segunda-feira, 6 de abril de 2020

Cenas de um próximo filme (ou Os sons da dor)


Cenas de um próximo filme (ou Os sons da dor)

Gisela Haddad

Mel não conseguia suportar aquela sensação de vazio. Estaria condenada ao fracasso? Há dois anos sua produção artística zerara. Incomodava lhe o fato de suas lembranças surgirem fragmentadas e de imediato culpava sua fraca memória, embora este argumento não se sustentasse. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, evitava trazer à tona as passagens tristes que lhe arrancaram a alma. Ainda assim, não se decidia a levar adiante esta inquietante constatação. Parecia-lhe doída demais.
Acabara de ler o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, contava o quão se debatia com os entrecortes de sua memória, dificuldade que lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, fossem cartas, bilhetes ou cadernos, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças, infelizmente uma sensação efêmera. Seguia aflito como se vivesse em mundos paralelos, ora sendo um, ora outro, o que lhe causava uma estranheza exasperadora. Seu primeiro e até então único livro, no entanto, fizera muito sucesso, mas com ele as aflitivas entrevistas, em que era invariavelmente questionado sobre os caminhos de sua inspiração. O mal estar era tal que se viu obrigado a vasculhar o motor que movia sua necessidade de escrever. Sabia ser-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade, escrever, que agora (oh céus) se tornara ferramenta de trabalho, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. A escrita era este outro ele mesmo que como um interlocutor silencioso, lhe possibilitava “falar” qualquer coisa sem censura e assim, de tempos em tempos, quando se permitia (e conseguia) voltar a ler seus textos, por vezes tinha a oportunidade de traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. E se esta leitura podia ser motivo de júbilo, em geral causava-lhe dores n’alma, às vezes ressoando pelo corpo. E se fossem elas, as dores, as responsáveis pelos seus inúmeros momentos de paralização que lhe transportavam para o vazio?
Mel ficara impactada com este depoimento. Parecia-lhe familiar, pensava em suas dores e o ar parecia lhe faltar. Demorara a se considerar uma artista com algum valor. Temia que sua arte vagasse em um espaço sem sentidos definidos. Criava seus roteiros aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-los em seguida como a poderem ser guardados em algum arquivo imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se esta simples tarefa outrora lhe trouxera conforto, no momento só havia espaço para as dúvidas. Precisava, tal como aquele escritor, achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse este fio que a costurasse à sua história. Estes pensamentos a perturbavam já que o contrário, ou seja, construir a história de sua arte parecia-lhe o caminho para entender a sua própria. À medida que seu pensamento seguia livre, sentia sua respiração ficar mais ofegante. E se sua arte sempre fora uma espécie de imposição dos vãos de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na linha do tempo? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma?
Foi socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores/críticos que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolheriam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas (pré) visões. Sim, respirou aliviada, sua arte era parte importante de sua história, mas a transcendia.
Mel pressentia, no entanto, que mordera a isca e não havia mais volta. Precisava tornar compreensível a si mesma (e quiçá aos admiradores de sua arte) seus modos de sofrer, suas dores e amores. Quantas e tantas vezes ouvira elogios de seus amigos a certos livros que falavam ao ponto mais íntimo de nós, auxiliando-nos na construção de nosso imaginário ao inserir palavras, histórias ou situações que não se poderia formular sozinho. Livros que deixam suas marcas. Não lhe era muito claro o papel da literatura para a sua vida, mas era certo que algumas leituras teriam aberto horizontes, despertando-a para universos desconhecidos e inimagináveis. Se alguns podiam reconhecer seus próprios desejos desde muito cedo, nomeando-os e perseguindo-os, ela não pertencia a este grupo. Porém esses livros haviam lhe mostrado que o “mundo” (aquele composto pelo acervo cultural humano) deveria ser muito maior do que o que lhe era dado conhecer. Podia reconhecer em si esse longínquo desejo de conhecer o máximo que pudesse sobre ele. Como isso a acalmava! Dava-lhe uma sensação de destino. De vida vivida.
Mas durava pouco. Bastava uma noite de insônia e o vazio a invadia novamente, como se o dia seguinte não existisse mais. O cérebro pensante e o coração pulsante ficavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angústia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças.
Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar, e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 12 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narrassem este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores das perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo.
Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois destes anos juntos, a vida a dois ficara quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre grudados ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou lhes causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se ficariam parecidos com aquela senhorinha gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.
Desconfiava que quase todos fossem reféns do amor nessa incessante (e impossível) viagem para ser único e especial para alguém. Essa possibilidade imaginária funcionaria legal ao proporcionar uma visão de vida, ao oferecer alguma remissão e um significado à existência. Seriam poucos os que não se declarariam dependentes de um olhar amoroso, de poder contar com um outro que respondesse sobre sua importância. Uma aposta alta e por isso sempre acompanhada do medo do não, do abandono ou da traição. Terrível paradoxo! Habitar esta terra do romance que permite que se construam pontes e acessos imaginários para a “posse” completa do outro. Ao contrário, ela sabia que era às duras penas que se conseguia ajustar o olhar às cores pastéis do amor para poder trocar o verbo “precisar” do amor do outro, e inventar tantos outros verbos em que se corre o risco de não ser amado ou de ser amado de forma diferente do que se quer. Só assim é possível localizá-lo nos pequenos detalhes, nas trocas de olhares, nos pactos, nos sorrisos, na antecipação de certos desejos, na cumplicidade com as fragilidades, enfim, na responsabilidade com os cuidados e afetos que cada um (por sua conta e risco) se compromete a assumir. Nem um mar de alegrias sem fim, nem um lago escuro e gelado em que só habitem feras hostis. Para ela uma razão para viver. “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?” – Mel gostava de cantarolar esta frase do Renato Russo. Perfeita!
Agora se sentia refém da dor. A vida estaria lhe dando uma chance ou lhe punindo? Ora se entregava à dor insuportável da perda desta experiência tão rica, ora Pedro parecia lhe acenar para que ela voltasse à superfície. Sua “presença” ainda lhe salvava.
Lembrou-se quando mudara para o Rio de Janeiro atrás de seus sonhos e sim... Podia dizer sem titubear que muitos deles se realizaram. Conseguira cavar um lugar no mundo incerto do jornalismo. Depois o cinema – sua grande paixão – com a carreira de roteirista, algo que imaginara desde a sua infância, quando “dirigia” a turma da rua improvisando cenários e vestimentas. Que sensação gostosa se lembrar dos roteiros que escrevera ainda menina, das reuniões sempre tumultuadas para a escolha dos atores principais. Tivera que criar uma estratégia para evitar os conflitos advindos dos ciúmes e das rivalidades, e assim proporcionar maior legitimidade aos eleitos. Os “estúdios” de seu Cinemoção ficavam no enorme quintal de sua casa e seus pais jamais se opuseram, ao contrário, até palpitavam e algumas vezes ajudavam na composição dos cenários e nos figurinos. Sua mãe, ah... Que saudades daquele olhar interessado, investido de energia. Sua paixão pela vida a alimentara e a movera o tempo todo. Um legado.
Pensou em Pedro e de como ele admirava nela esta mesma ligação apaixonada com a vida, uma estrada aberta para acolher as possibilidades de prazeres diversos. Mas agora que ele se fora, anoitecera. O dia não amanhecia. Perdera para sempre seu olhar devoto, amoroso, que tanto alimentara sua coragem, seus projetos, sua vida.
Não encontrava palavras para descrever sua dor. Ainda não. Ela lhe ultrapassava. As cenas evocadas pela memória ora traziam Pedro ora sua mãe, que se fora lentamente antes de morrer, durante o calvário do Alzeimer, aquele que rompe os fios da memória deixando todos atônitos. Consultas ao Google, aos neurocientistas, aos familiares de outros atingidos por esta doença não puderam responder a pergunta que insistia: por quê? Como é possível que ainda saudável, resultados de exames conferindo-lhe saúde de uma jovem, sua mãe houvesse abandonado sua bem instalada identidade, sua mais valiosa moradia, para aos poucos ficar sem lugar, sem história, em um caminho sem volta até perder-se de si mesma? Tinha sido dramático estar ao seu lado, ao lado daquele corpo tão conhecido e tão querido e perceber que em algum lugar dele havia um “ralo” sugador de histórias recentes e passadas, das quais ela se sentia parte. História de uma mulher e mãe tão sabida, centro nervoso da casa, daquelas que levavam a palavra aonde ainda não existia. Que sabia tecer devagarinho as asas de seus filhos e separar-se deles na hora certa. Todos puderam voar, talvez porque supunham que ela estaria sempre ali para recebê-los, atender seus telefonemas a qualquer hora e dia (oh céus, como isso fazia diferença). Era óbvio que não havia se preparado para perder sua mãe. E agora Pedro.
Pensou nos inúmeros filmes baseados nas memórias de dores, mas de descobertas de alguém, histórias que fazem chorar, arrepiar e acelerar os corações! Ali, em silêncio, Mel imaginou a cena de um filme futuro, em que as duas, mãe e filha, conversariam sobre a dor da morte dela e de Pedro. E sua mãe a lhe garantir a possibilidade de inventar novos laços para ocupar o lugar dos perdidos. A impedir que sua memória-história se perdesse e com ela a sua paixão pela vida e seus roteiros.



Gisela Haddad é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância, do Grupo Generidades, da equipe editorial da Revista Percurso e do Blog do Departamento. É mestre em Psicologia Clínica e autora do livro Amor e Fidelidade, Coleção Clínica Psicanalítica da Casa do Psicólogo (2009).

Gisela Haddad foi irmã-mãe de seis, é mãe sortuda de duas pérolas e avó de um pedacinho de diamante. Faz muitas viagens pelas letras, pelas comidas e pelas estradas, sempre atenta às novas possibilidades de se articular o belo ao amoroso e ao genial. É aflita e agita-se muito, mas às vezes adormece e sonha.

Texto originalmente publicado no livro "Perche mi piace - a vida com elas" organizado por Maria Leticia Oliveira Reis ( Calligraphie Editora 2018)  


segunda-feira, 23 de março de 2020

Simples reciclagens




SIMPLES RECICLAGENS[1]

GISELA HADDAD[2]


Garrido arqueou as sobrancelhas para expressar sua conclusão: se o Brasil era campeão em reciclagem de latinhas de cervejas, que tal reciclar pessoas? Um negro de cinquenta e poucos anos, olhar penetrante, coração aberto, Garrido falava para uma pequena platéia composta de profissionais da área psi, sobre seu projeto de recuperação e “reciclagem” de pessoas. Sendo ex-boxeador, há alguns anos atrás, abril de 2004, parecia que seu sonho se realizaria. Depois de anos treinando o filho Fabio batendo em geladeiras, pneus e surdinas de caminhão pendurados na academia da família - Vila Ré, Zona Leste da cidade de São Paulo - este iria enfrentar o então campeão em uma luta que valia o título brasileiro dos meio-pesados pela Confederação Brasileira de Boxe. Mas foi duramente nocauteado e, além de ficar entre a vida e a morte, sua carreira (e com isso o sonho de um lugar especial) ficara abortada pela contusão cerebral que sofrera.

Tempos depois, trabalhando como segurança no centro de São Paulo, ao ver crianças cheirando cola e fumando crack, Garrido resolveu trazer a ideia da geladeira velha, os restos de carros/ pneus usados e algumas pedras para baixo de um viaduto, improvisar uma academia de boxe e oferecer - a quem quisesse - um espaço para treinar. Logo a idéia cresceu e o antigo espaço sob o Viaduto do Café, local de tráfico de drogas e de desabrigados, tornou-se referência no bairro do Bexiga, atraindo moradores e até empresários que se sensibilizaram com a “paixão” com que Garrido se dedicava ao resgate de qualquer pessoa em vulnerabilidade social, desde crianças de rua, ex-detentos, meninos recém-saídos da Febem, catadores de lixos, moradores de rua, etc.

Em meio ao pensamento contemporâneo marcado pelo ceticismo e pelo individualismo, ouvir alguém falar de forma ao mesmo tempo despretensiosa e apaixonada sobre as possibilidades de se abrir ao outro, mesmo em face às mais pungentes adversidades, é no mínimo alentador. A maioria dos que o assistiam  se surpreendia pela forma simples com que ele afirmava o resgate de pessoas totalmente excluídas da rede social. Parecia mal se dar conta da potência de seus projetos pessoais e da aposta sensível na resposta positiva de seus investimentos no outro, mesmo com todas as evidências de falência. Paradoxalmente o boxe acenava com um destino para a violência, uma violência submetida às regras, à disciplina e, portanto capaz de gerar vida e ajudar na criação da realidade compartilhada.

Já se vão seis anos e Garrido continua com sua “garra”. Seu projeto cresceu, ganhou a parceria da amiga Cora Batista, que há anos trabalhava com assistência social às mulheres, e chega à terceira ponte (no bairro de São Miguel Paulista) transformada em espaço para os moradores pobres locais ou para quem se interessar por “novas oportunidades, disciplina, e autoestima”, segundo suas palavras. O Cora Garrido Boxe ou o Projeto Viver continua transformando alguns que vivem assujeitados pelo medo, pela violência, pela falta de oportunidades, ao oferecer uma brecha de acesso à vida, uma “reciclagem” do desejo que permite a construção de um sentido, em um clima de trocas e solidariedade. Garrido leva a mesma “palavra” aos seus pupilos, incitando-os a manterem seus espíritos abertos à multidão dos excluídos, marginalizados, pobres em geral. Algo como a construção da tal responsabilidade social. Sua frase preferida é a que reafirma sua aposta: transformar “pessoas em seres humanos”, “reciclá-las”. Mas a que mais toca é a que  diz que isto é simples, muito simples, basta querer fazer. Resta apostar.

Para conferir:
Cora Garrido Boxe (Projeto Viver)
Rua Santo Antônio, 821 - Bela Vista - São Paulo – SP




[1] Originalmente publicado no jornal A cidade de Ribeirão Preto, de 20 de outubro de 2010.
[2] Gisela Haddad é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

LIBERDADE, SEXUALIDADE E VISIBILIDADE










LIBERDADE, SEXUALIDADE E VISIBILIDADE

                                                   GISELA HADDAD[1]


Uma reportagem de uma edição recente da Revista Época[2] chamou a atenção para o fato de, com diferentes motivos, mulheres comuns estarem tirando suas roupas e mostrando sua nudez. Algumas, para presentear maridos ou namorados com ensaios de fotos sensuais feitas em estúdios de fotografia; outras, para estampar calendários cuja venda contribuiria para angariar fundos para alguma causa social. Ou ainda aquelas mães de família americanas que, sem motivos aparentes, teriam respondido ao apelo de um site para serem fotografadas nuas em alguma atividade banal, como ao jogar pôquer.

Teria o mundo se transformado em uma grande vitrine e somente quem conseguir certa visibilidade (seja lá a qual preço) pode se sentir parte dele? A liberdade sexual alcançada nas últimas décadas pelas mulheres estaria incentivando-as a “assumirem” sua sensualidade sem constrangimentos? Seria mais fácil hoje para qualquer mulher viver sua fantasia (antes inadmissível) de ser parte integrante do imaginário erótico masculino? Por que, diante de tanta liberdade para escolhermos estilos de vida sexual e modos inusitados de gerenciar nossos corpos, a exibição destes nos parece tão sedutora?
Refletir sobre esta composição entre Liberdade, Sexualidade e Visibilidade requer uma pequena e não tão simples revisão do percurso da cultura - este complexo patrimônio simbólico produzido por nós mesmos - sem deixar de lado a relação entre imagem, conhecimento e subjetividade, e o fato de as mudanças em alguns valores, que antes demoravam mais de uma geração, hoje nos atropelarem com novas e inusitadas questões.

Dentre estas desconstruções radicais de antigas crenças e modos de existência, estão tanto a maneira de viver a nossa sexualidade (homens e mulheres), incluindo aí os contornos e limites de nosso corpo erótico (principalmente para as mulheres), quanto a midiatização de nosso cotidiano, lembrando o quanto a publicidade se apropriou de imagens eróticas femininas para agregar valor às mercadorias.

Freud foi um dos teóricos mais sensíveis ao papel que a sexualidade humana teria na produção de cultura e, percebendo seu caráter disruptivo, apontou a importância de sua regulação para um gerenciamento da convivência entre nós. Para cada época existem comportamentos que são incentivados e aprovados e outros que são desestimulados e condenados. Nosso apetite sexual já foi encarado como uma alquimia de feiticeiras e bruxas prontas a exercer as tentações que culminariam com a perdição da alma humana, mas estão longe de nós os dias em que o sexo e a sexualidade humana eram assunto tabu. Eles hoje fazem parte integrante de uma ciência que se preocupa em nos informar sobre como bem vivê-los.

Mas é justamente por falhar repetidamente em se conformar às normas e restrições da cultura que a regulam, que a sexualidade humana manteve-se durante grande parte de nossa história como um tema a ser pouco veiculado.

Isto foi particularmente mais verdadeiro em relação à sexualidade feminina, abafada sob diferentes justificativas, fosse pela ideologia judaico-cristã que nos guiou durante séculos e exaltava um modelo de mulher assexuada, fosse porque coube aos homens, durante um longo período, gerenciar a distribuição de prazer (e de poder) da cultura, tomando para si a parte majoritária. Com isso, as mulheres viveram muito tempo entre dois modelos, o da santa (todas as “mães” puras) e o da prostituta (todas as mulheres que exalassem sensualidade), ambos gravitando em torno de uma lógica masculina de compreensão do feminino, fantasia que ainda prende homens e mulheres. O recato (cobrir as partes do corpo que pudessem lembrar qualquer sinal de êxtase) foi por muito tempo uma norma imperativa, que visava acalmar as pulsões eróticas das mulheres, assim como os temores masculinos de uma sexualidade feminina ilimitada. Paradoxalmente este recato como regra abriu a possibilidade para que cada pedaço do corpo feminino pudesse se transformar em fetiche para os olhos desejosos dos homens (vide o longevo sucesso das revistas com poses sensuais ou com nudez parcial, voltadas para o consumo, principalmente masculino). Hoje não só a mulher foi sensualizada e está eroticamente emancipada, como a corporeidade de ambos os sexos ganhou um vulto nunca antes alcançado em termos de visibilidade e espaço na vida social.

Mas, se é verdade que um certo excesso do “erótico” pode funcionar como uma forma de se opor ao longo período de censura e repressão à sexualidade feminina, também é verdade que a mídia contemporânea incentiva a cultura atual da exaltação do corpo e da imagem. Esta passagem do recato à visibilidade não é gratuita. Vivemos em sociedades cada vez mais complexas em que o excesso de imagens exige-nos a tarefa permanente de traduzir e discernir este “a mais”. Há uma articulação constante entre a prevalência de imagens, a circulação de informações e estímulos velozes e simultâneos e a produção e consumo de narrativas. Sabemos que a imagem nos constitui e dela nos apossamos em um constante movimento de subjetivação para nos apresentarmos, nos comunicarmos, seduzirmos e sermos seduzidos. Se hoje dependemos muito mais do olhar de reconhecimento dos outros sobre nós para afirmar e reafirmar nossa existência e nosso valor, a mídia se alimenta de nosso interesse e nos acena o tempo todo com a possibilidade de alguns minutos de fama, motor da espetacularização da vida social.

Ficamos diante desta tênue fronteira que a lógica do consumo e do espetáculo impõe à Ética e que descortina ao menos dois fatos da atualidade:

1- Cabe à cultura conciliar uma civilização mais erótica e ao mesmo tempo mais livre e mais justa, sem que isto se confunda com fundamentos moralistas de comportamento sexual;
2- Cabe a cada um o gerenciamento da exposição de sua imagem, incluída aí  a difícil administração dos apelos sedutores aos minutos de fama, cada vez mais acessíveis, e muitas vezes alimentando nossa sede de amor.

Difícil tarefa.


[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Semana de 18/02/2010.

Afinidades Eletivas


AFINIDADES ELETIVAS
GISELA HADDAD[1]
Utilizada originalmente pelas ciências naturais para designar a atração entre dois elementos químicos diferentes, mas afins, a expressão afinidades eletivas ficou mais conhecida por dar título a um romance de Goethe, bastante reproduzido no último século, tanto no cinema quanto em peças teatrais. Escrito em 1809 quando o autor já era um sexagenário, é possível que tal título tivesse a intenção de capturar a moderna sina humana amor-desejo, responsável pelo pêndulo entre o imperativo de nossa natureza que solicita e deseja, o imperativo moral, que tanto pode nos constranger quanto nos dignificar e nossa ânsia de reconhecimento amoroso. É fato que, por questionar repetidamente a tão esperada fidelidade, o idealizado casamento e o significado do amor, as paixões inesperadas desconstruiriam as  expectativas de uma vida amorosa tranqüila e pacífica e marcariam a complexidade de nossos desejos.
Goethe é considerado um ícone do romantismo alemão, movimento que trazia como novidade o acolhimento das contradições e antíteses, e o fato de que nossas vidas não seriam ditadas somente pela razão, mas também pelo nosso estado d’alma. Afinal a razão, a luz com a qual poderíamos contar em nosso percurso moderno sem garantias transcendentais, sucumbiria, como nos ensinou Freud, aos desígnios mais crus de nossas tendências pulsionais.
O mito do amor romântico pretendia embarcar nas políticas de felicidade que a modernidade prometia produzir, ao apostar que em algum lugar do futuro cada um viveria sua história de amor com alguém especial. Este ideal de amor romântico, o amor verdadeiro, aquele cuja função deveria ser promover a junção sexo, amor e casamento, surge juntamente com os valores modernos pós-revolução francesa, que pretendiam transpor as barreiras das diferenças de direitos entre homens e mulheres, das diferenças culturais, de raça e de religião, dos preconceitos sociais, etc. Foi a partir daí que homens e mulheres passaram a escolher seus parceiros por amor, a construir roteiros, sensibilidades e aspirações amorosas diferentes, inspirando e ao mesmo tempo se alimentando de um vasto repertório de amor distribuído entre os romances, filmes, peças de teatro, novelas ou letras de músicas.
Desde então, verdadeiras ou fictícias, as histórias de amor passaram a fascinar a todos e se perpetuaram através do tempo ao serem lidas e relidas, assistidas, lembradas ou citadas. Parte integrante deste mito amoroso, a sexualidade humana, por seu caráter disruptivo, manteve-se durante grande parte da história ocidental como uma dimensão de nossas vidas que deveria ser acobertada, tendo como aval a ideologia judaico-cristã, que condenava a carne e rejeitava suas paixões em proveito das coisas do espírito. Sabemos que a cultura de cada época delimita as possibilidades e impossibilidades, incentiva certas condutas e interdita outras para o convívio entre os humanos. As paixões despertadas pelo desejo rompiam com a moral da época de Goethe, e tornavam trágica a busca pela realização amorosa romântica, que não podia suportar a invasão das forças da natureza responsáveis pela atração irrefreável entre as pessoas.
Continuamos a buscar realizações sentimentais e satisfações sensoriais, mas a liberdade sexual que hoje usufruímos, impensável mesmo há três ou quatro décadas atrás, incentiva a  busca e não condena mais o prazer físico. Estamos, sob este ponto de vista, mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos. A partir da década de sessenta, nossa  revolução sexual impôs reposicionamentos sociais e redefinições dos papéis sexuais, o que  repercutiu de forma decisiva nas relações homem/mulher e sobretudo nas relações amorosas entre os jovens, que começaram a ver e a viver a sexualidade de forma totalmente diversa. O advento da pílula anticoncepcional e a liberação do aborto em diversos países ocidentais permitiram aos jovens morar juntos, ter relações sexuais fora de uma conjugalidade mais séria, separar-se quando não havia mais motivos para se estar juntos, e assumir suas preferências sexuais mesmo quando estas não pertenciam ao modo tradicional das relações heterossexuais.
Estas mudanças que hoje já estão mais digeridas pela cultura ocidental, mudaram sobremaneira  a paisagem social e admitiram uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados, ainda que possam compor várias melodias. O enigmático se deslocou de nossa sexualidade para nossos desejos. O ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes e que hoje permeia as relações de todas as idades, abriu um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que  predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo entre os pares e por isso prevêem uma confluência de interesses e desejos continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou ambas as partes.
É fato que o remanejamento dos antigos códigos de convivência amorosa assegura uma liberdade maior a cada indivíduo, que hoje pode escolher, entre um leque amplo de opções, aquilo que mais se afina com seus gostos ou estilo de viver; mas não tem sido fácil para a grande maioria fazer o luto do ideal de amor romântico, habitante velado ou declarado do íntimo de cada um. Talvez porque as dores provocadas pela luta entre a manutenção deste anseio romântico e todos os sentimentos que o acompanham - como o medo da perda, do abandono ou da traição - sejam reminiscências do romance infantil vivido por cada um em seu seio familiar. O amor incondicional imaginado durante os cuidados e acolhimento  dos primeiros anos de vida transformaria cada um em Narciso e marcaria um destino de busca para ser amado e admirado. Recuperar esta imagem de centro do mundo e de todas as atenções confunde-se com a promessa do romantismo amoroso, que assim parece legitimar a expectativa de  satisfação sexual e sentimental e a busca de  um parceiro (a) que nos devolva este olhar que esperamos poder nos amparar e confortar.
Se, por um lado, radicalizamos nossa autonomia e nossa liberdade para escolher e viver nossa vida amorosa, desconstruindo os antigos códigos e referências, aumentamos nossas incertezas e  nossa dependência de um olhar amoroso, o que nos torna vulneráveis aos fracassos e ao sentimento de impotência. O sucesso ansiado de nossa vida amorosa passa a depender de um investimento infinito das partes envolvidas, mas principalmente da possibilidade de cada uma destas partes atribuir ao outro uma individualidade (ou alteridade) a ser respeitada. O que mantém este anseio, a despeito da obsolescência do ideal romântico, é o fato de se considerar a vida amorosa como um dos poucos espaços que empresta a cada um o sentimento de pertencimento, de não se estar só, de poder dar um sentido para a vida e para a morte. Através dela é possível  temperar nossa existência com pitadas de fantasias e transformar a banalidade do cotidiano em um teatro de magias. Ela também pode nos incentivar a inventarmos novas maneiras de ser, mais próximas do que imaginamos que o outro queira que sejamos, ou ainda apostar que podemos ser melhores e mais amáveis.
Na época de Goethe, a tarefa de encontrar uma acomodação feliz entre as reivindicações individuais e culturais indicava a necessidade de internalizar a repressão social dos sentimentos destrutivos e dos desejos sexuais temidos, que deveriam se transformar em uma consciência moral vinculada à culpa. Hoje a pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos conflitos a serem administrados para que possamos validar a diversidade de nossas opções.
Sabemos que, no terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a ambigüidade e a dúvida. Resta-nos construir caminhos em que o jogo narcísico que nos constitui e reúne, também possa  inventar uma ética para nossas condutas. Pode-se dizer que as afinidades eletivas nestes dois séculos que nos separam de Goethe, mantêm este dilema entre nosso ideal subjetivo e os ideais sociais, mas nossas dores e temores estão mais ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.


[1] Gisela Haddad é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da equipe editorial da revista Percurso, autora dos livros Amor e Fidelidade (Ed. Casa do Psicólogo) e Amor (Ed.Duetto)


KASSEL: UM CERTO OLHAR (2012)



KASSEL: UM CERTO OLHAR (2012)

GISELA HADDAD1

Documenta de Kassel? Já tinha ouvido falar sobre esta exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos na Alemanha e me empolguei com a ideia ir até lá conferir sua fama. Depois de uma semana de mergulho na cultura berlinense, nada parecia mais apropriado, inclusive pela oportunidade de viajar pelos moderníssimos trens alemães.

Cidade de uns 200 mil habitantes, Kassel recebe a todos que chegam a sua estação para a Documenta com um tapete vermelho. Um jeito simpático e de certa maneira despojado de anunciar a importância deste período de cem dias em que a cidade é sede desta respeitada mostra. Também um jeito de avisar os desavisados como eu que se está diante de um evento muito maior do que se imagina. Em sua 13ª edição - a primeira foi idealizada em 1955 por Arnold Bode, professor de arte e design que, diante de uma Alemanha pós-guerra devastada (também) culturalmente pela ditadura nazista, pretendia abrir um amplo debate sobre as artes, preservar as tendências e reposicionar a Alemanha no circuito internacional cultural.

Quando se é um visitante do país, na atualidade, não é difícil se deparar com este espírito de reconstrução - não só geográfica, política ou cultural, mas também moral. Há um grande empenho não mais em romper com a herança sombria do passado, mas em repará-la continuamente. Berlim, em especial, expõe suas feridas sem nenhuma concessão, lado a lado com as melhores atrações das vanguardas culturais, artísticas e musicais.
Quem desce na estação central de Kassel é capturado pelo “colorido” formado pelas pessoas. São muitos os que fazem parte do mundo das artes e se organizam para estar em algum momento na cidade. E, quando se tem apenas dois dias, um planejamento dos espaços e artistas a serem visitados é mais do que necessário, incluindo aí a apreciação das obras das quatro artistas brasileiras desta edição - as esculturas de Maria Martins (1894-1973) e a produção atual de Anna Maria Maiolino (1942), Maria Thereza Alves (1961) e Renata Lucas (1971).
Na continuidade, imerge-se em um mundo habitado por pessoas que pensam a arte atual como uma forma de surpreender, de trazer novos sentidos ao que já se conhece. De apresentar nosso mundo arte-cultural como um enorme espaço sem fronteiras, mesmo quando são apresentadas suas diferenças e marcas. Uma arte engajada, que se propõe pensar o futuro da vida humana por meio de todos os debates possíveis, em relação à natureza, às novas formas de política, à sustentabilidade ou ainda às formas de sobrevivências econômicas, éticas e emocionais. Arte em movimento, sempre a absorver os novos conhecimentos, a se renovar.

Para a curadora desta edição, a escritora ítalo-americana Carolyn Christov-Bakargiev, uma arte que não é feita apenas por artistas, mas que inclui historiadores, filósofos, físicos, ativistas ambientais, todos convidados a refletir sobre as incertezas e os riscos que nos rondam, sobre a situação do mundo atual. Por isso seu time foi composto por gestores provenientes das áreas de artes, filosofia, biologia, física, antropologia, política, arquitetura e economia, e as obras de 150 artistas de 55 países, escolhidas sem que o critério fosse necessariamente fazer parte das estrelas do cenário contemporâneo. Utilizando para as obras, além dos museus e do parque, um grande e eclético número de espaços espalhados pela cidade - a nova e a velha estação de trem, um hotel, um bunker, um campo de concentração, um hospital desativado - o panorama geral estava mais para o sensível e significativo do que para o espetacular e majestoso.

Talvez o exemplo mais interessante desta caracterização seja o dos dois trabalhos da dupla canadense Janet Cardiff  e George Miller. Em um deles, talvez o mais genial, cada visitante deveria seguir o monitor de um Ipod em uma visita guiada pela voz da artista através da movimentada estação de trem, percorrendo o mesmo percurso que ela fez no dia da gravação do vídeo, surpreendendo-se com as intervenções de bandas, bailarinas, vozes, sons de pelotões nazistas, silêncios ou ainda interrupções artificiais. É inevitável que o passado e o presente, o real e o virtual se entrelacem.

A mesma dupla assina outro emocionante sound art, com caixas instaladas entre as árvores do Karlsaue Park (o majestoso parque da cidade) que recriam os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, o transporte de judeus aos campos de concentração e que termina com vozes maravilhosas de um coral. Uma maratona rápida e intensa da qual não se pode sair incólume. Numa palavra? Belíssimo!


1 Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

sexta-feira, 20 de março de 2020

O amor na cultura


O amor na cultura

Gisela Haddad

Para Harold Bloom, William Shakespeare “inventou o humano” quando fez com que seus personagens mudassem (ou se obrigassem a mudar) ouvindo-se a si mesmos. Inaugurava-se a conversa consigo próprio, uma introspecção que não havia na literatura anterior e com ela a importância do conhecimento da dimensão subjetiva e de sua complexidade. Uma dimensão que transpassa a relação de cada um com o mundo, com a significação que dá ao mundo e com a imagem que faz de si, responsável pela heterogeneidade dos modos de funcionamento psíquico.
Podemos dizer que o amor é  o grande protagonista do psiquismo humano, gerando inúmeras histórias que compõem nosso acervo (romance, filmes, músicas),graças ao fato de que nossas relações amorosas passaram a ser, desde nossa infância, as responsáveis pela construção de nossas ficções. São elas que servem de ponte de contato com o mundo e nos auxiliam na composição de um lugar para nós, além de nos fornecer uma história que poderemos achar especial, mas que traz  em seu bojo a repetição dos anseios de cada um. A cada época, graças ao bonde da história que jamais para, podemos nos permitir novas reflexões sobre estes mesmos dramas humanos.
São estas histórias de amor que nos fornecem pistas sobre o percurso do amor na cultura assim como as idiossincrasias da complexa ligação amor-sexo.
A partir  do século XVIII, a ânsia pelo momento de êxtase máximo do ser humano, em que duas pessoas poderiam se bastar uma para outra não necessitando de mais nada no mundo, consumando a realização plena dos desejos, escancarou um debate questionador sobre as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais e as restrições impostas aos sexos.
Stendhal e Balzac são exemplos desta literatura romântica que pretendia questionar ou educar seus leitores quanto aos meandros do amor erótico, também na tentativa (romântica) de evitar seus males e surpresas ou as dores do adultério, tema presente em muitas das ficções da época, em geral para contar as histórias das paixões impossíveis ou de vítimas imaturas e irresponsáveis do desejo. Emma Bovary (Flaubert) e Anna Karenina (Dostoievski) são personagens conhecidos por terem cedido a impulsos amorosos que sua posição na vida, suas obrigações religiosas e as regras de sua sociedade declaravam proibidos. Sabemos bem o destino trágico desta ousadia amorosa. No entanto estas ficções cumpriam um papel relevante ao permitir que através de seus personagens, cada leitor pudesse realizar seus desejos secretos e proibidos ou a sua miséria inconfessa. A infidelidade de Ana Karenina ou Madame Bovary assumia um papel  tanto de redenção quanto de ascese ao proporcionar um êxtase  por sua leitura e ao mesmo tempo finalizar com um banho de moral, acalmando os sentimentos controversos. Não por acaso eram as mulheres o alvo desta controvérsia. A grande inquietação da época girava em torno da sexualidade e em especial do erotismo feminino, que no imaginário masculino seria transbordante, excessivo e incontrolável. Se a literatura (quase que exclusivamente escrita por homens) denunciava este misto de fascínio e medo, os discursos sociais se apressavam em adestrar o corpo e a sexualidade feminina à  procriação e ao casamento e qualquer desejo ou comportamento sexual que extravasasse estes limites era tratado como excesso, degeneração ou patologia.
O amor romântico, embora acenasse com uma solução de controle da sexualidade feminina através do casamento, incitava a junção de duas figuras míticas femininas, a santa e a prostituta, divisão que a cultura se ocupava em caucionar diante da dificuldade dos homens enfrentarem a figura da mulher-mãe assexuada, protótipo do primeiro amor de todos e a figura da mulher-sensual. Sexo e amor confirmavam sua difícil convivência pelo fascínio-medo  da figura da mulher sensual e da mãe cuidadora, cuja junção seria impossível em tal contexto histórico. Pode-se entender porque havia uma grande tolerância social à infidelidade masculina que de certa forma possibilitava aos homens resguardar-se desta atração proibida e inconsciente ao permitir viver o sexo de um lado e o amor de outro. Esta prática serviu para que a infidelidade masculina pudesse ser naturalizada e o adultério feminino condenado (chegando a ser considerado crime até a algumas décadas atrás).
Alguns historiadores dizem que o século XX foi pequeno para conter todos os acontecimentos e mudanças que nele ocorreram, mas sem dúvida as luzes e os holofotes iluminaram a história das mulheres, assim como as crenças, superstições, medos e enigmas com os quais os homens tentaram entender seus desejos, sua capacidade de gerar e criar outros humanos e seus anseios de sair da margem das decisões sobre os rumos da humanidade. A história contada e escrita pelas mulheres é um fato recente e é graças às que passaram a falar ou escrever sobre si mesmas, sobre seus amores e dores, que foi possível construir um acervo de reflexões, sentimentos e intuições próprios, que permite às outras sentirem-se compreendidas em suas dúvidas e dilemas, ou em seus anseios e sonhos. Estas luzes selaram o fim de uma hierarquia entre os sexos, que convencionou um poder e uma liberdade ao homem e um submetimento à mulher.
Sem dúvida a literatura dos primeiros séculos modernos compôs um acervo capaz de elucidar os dramas e dilemas humanos em torno do amor através de uma leitura sensível da paixão e do desejo, das dores e do sofrimento do coração humano,  inaugurando uma prática de despertar em cada leitor sentimentos de identificação ou de idealização ao fornecer palavras aos seus sentimentos e emoções. Mas  no último século o cinema tem sido a grande vedete desta tarefa de nos afetar, ao emprestar suas imagens às descrições literárias, dando contornos e cores à estes personagens. O acervo cinematográfico faz parte integral do imaginário cultural e cada vez mais são usadas referencias e associações com os filmes, suas historias e seus personagens, cujas palavras, cenas e discursos nos apropriamos.
Nas últimas décadas o cinema tem transformado a banalidade de nosso cotidiano em historias de “heróis” modernos, sem nobrezas e grandezas ,sem grande peso às dívidas com o passado ou  às grandes questões morais. Uma cultura que divulga de forma mais rápida as idiossincrasias e as contradições que habitam nosso imaginário, e continuam a nos capturar seja por abrigar nossas fantasias e sonhos, oferecer-nos um espaço de imediatização de satisfações em torno destes, ou pela oportunidade de nos confrontar com os dilemas e dores de nossos amores. Ele nos permite compartilhar uma diversidade de historias que mostram nossas experiências de misérias ou grandezas, alegrias e tristezas, sonhos ou pesadelos. Experiências que podem ser reparadoras e comovedoras da vida cotidiana de todos nós, auxiliando-nos a falar e escrever sobre o que pensamos o que aumenta nosso repertório cultural.
Deste grande acervo cultural são inúmeros os livros, revistas, filmes e seriados que mostram um painel das relações amorosas atuais e desfilam estórias de personagens banais, às voltas com os desassossegos, angústias e dilemas amorosos, ora jogando luz às mazelas do convívio amoroso cotidiano, ora em sua poesia ou em suas cenas eróticas. São filmes, músicas, romances gerados em torno do lugar especial do amor que funcionam como motor e alimento de seu valor. O desejo de uns por outros, sejam estes nascidos com qualquer sexo, ou as grandes paixões, suas decepções, suas dores na busca por alguém especial que comprove, ainda que por algum tempo, que se pode ser amado. Os ciúmes sempre presente, narrado ou encenado, ingrediente inseparável da lógica paradoxal que rege o amor: queremos ser livres e ao mesmo tempo fusionados com alguém que não cesse de nos amar. Graças à intuição dos “poetas”, estes que escrevem roteiros, livros, blogs, e que estão sempre um pouco à frente do tempo podemos captar melhor as nuances de nossa alma, sempre em busca de seu par amoroso.

         Parece que vivemos em um circuito amoroso que se repete indefinidamente em que o amor que é esperado que tenhamos de nossos pais vai nos proporcionar o amor que nutrimos por nós mesmos e fará com que busquemos o mesmo reconhecimento e valor deste amor nos outros que iremos eleger. Espera-se que possamos encontrar maneiras de nos amar mesmo quando não fomos tão amados quanto gostaríamos, e quem sabe buscar através de nossas escolhas amorosas o amor que queríamos ter recebido. Mas o que dizer da hostilidade e do ódio que podem organizar a violência dos encontros humanos a partir da quebra deste circuito que é hoje nosso ideal amoroso moderno? Tornamo-nos reféns do amor e com isso buscamos todos sermos únicos, amados e especiais para alguém assim como acreditamos que fomos ou deveríamos ter sido amados por nossos pais. Até mesmo as normas e leis que regiam as relações familiares há bem pouco tempo sucumbiram ao argumento deste amor. Se a criação de deuses e mitos foi em nosso passado recente uma forma de proteção à nossa fragilidade diante de nossa finitude e uma maneira de respondermos aos enigmas de nossa existência, o amor que hoje permeia nossas relações é um ideal que nos proporciona uma visão de vida, nos oferece alguma remissão e um significado à nossa existência. As inúmeras opções que nosso mundo contemporâneo produz no intuito de nos oferecer felicidade parecem  ganhar mais sentido se forem vividas com nosso parceiro(a) amoroso ou com nossos queridos rebentos. O amor mostra como precisamos deste lugar, ainda que imaginário, em que solicitamos ao outro que nos responda sobre nossa importância. Sobre sermos especiais.



Ficar, namorar, casar


Ficar, namorar, casar

Gisela Haddad

Já sei namorar
Já sei beijar de língua
Agora, só me resta sonhar
Já sei onde ir
Já sei onde ficar
Agora, só me falta sair

Já sei namorar ,Tribalistas

Foi a partir da Modernidade que o par amor e sexo guiou a formação das famílias pelo casamento. A sociedade passou a ser organizada  pelos sentimentos e, além de só se casar por amor, os laços de sangue passaram a valer menos que os laços de afetos abrindo espaço para que o amor  fosse condição dos laços. O amor inaugurou uma  nova maneira de existir mais centrada na tarefa amorosa  de cuidado com as crianças e na ânsia de ser amado e reconhecido pelos pares.
 Mas o modelo da família nuclear, fechada sobre si mesma e voltada para a produção de bem-estar nunca foi um mar de rosas e  muitas vezes transformou-se em um canteiro de violência psicológica. Os filhos podiam frustrar as expectativas dos pais e vice-versa, o amor podia se transformar em barganha ou chantagem mútua e a esperança de entendimento entre cada um podia ficar obstruído pela culpa.
Ao longo do último século a busca de relacionamentos mais satisfatórios implicou grandes mudanças nas relações entre pais e filhos, entre os pares amorosos e por consequência no modelo familiar. As novas gerações  separam amor, sexo e casamento, antes fusionados  pelo ideal de amor romântico e se desenvolvem em torno de inúmeras possibilidades identificatórias, ao contrário das gerações anteriores que seguiam modelos binários (pai ou  mãe, feminino ou masculino). A virilidade  e a feminilidade passeiam entre os gêneros e ajudam a compor esta diversidade identitária. Como consequência mudou a forma como cada um  pensa sua própria identidade e realiza suas relações com os outros, trazendo uma renovação nos repertórios de condutas e nos modelos de convivência.
A partir da década de sessenta, com os reposicionamentos sociais e as redefinições dos papéis sexuais, homens e mulheres e, sobretudo os jovens começaram a ver e a viver a sexualidade de forma totalmente diversa. O advento da pílula anticoncepcional e a liberação do aborto permitiram que se  morasse juntos, tivesse relações sexuais fora de uma conjugalidade mais séria, separasse-se quando não houvesse mais motivos para se estar juntos, e assumisse preferências sexuais mesmo quando estas não pertencessem ao modo tradicional das relações heterossexuais.
Não há idade certa para se casar, alguns casais apenas moram juntos, outros se casam mas não tem filhos ou tem filhos sem se casar. A liberdade sexual incentiva a  busca e não condena mais o prazer físico e, embora todos continuemos a buscar realizações sentimentais e satisfações sexuais, estamos  mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos.
Estas mudanças que hoje já estão mais digeridas pela cultura ocidental, mudaram a paisagem social e admitiram uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados e o ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes, hoje permeia as relações de todas as idades ao abrir um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que  predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo entre os pares e por isso preveem uma confluência de interesses e desejos continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou ambas as partes ou quando os pactos que as asseguravam se desfazem.
O casamento  deixou de ser uma instituição, tornando-se apenas uma formalidade que tenta administrar as expectativas de laços conjugais  mais duráveis com uma experiência sexual prazerosa.  Os novos parceiros se formam em regime de simetria  e como cada um é o único legislador de sua relação amorosa, precisa negociar e investir constantemente no parceiro, se o objetivo de ambos for prolongar o relacionamento. A duração do casamento, a capacidade de viver junto por um longo tempo, as tentativas do casal de manter o interesse sexual recíproco, o cuidado com a gerência da vida familiar e o desgaste do casamento por problemas relacionados aos filhos ou às finanças, são alguns dos  fatores que surgem no cenário atual e pedem  soluções aos envolvidos. Transgressiva por natureza, a sexualidade como ingrediente de valor, não cessa de impor negociações.
O preço por nossa maior autonomia e liberdade para escolher e viver nossa vida amorosa são nossas incertezas e  nossa maior dependência de um olhar amoroso, o que nos faz mais vulneráveis aos fracassos e ao sentimento de impotência. O sucesso de nossa vida amorosa depende de um investimento infinito das partes envolvidas e principalmente da possibilidade de cada uma destas partes suportar a individualidade do outro, mas todos sabem que no terreno do amor e do sexo, não há como eliminar a contingência, a ambiguidade e a dúvida.



As dores de amor


As dores de amor

Gisela Haddad

Eu fico com essa dor
Ou essa dor tem que morrer
A dor que nos ensina
E a vontade de não ter...
Eu curo esse rasgo ou ignoro qualquer ser
Sigo enganado ou enganando meu viver
Pois quando estou amando é parecido com sofrer
Eu morro de amores...

 Dores de amores,  Luis Melodia

O sofrimento é um fato de cultura e por ser fundador de valores morais, seu valor varia a cada época, podendo ser cultuado como uma justificação do viver, ou convidado a desaparecer como na cultura atual. Sempre vivido como trágico, ao mesmo tempo em que desejamos que não existisse, sabemos lá no fundo que ele é inerente à condição humana. E ainda que esta dimensão trágica do sofrimento humano assuma valores diferentes em cada momento histórico, ela sempre se refere ao que escapa, ao que excede ao ideal de sustentação da existência humana. Na atualidade o amor e a sexualidade têm sido convocados a responder por nossas vidas, a curar nossos males e a impedir nossos sofrimentos. Mas nada mais pantanoso do que o terreno sexual e amoroso. Nossas parcerias amorosas românticas, construídas na promessa da incondicionalidade, exclusividade e felicidade não possuem garantias. Se a ilusão de possuir a fonte do amor incondicional pode ser gratificante, nada é  mais terrível do que perdê-la. Quando amamos, ficamos desprotegidos contra o sofrimento, mais a mercê do outro e expostos a dores extremas se rejeitados, traídos ou abandonados.
Nesse sentido, a verdadeira paixão amorosa não seria exatamente um "bom sentimento". Ao nos apaixonarmos idealizamos o nosso amado e temos dificuldade em renunciar ao que poderá ser  a única e indiscutível prova de que não estamos só no mundo ou de que a vida faz sentido. Nossa aposta fica mais elevada quando para além de um laço amoroso intenso, esperamos que nosso eleito seja o foco central e exclusivo de todo o nosso desejo e mantenha uma ligação conjugal eterna. A lista pode aumentar se exigirmos satisfação erótica, o sentimento de ser amado ternamente,  estabilidade, cumplicidade, fidelidade, parceria nos cuidados com a casa e a educação de filhos, etc. Tamanhas expectativas depositadas sobre as nossas parcerias são um terreno propício para a frustração e para a decepção do tão acalentado projeto de realização erótica e existencial a dois.
Território limite entre nós e um outro a experiência amorosa é fonte dos conflitos mais humanos, aqueles que gravitam entre o amor e o ódio, o domínio e a subjugação, o desejo e a indiferença, a rivalidade e a generosidade,  e por aí vai. Na medida em que se ama, é impossível não correr os riscos da perda e seus desdobramentos em termos de sofrimentos.
As mudanças na cultura atual em torno de uma sexualidade mais livre não nos isentam das dores do amor, ao contrário,apenas nos faz construir novas defesas contra estas dores. Claro que os novos códigos de convivência amorosa nos asseguram uma liberdade maior e ampliam nosso leque de opções. Mas poder escolher o que mais se afina com nossos gostos ou estilo de viver não apaga o fato de que a eleição de um par amoroso ainda seja algo que pode nos conferir uma identidade e nos dar a sensação de felicidade, ou seja, de estarmos mais completos, protegidos e amparados. Mantemos o amor em seu formato idealizado, ainda que saibamos que pode também produzir uma ruptura em nossa identidade, levando-nos à sensação de desamparo e confrontando-nos com nossas fragilidades. Este é o paradoxo do amor romântico: a felicidade amorosa quase sempre vem acompanhada do medo da perda, do abandono ou da traição.
Mas o que é a felicidade hoje, tão fundamental para todos?  Ganhar dinheiro, ter sucesso profissional, pessoal, amoroso, estar  em forma, bem consigo mesmo, enfim, estar sempre feliz. É fato que o valor dado à ideia de felicidade é culturalmente circunscrito e sua significação variou muito na tradição ocidental. Se a felicidade já foi uma recompensa por uma vida bem vivida, hoje ela é a chave mestra dos ideais formadores de nossa identidade e está mais próxima de um sentir-se bem, desfrutar da vida e desejar que essa sensação permaneça. O mito do amor romântico produzido na modernidade continua a manter sua força ao permitir a cada um apostar que em algum lugar do futuro poderá viver sua história de amor com alguém especial. Não abrimos mão ainda deste modelo de busca de felicidade e as “histórias de amor” que construímos  continuam a alimentar o mito, mesmo com a aura idealizada do amor chamuscada.

Na verdade a felicidade é hoje um desafio para todos justamente porque ao lado de todas as nossas conquistas no plano do conhecimento (ciber-tecnociências), tivemos que nos familiarizar mais com nosso pathos humano, com o que nos causa espanto, paixão, nos afeta ou mostra nossos limites. Nossos conflitos mentais, em sua  maior parte, derivam das contradições entre nossas diversas formas de valorar desejos, aspirações, ideais, impulsos, na tentativa de alcançar o grande objetivo da vida, a felicidade. O amor ainda aparece como uma unidade possível (e consensual) para nosso mundo, acenando com algum preenchimento mesmo que saibamos que amar não signifique estar livre do sofrimento. Neste último século, se a sexualidade pode ocupar um novo lugar na cultura e aos trancos e barrancos impor sua face prazerosa lado a lado com sua rudeza, o amor também abriu, junto à sua inquestionável aura idealista, um  espaço de construção de uma experiência inédita (embora penosa). Nossas relações amorosas estão menos idealizadas assim como nossas dores e temores mais ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.