sexta-feira, 20 de março de 2020

As dores de amor


As dores de amor

Gisela Haddad

Eu fico com essa dor
Ou essa dor tem que morrer
A dor que nos ensina
E a vontade de não ter...
Eu curo esse rasgo ou ignoro qualquer ser
Sigo enganado ou enganando meu viver
Pois quando estou amando é parecido com sofrer
Eu morro de amores...

 Dores de amores,  Luis Melodia

O sofrimento é um fato de cultura e por ser fundador de valores morais, seu valor varia a cada época, podendo ser cultuado como uma justificação do viver, ou convidado a desaparecer como na cultura atual. Sempre vivido como trágico, ao mesmo tempo em que desejamos que não existisse, sabemos lá no fundo que ele é inerente à condição humana. E ainda que esta dimensão trágica do sofrimento humano assuma valores diferentes em cada momento histórico, ela sempre se refere ao que escapa, ao que excede ao ideal de sustentação da existência humana. Na atualidade o amor e a sexualidade têm sido convocados a responder por nossas vidas, a curar nossos males e a impedir nossos sofrimentos. Mas nada mais pantanoso do que o terreno sexual e amoroso. Nossas parcerias amorosas românticas, construídas na promessa da incondicionalidade, exclusividade e felicidade não possuem garantias. Se a ilusão de possuir a fonte do amor incondicional pode ser gratificante, nada é  mais terrível do que perdê-la. Quando amamos, ficamos desprotegidos contra o sofrimento, mais a mercê do outro e expostos a dores extremas se rejeitados, traídos ou abandonados.
Nesse sentido, a verdadeira paixão amorosa não seria exatamente um "bom sentimento". Ao nos apaixonarmos idealizamos o nosso amado e temos dificuldade em renunciar ao que poderá ser  a única e indiscutível prova de que não estamos só no mundo ou de que a vida faz sentido. Nossa aposta fica mais elevada quando para além de um laço amoroso intenso, esperamos que nosso eleito seja o foco central e exclusivo de todo o nosso desejo e mantenha uma ligação conjugal eterna. A lista pode aumentar se exigirmos satisfação erótica, o sentimento de ser amado ternamente,  estabilidade, cumplicidade, fidelidade, parceria nos cuidados com a casa e a educação de filhos, etc. Tamanhas expectativas depositadas sobre as nossas parcerias são um terreno propício para a frustração e para a decepção do tão acalentado projeto de realização erótica e existencial a dois.
Território limite entre nós e um outro a experiência amorosa é fonte dos conflitos mais humanos, aqueles que gravitam entre o amor e o ódio, o domínio e a subjugação, o desejo e a indiferença, a rivalidade e a generosidade,  e por aí vai. Na medida em que se ama, é impossível não correr os riscos da perda e seus desdobramentos em termos de sofrimentos.
As mudanças na cultura atual em torno de uma sexualidade mais livre não nos isentam das dores do amor, ao contrário,apenas nos faz construir novas defesas contra estas dores. Claro que os novos códigos de convivência amorosa nos asseguram uma liberdade maior e ampliam nosso leque de opções. Mas poder escolher o que mais se afina com nossos gostos ou estilo de viver não apaga o fato de que a eleição de um par amoroso ainda seja algo que pode nos conferir uma identidade e nos dar a sensação de felicidade, ou seja, de estarmos mais completos, protegidos e amparados. Mantemos o amor em seu formato idealizado, ainda que saibamos que pode também produzir uma ruptura em nossa identidade, levando-nos à sensação de desamparo e confrontando-nos com nossas fragilidades. Este é o paradoxo do amor romântico: a felicidade amorosa quase sempre vem acompanhada do medo da perda, do abandono ou da traição.
Mas o que é a felicidade hoje, tão fundamental para todos?  Ganhar dinheiro, ter sucesso profissional, pessoal, amoroso, estar  em forma, bem consigo mesmo, enfim, estar sempre feliz. É fato que o valor dado à ideia de felicidade é culturalmente circunscrito e sua significação variou muito na tradição ocidental. Se a felicidade já foi uma recompensa por uma vida bem vivida, hoje ela é a chave mestra dos ideais formadores de nossa identidade e está mais próxima de um sentir-se bem, desfrutar da vida e desejar que essa sensação permaneça. O mito do amor romântico produzido na modernidade continua a manter sua força ao permitir a cada um apostar que em algum lugar do futuro poderá viver sua história de amor com alguém especial. Não abrimos mão ainda deste modelo de busca de felicidade e as “histórias de amor” que construímos  continuam a alimentar o mito, mesmo com a aura idealizada do amor chamuscada.

Na verdade a felicidade é hoje um desafio para todos justamente porque ao lado de todas as nossas conquistas no plano do conhecimento (ciber-tecnociências), tivemos que nos familiarizar mais com nosso pathos humano, com o que nos causa espanto, paixão, nos afeta ou mostra nossos limites. Nossos conflitos mentais, em sua  maior parte, derivam das contradições entre nossas diversas formas de valorar desejos, aspirações, ideais, impulsos, na tentativa de alcançar o grande objetivo da vida, a felicidade. O amor ainda aparece como uma unidade possível (e consensual) para nosso mundo, acenando com algum preenchimento mesmo que saibamos que amar não signifique estar livre do sofrimento. Neste último século, se a sexualidade pode ocupar um novo lugar na cultura e aos trancos e barrancos impor sua face prazerosa lado a lado com sua rudeza, o amor também abriu, junto à sua inquestionável aura idealista, um  espaço de construção de uma experiência inédita (embora penosa). Nossas relações amorosas estão menos idealizadas assim como nossas dores e temores mais ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.




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