com a imagem que possa satisfazer primeiramente aos pais e depois aos outros. Se cada um vive ansiando ser amado e admirado pelos outros, a cultura passa a oferecer dispositivos que  auxiliem a enfrentar a  precariedade da presença deste amor, já que as dores serão quase na sua totalidade, dores de amor. Assim como no plano subjetivo, busca-se saídas alternativas ao submetimento, à alienação ou à adição.
Não há dúvidas de que na cultura atual o amor se tornou o eixo central da vida e das escolhas dos indivíduos. Dos primórdios da psicanálise, quando Freud se deparava com uma cultura que cerceava o indivíduo, impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), até a sociedade atual que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e estimula a busca do prazer, o ideal de amor romântico ganhou novas roupagens. As formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade, fazem parte dos valores morais que na modernidade mantêm uma parceria exitosa com a literatura, o cinema e a música, os quais refletem e  produzem repertórios amorosos (conjugais ou familiares) e ajudam a compor o imaginário popular. Se  a literatura romântica da era burguesa exaltava o amor para evitar os excessos de uma sexualidade ainda enigmática, a incorporação do saber sobre o sexual contemporâneo separou amor e sexo, e manteve o amor despojado de sua idealização anterior, ainda que apostando no seu valor de felicidade. O conflito entre pulsões sexuais e repressão cultural que produzia sujeitos inibidos e recalcados dá lugar a sujeitos que buscam o prazer sem culpa, mas oscilam entre  potencia e  impotência diante dos múltiplos mandatos culturais a que se deparam e que anseiam cumprir para serem reconhecidos.
A fabricação do sujeito moderno está intimamente ligada à sua singularização, base e convicção do individualismo como ideologia. As muitas dimensões do individualismo que se configuraram na época atual questionaram todo e qualquer constrangimento social, com destaque especial para as questões sobre a sexualidade e a autoridade patriarcal. Na contemporaneidade a formação de pares conjugais e o exercício da tarefa parental  elegem o amor como principal e às vezes único critério. É o amor dos pais que produz uma confirmação narcisica , promove a erotização do corpo e “inventa” a criança perfeita, a qual por identificação constrói seu eu ideal. É este eu que ela vai amar que dará uma representação de quem  ela é e de quem é o outro. Por outro lado a  organização dos arranjos  familiares e a relação entre seus membros incorporou grande parte das descobertas feitas pela psicanálise neste século. Se como diz Foucault, é a subjetividade que se encarrega de interrogar os limites, os ideais e os restos que organizam as relações entre os indivíduos, talvez coubesse à psicanálise, que  analisou regiamente a subjetividade moderna do século anterior,  se desvencilhar de sua nostalgia e se autorizar a encarar as mudanças, não como escombros irremediáveis de um  modelo familiar idealizado, mas como novas possibilidades do viver humano.
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Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional sobre o Bebê : Nascimento-
Antes e Depois - Cuidados em Rede, realizado no Rio de Janeiro em maio de 2008




domingo, 11 de junho de 2017

Encontros amorosos: amor, paixão e desejo na cultura moderna

Encontros Amorosos: amor, paixão e desejo na cultura moderna
                                                                                     
                                                                                      Gisela Haddad

Resumo: O texto tenta refletir sobre as implicações das mudanças nas questões que giram em torno do amor e do sexo na constituição das uniões amorosas. Resgata de forma resumida as coordenadas históricas e culturais que organizaram a vida amorosa desde a modernidade e sua articulação com os mecanismos de construção de uma particular subjetividade. A literatura romântica oferece um retrato tanto da exaltação do amor e dos destinos trágicos das paixões como do debate inédito sobre o sexual humano, além de promover a construção de cenários de encontros, desencontros e experiências amorosas cujas sensações especiais e dores pungentes passam a colorir as fantasias humanas.
Palavras chave: amor, sexualidade, psicanálise, modernidade

                                                 O mais singular livro dos livros
                             É o Livro do Amor;
                                     Li-o com toda a atenção:
                                      Poucas folhas de alegrias,
                                        De dores cadernos inteiros...
                                  ...O insolúvel, quem o resolve?
                                                         Os amantes que tornam a encontrar-se
                                                                               Livro de Leitura, Goethe

Utilizada originalmente pelas ciências naturais para designar a atração entre dois elementos químicos diferentes, mas afins, a expressão afinidades eletivas foi o título escolhido por Goethe para coroar seu romance de 1809 - escrito quando já era um sexagenário- quiçá para tentar compreender por qual imperioso impulso dois seres buscam-se um ao outro, atraem-se, ligam-se e a seguir ressurgem dessa união íntima numa forma renovada e imprevista.
Goethe é considerado um ícone do romantismo, movimento que trazia como novidade o acolhimento das contradições e antíteses, e o fato de que nossas vidas não seriam ditadas somente pela razão, mas também pelo nosso estado d’alma. Na Alemanha em especial ganhava força uma vertente denominada Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) que rompia violentamente com conceitos e esquemas que regulavam as relações individuais e sociais, políticas e morais e repercutia profundamente na arte e na literatura ao proclamar a liberdade absoluta do artista.
Nesta Europa da era burguesa, final do século XVIII e início do século XIX, vivia-se um momento cultural turbulento, pleno de debates sobre as paixões terrenas (amor erótico) e elevadas (amor sublime). Juntamente com os valores modernos pós-revolução francesa, que pretendiam transpor as barreiras das diferenças de direitos entre homens e mulheres, das diferenças culturais, de raça e de religião e dos preconceitos sociais, o mito do amor romântico prometia atender às demandas de prazer e de felicidade humanas ao acenar com a possibilidade da junção casamento/amor/sexo e apostar que em algum lugar do futuro cada um viveria sua história de amor com alguém especial. Ao realizar uma síntese das paixões sexuais e amorosas e oferecer uma medida mista de enaltecimento do sentimento (amor) levado às alturas com a melhor das emoções (sexo) dentro do casamento, este amor verdadeiro passa a ser um destino pessoal almejado por homens e mulheres, que podem escolher seus parceiros por amor e construir roteiros, sensibilidades e aspirações amorosas inéditos. Surge um imaginário sociocultural diferenciado, uma dimensão humana de interioridade e uma subjetividade amorosa que tanto na sua dimensão trágica (impossibilidade) quanto dramática (ambivalência) toma um espaço central na vida dos dois sexos.  O estilo romântico da literatura oitocentista privilegia de forma inaugural estes anseios amorosos, inspirando uma nova maneira de existir humana, voltada para o conhecimento de si.  As historias de amor alimentam-se e são alimentadas em um circuito permanente por um repertório sempre renovável distribuído entre os romances. Verdadeiras ou fictícias, tais historias fascinam a todos e se perpetuam ao serem lidas e relidas, lembradas ou citadas.
Em Afinidades Eletivas, Goethe, no entanto, expunha a contingencia e a ambigüidade da moderna sina humana amor-desejo, responsável pelo pêndulo entre o imperativo de nossa natureza que solicita e deseja, o imperativo moral, que tanto pode nos constranger quanto nos dignificar e nossa ânsia de reconhecimento amoroso. Neste terreno arenoso, a razão sucumbia, como viria a constatar Freud, aos desígnios mais crus de nossas tendências pulsionais. Por questionar repetidamente a tão esperada fidelidade, o idealizado casamento e o significado do amor, as paixões inesperadas desconstruíam as expectativas de uma vida amorosa tranqüila e pacífica e revelavam a complexidade de nossos desejos.
Parte integrante deste mito amoroso, a sexualidade humana, por seu caráter disruptivo, havia se mantido durante grande parte da história ocidental como uma dimensão da vida que deveria ser acobertada, tendo como aval a ideologia judaico-cristã, que condenava a carne e silenciava suas paixões em proveito das coisas do espírito. Se a cultura de então incentivava certas condutas para o convívio amoroso entre os sujeitos, as paixões despertadas pelo desejo rompiam com a moral da época de Goethe, e tornavam trágica a busca pela realização amorosa romântica, que não podia suportar a invasão das forças da natureza responsáveis pela atração irrefreável entre as pessoas.
Na medida em que o tema da sexualidade se impunha interferindo nos modos como os indivíduos davam sentido e valor às suas condutas, aos seus deveres, prazeres e sentimentos, a moral sexual burguesa tentava abater a importância da ligação do sexo com o prazer. Os casamentos de então pretendiam civilizar as relações sexuais, restringindo-as à sua vigência e impondo limites à vida sexual de homens e mulheres (principalmente destas). Sabemos quão o ethos freudiano irá revelar o avesso da moral burguesa. Por ser via de acesso à vida do corpo e da espécie, o sexo adquiria um lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos, no intuito não só de focalizar a saúde dos indivíduos, mas de criar dispositivos e normas para o prazer sexual. Parte da literatura da época se ocupava em revelar tais disparidades através de narrativas que ora condenavam a sexualidade ao vício e à insanidade, ora exaltavam suas possibilidades de êxtases prazerosos. As histórias amorosas mantinham seu papel de fornecer pistas sobre o percurso do amor na cultura e as idiossincrasias da complexa ligação amor-sexo.
Grande parte da inquietação em torno da sexualidade dirigia-se às matizes do erotismo feminino que habitavam o imaginário masculino, considerado transbordante, excessivo e incontrolável. Se a literatura (quase que exclusivamente escrita por homens) denunciava esse misto de fascínio e medo, os discursos sociais se apressavam em adestrar o corpo e a sexualidade da mulher à procriação e ao casamento; qualquer desejo ou comportamento sexual que extravasasse esses limites era tratado como excesso, degeneração ou patologia. O amor romântico, embora acenasse com uma solução de controle da sexualidade feminina por meio do casamento, incitava a junção de duas figuras míticas, a santa e a prostituta, divisão que a cultura se ocupava em caucionar, diante da dificuldade masculina de enfrentar a figura da mulher-mãe assexuada (protótipo do primeiro amor de todos), e a figura da mulher sensual. Sexo e amor confirmavam sua difícil convivência pelo fascínio-medo da mulher sensual e da mãe cuidadora, cuja junção seria inadmissível em tal contexto histórico. Pode-se entender por que havia grande tolerância social aos homens infiéis, que, de certa forma, possibilitava a eles resguardar-se dessa atração proibida e inconsciente, vivendo o sexo de um lado e o amor de outro. Essa prática serviu para que a infidelidade masculina pudesse ser naturalizada e o adultério feminino condenado (chegando a ser considerado crime até algumas décadas atrás). Ao contrário do par de modelos opostos, a mulher sensual e mal vista ou a maternal bem aceita, aos homens a cultura reservava uma moral mais branda. Ainda assim, como revelava Goethe, as paixões inesperadas podiam surpreender a todos.
A ânsia pelo momento de êxtase máximo do ser humano – em que duas pessoas seriam bastante uma para a outra, não necessitando de mais nada no mundo, em uma espécie de consumação máxima da realização dos desejos – desencadeou um debate questionador sobre as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise inaugurou uma forma de decifração desse tumulto interior, percorreu seus caminhos e por meio de uma análise especial de suas mazelas, lançou novas questões, procurando elucidá-las. Para isso, empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente, sublinhou o papel do recalcamento, o lugar de fantasia do “sexual” e revelou um sujeito ao mesmo tempo livre e coagido por ela. Neste último século foram principalmente as mudanças em torno da sexualidade que se impuseram e afirmaram de forma inédita o direito de cada um ao prazer sexual. Estas mudanças interferiram sobremaneira na paisagem social e admitiram uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados, ainda que possam compor várias melodias. O enigmático se deslocou de nossa sexualidade para nossos desejos. O ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes e que hoje permeia as relações de todas as idades, abriu um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo entre os pares e por isso prevêem uma confluência de interesses e desejos continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou ambas as partes ou quando os pactos que as asseguravam se desfazem. O casamento deixou de ser uma instituição, tornando- se apenas uma formalidade, um modo de administrar as expectativas de laços conjugais mais duráveis. Os novos parceiros se formam em regime de simetria e, como cada um é o único legislador de sua relação amorosa, precisa negociar constantemente com o par, investindo nele, se o objetivo de ambos for prolongar o relacionamento.
Na época de Goethe, a tarefa de encontrar uma acomodação feliz entre as reivindicações individuais e culturais indicava a necessidade de internalizar a repressão social dos sentimentos destrutivos e dos desejos sexuais temidos, que deveriam se transformar em uma consciência moral vinculada à culpa. Hoje a pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos conflitos a serem administrados para que possamos validar a diversidade de nossas opções. Mantém-se a procura por realizações sentimentais e satisfações sensoriais, mas a liberdade sexual que hoje se usufrui, impensável mesmo há três ou quatro décadas atrás, incentiva a  busca e não condena mais o prazer físico. Estamos, sob este ponto de vista, mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos, sensual e eroticamente emancipados.
O remanejamento dos antigos códigos de convivência amorosa também assegurou uma liberdade maior a cada indivíduo, que hoje pode escolher, entre um leque amplo de opções, aquilo que mais se afina com seus gostos ou estilo de viver; mas não tem sido fácil para a grande maioria fazer o luto do ideal de amor romântico, habitante velado ou declarado do íntimo de cada um. Talvez porque as dores provocadas pela luta entre a manutenção deste anseio romântico e todos os sentimentos que o acompanham - como o medo da perda, do abandono ou da traição - sejam reminiscências do romance infantil vivido por cada um em seu seio familiar. A psicanálise, que no ultimo século ajudou a desvendar esse modelo de contexto familiar e a complexidade das subjetividades de seus membros, revelou não só os bastidores conflituosos das relações entre mãe, pai, filhos e filhas, mas o lugar privilegiado das funções (amorosas) parentais na constituição do psiquismo humano. O amor incondicional imaginado durante os cuidados e acolhimento dos primeiros anos de vida transformaria cada um em Narciso e marcaria um destino de busca para ser amado e admirado. Recuperar esta imagem de centro do mundo e de todas as atenções confunde-se com a promessa do romantismo amoroso, que assim parece legitimar a expectativa de  satisfação sexual e sentimental e a busca de  um parceiro (a) que devolva este olhar que se espera poder amparar e confortar.  Vivemos em um circuito amoroso que se repete indefinidamente. O amor que esperamos ter recebido de nossos pais na infância moldará aquele que nutrimos por nós mesmos. Este, por sua vez, fará com que busquemos, no outro que iremos eleger, o mesmo reconhecimento e valor do amor. Espera-se que possamos encontrar maneiras de nos amar mesmo quando não fomos tão amados quanto gostaríamos, e quem sabe buscar por meio de nossas escolhas o amor que queríamos ter recebido.
Não por acaso são inúmeras as produções culturais que alimentam a ideia de que a vida não tem sentido se não encontrarmos nosso par amoroso, o que torna as escolhas amorosas o centro nervoso da relação que temos com nossos eleitos. De certa maneira, repetimos indefinidamente esta busca e tentamos responder aos enigmas das afinidades eletivas. Como nos apaixonamos? O que faz com que nos sintamos atraídos amorosa e sexualmente por alguém? Porque experimentamos uma aceleração de nossos batimentos cardíacos, um suar frio, às vezes um rubor ou uma inesperada inibição diante de alguém?  
Na visão psicanalítica, estamos sempre buscando as condições infantis de amar, tentando reconhecer no outro os traços de nossas relações com nossos pais, seguindo nossos registros inconscientes de prazer. Escolhemos nossos parceiros em função das experiências de vida, marcas de prazer e de desprazer, modos de sentir o outro ou de interpretar a busca de satisfação. A biografia amorosa contém a memória do corpo erotizado, assim como as maneiras singulares de desejar reconhecimento e amor do outro. Pode ser um traço particular – ou um conjunto deles – que para cada um terá uma função determinante nesta escolha. Algo próprio, que se relacione com sua história singular e íntima, sempre atravessada por fantasias e pelos ideais que o eleito representa como veículo de satisfação.
Em geral, quando o amor bate à porta sem avisar, e a sua presença se impõe prescindindo de definições ou apresentações prévias, estamos diante da paixão. Considerada o auge do sentimento de amor, a fronteira entre nós e o outro ameaça desaparecer e contra todas as provas de nossos sentidos, declaramos que somos praticamente um só, fazendo disso um fato. A experiência da paixão é a de um amor ideal: colocamos o eleito no lugar do nosso próprio eu idealizado e não podemos mais distingui-lo de nós mesmos. Apagam-se as diferenças e tem-se a sensação de nada faltar, uma captura narcísica inconsciente em que vemos no outro o que somos, o que fomos ou o que gostaríamos de ser ou possuir. Não só temos a convicção de que o outro pode sanar a nossa falta como também a de que nós temos aquilo que lhe falta. Imaginamo-nos capazes de oferecer-lhe todo o prazer sem jamais sermos fonte de sofrimento. Um é necessário e vital para a sobrevivência do outro, não havendo possibilidade de pensar ou desejar algo que não lhe seja voltado; as divergências são ameaçadoras e a exigência de exclusividade é exorbitante. Vivemos tal e qual uma relação aditiva e alienada. O amor-paixão busca essa complementaridade; amamos para ser amados.
Mas nossas parcerias românticas, construídas na promessa da incondicionalidade, exclusividade e felicidade, não possuem garantias. Quando amamos, ficamos desprotegidos contra o sofrimento, mais à mercê do outro e expostos a dores extremas se rejeitados, traídos ou abandonados. Território-limite entre nós e um outro, a experiência amorosa é fonte dos conflitos mais humanos, que gravitam entre o amor e o ódio, o domínio e a subjugação, o desejo e a indiferença, a rivalidade e a generosidade. Na medida em que se ama, é impossível não correr os riscos da perda e seus desdobramentos em termos de sofrimento.
As mudanças na cultura atual em torno de uma sexualidade mais livre não nos isentam das dores do amor, ao contrário, apenas nos fazem construir novas defesas contra elas. Transgressiva, ela mantém seus traços infantis de perversa, por explorar, exagerar e exceder os diferentes modos de satisfação, e polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis. Cada par tenta fazer acordos que possam regular o prazer, o gozo e o sofrimento que suas relações amorosas e sexuais demandam, tendo como pano de fundo, o anseio de que o eleito possa significar o fim desta busca incessante e o conforto do amor incondicional. A despeito desta aposta, as infidelidades rondam as dissoluções e questionam repetidamente a contabilidade conjugal. Na exclusividade pretendida por ambos os parceiros e caucionada pelo imaginário cultural, ressoa a imposição infantil poderosa a qual a maioria dos sujeitos resiste a renunciar, independente de sexos ou gêneros. Nada é mais gratificante do que a ilusão de possuir a fonte do amor incondicional; nada é mais terrível do que perdê-la.
Sabemos que, no terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a ambigüidade e a dúvida. Resta-nos construir caminhos em que o jogo narcísico que nos constitui e reúne, também possa  inventar uma ética amorosa para nossas condutas. Pode-se dizer que as afinidades eletivas nestes dois séculos que nos separam de Goethe, mantêm este dilema entre nosso ideal subjetivo e os ideais sociais, mas nossas dores e temores estão mais ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.
Ao que parece, as inúmeras opções que nosso mundo contemporâneo produz no intuito de nos oferecer felicidade continuam ganhando mais sentido se vividas junto a um  parceiro amoroso. O amor mostra como precisamos desse lugar, ainda que imaginário, em que solicitamos do outro que nos responda sobre nossa importância. Mais do que tudo, almejamos ser especiais.
   
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Gisela Haddad é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É autora do livro Amor e Fidelidade (Coleção Psicanalítica, Casa do Psicólogo - 2009)  e Amor (Coleção Emoções, Editora Duetto – 2010).