As dores de amor
Gisela Haddad
Eu fico com essa dor
Ou essa dor tem que morrer
A dor que nos ensina
E a vontade de não ter...
Eu curo esse rasgo ou ignoro qualquer ser
Sigo enganado ou enganando meu viver
Pois quando estou amando é parecido com sofrer
Eu morro de amores...
Ou essa dor tem que morrer
A dor que nos ensina
E a vontade de não ter...
Eu curo esse rasgo ou ignoro qualquer ser
Sigo enganado ou enganando meu viver
Pois quando estou amando é parecido com sofrer
Eu morro de amores...
Dores de
amores, Luis Melodia
O
sofrimento é um fato de cultura e por ser fundador de valores morais, seu valor
varia a cada época, podendo ser cultuado como uma justificação do viver, ou convidado
a desaparecer como na cultura atual. Sempre vivido como trágico, ao mesmo tempo
em que desejamos que não existisse, sabemos lá no fundo que ele é inerente à
condição humana. E ainda que esta dimensão trágica do sofrimento humano assuma
valores diferentes em cada momento histórico, ela sempre se refere ao que escapa,
ao que excede ao ideal de sustentação da existência humana. Na atualidade o amor e a sexualidade têm sido convocados a responder por nossas vidas, a
curar nossos males e a impedir nossos sofrimentos. Mas nada mais pantanoso do
que o terreno sexual e amoroso. Nossas parcerias amorosas românticas, construídas
na promessa da incondicionalidade, exclusividade e felicidade não possuem
garantias. Se a ilusão de possuir a fonte do amor incondicional pode ser
gratificante, nada é mais terrível do
que perdê-la. Quando amamos, ficamos desprotegidos contra o sofrimento, mais a mercê
do outro e expostos a dores extremas se rejeitados, traídos ou abandonados.
Nesse
sentido, a verdadeira paixão amorosa não seria exatamente um "bom
sentimento". Ao nos apaixonarmos idealizamos o nosso amado e temos
dificuldade em renunciar ao que poderá ser a única e indiscutível prova de que não
estamos só no mundo ou de que a vida faz sentido. Nossa aposta fica mais
elevada quando para além de um laço amoroso intenso, esperamos que nosso eleito
seja o foco central e exclusivo de todo o nosso desejo e mantenha uma ligação
conjugal eterna. A lista pode aumentar se exigirmos satisfação erótica, o
sentimento de ser amado ternamente, estabilidade,
cumplicidade, fidelidade, parceria nos cuidados com a casa e a educação de
filhos, etc. Tamanhas expectativas depositadas sobre as nossas parcerias são um
terreno propício para a frustração e para a decepção do tão acalentado projeto
de realização erótica e existencial a dois.
Território
limite entre nós e um outro a experiência amorosa é fonte dos conflitos mais
humanos, aqueles que gravitam entre o amor e o ódio, o domínio e a subjugação,
o desejo e a indiferença, a rivalidade e a generosidade, e por aí vai. Na medida em que se ama, é
impossível não correr os riscos da perda e seus desdobramentos em termos de
sofrimentos.
As
mudanças na cultura atual em torno de uma sexualidade mais livre não nos
isentam das dores do amor, ao contrário,apenas nos faz construir novas defesas
contra estas dores. Claro que os novos códigos de convivência amorosa nos asseguram
uma liberdade maior e ampliam nosso leque de opções. Mas poder escolher o que
mais se afina com nossos gostos ou estilo de viver não apaga o fato de que a
eleição de um par amoroso ainda seja algo que pode nos conferir uma identidade e
nos dar a sensação de felicidade, ou seja, de estarmos mais completos,
protegidos e amparados. Mantemos o amor em seu
formato idealizado, ainda que saibamos que pode também produzir uma ruptura em
nossa identidade, levando-nos à sensação de desamparo e confrontando-nos com nossas
fragilidades. Este é o paradoxo do
amor romântico: a felicidade amorosa quase sempre vem acompanhada do medo da
perda, do abandono ou da traição.
Mas o que é a felicidade hoje, tão fundamental para todos? Ganhar dinheiro, ter sucesso
profissional, pessoal, amoroso, estar em
forma, bem consigo mesmo, enfim, estar sempre feliz. É fato que o valor dado à ideia de felicidade é culturalmente circunscrito
e sua significação variou muito na tradição ocidental. Se a felicidade já foi
uma recompensa por uma vida bem vivida, hoje ela é a chave mestra dos ideais
formadores de nossa identidade e está mais próxima de um sentir-se bem,
desfrutar da vida e desejar que essa sensação permaneça. O mito do amor
romântico produzido na modernidade continua a manter sua força ao permitir a
cada um apostar que em algum lugar do futuro poderá viver sua história de amor
com alguém especial. Não abrimos mão ainda deste modelo de busca de felicidade
e as “histórias de amor” que construímos
continuam a alimentar o mito, mesmo com a aura idealizada do amor
chamuscada.
Na verdade a felicidade é hoje um
desafio para todos justamente porque ao lado de todas as nossas conquistas no
plano do conhecimento (ciber-tecnociências), tivemos que nos familiarizar mais
com nosso pathos humano, com o que nos
causa espanto, paixão, nos afeta ou mostra nossos limites. Nossos conflitos
mentais, em sua maior parte, derivam das
contradições entre nossas diversas formas de valorar desejos, aspirações,
ideais, impulsos, na tentativa de alcançar o grande objetivo da vida, a
felicidade. O amor ainda aparece como uma unidade possível (e consensual) para
nosso mundo, acenando com algum preenchimento mesmo que saibamos que amar não
signifique estar livre do sofrimento. Neste último século, se a sexualidade
pode ocupar um novo lugar na cultura e aos trancos e barrancos impor sua face
prazerosa lado a lado com sua rudeza, o amor também abriu, junto à sua
inquestionável aura idealista, um espaço
de construção de uma experiência inédita (embora penosa). Nossas relações
amorosas estão menos idealizadas assim como nossas dores e temores mais ligados
à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.
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