O ódio necessário
“Mas esse é também um dos traços do ódio: é raro, é até impossível que
alguém o reconheça como emanando de si próprio. O “eu odeio” quando ousa
enunciar-se, afirmar-se sem disfarces, sempre se coloca como uma reação: o
objeto é que é intrinsicamente odiável, ele e só ele é que desperta meu ódio,
mesmo que não seja pelo fato de o objeto ser amável que eu me volte para ele.”
J. B. Pontalis
J. B. Pontalis
Reconhecer os diversos propósitos do ódio na
economia psíquica, bem como distinguir os seus diferentes manejos tem sido, na
atualidade, um desafio cada vez mais presente na prática dos analistas. Sabemos
que o eu – em sua condição originária de desamparo e invadido pelas pulsões – é
levado a se defender e se mover em direção à sua primeira realização:
incorporar a si o que é prazeroso e expulsar o que é desprazeroso. O ódio
nasceria do repúdio primordial ao mundo exterior e no movimento simultâneo da
instauração da autossuficiência ilusória, característica dos primórdios do
psiquismo. Indelével, o ódio se mantém no âmago do eu e atualiza o encontro
primordial do Eu com o outro-hostil-exterior, ameaçado com descontinuidade e
aniquilação. Odeia-se diante da constatação da alteridade do outro, da
exigência de reordenamento narcísico e do mal-estar advindo da experiência do
encontro com o exterior.
De modo geral, verifica-se na literatura
psicanalítica uma referência mais acentuada na análise do ódio destrutivo e
suas consequências na construção da subjetividade, embora a clínica
evidencie que nem sempre o ódio está a serviço da destruição, ao contrário,
pode estar a serviço da conservação do objeto representando uma forma
inconsciente de amor ou, ainda, preservando a autoestima do sujeito que nele se
fortaleceu para fazer frente à desestruturação.
Encravado no interior do Eu, o ódio se mantêm
como uma marca ativa e decisiva da diferenciação/separação do Eu em relação ao
outro e da afirmação do sujeito frente ao objeto. Constitui-se, assim, numa
força psíquica que fortalece a identidade e a representação de si, aguça
percepções, potencializa o Eu e suas fronteiras e demarca limites a fim de
manter a necessária distância do outro. Sua presença na estruturação do psiquismo
fundamenta a ação negadora pela qual o sujeito constrói sua singularidade,
desempenhando um papel fundamental tanto no processo de individuação, que supõe
a existência do outro em sua alteridade, quanto no processo de separação, pelo
qual o objeto se constitui como tal. Essencial à permanência do objeto, somente
no ódio o outro pode ser reconhecido como outro e a realidade como realidade.
Promove, portanto, a afirmação e conservação do Eu e, ao mesmo tempo, abre a
sensibilidade ao diverso e dá passagem ao amor, que tem um papel significativo
na preservação do objeto, embora em muitos casos possa, paradoxalmente,
convocar ao apagamento de sua alteridade.
Como um dos polos da ambivalência afetiva, uma
modalidade de vínculo (e de ligação) entre o sujeito e o outro, sua presença
permanente na relação intersubjetiva nos lembra que o sujeito é ao
mesmo tempo elo, servidor, herdeiro e beneficiário, assim como na vida psíquica
do sujeito o outro é ao mesmo tempo objeto, sustento e adversário.
Em “Além do princípio de prazer”, Freud também
postula que o ódio “pode ter uma função potencial e servir a um propósito
mnêmico de restaurar um estado de coisas mais antigo”, ou seja, que o ódio pode
assumir um caráter defensivo, associando-se a uma economia psíquica através da
qual o sujeito se esquiva do excesso de angústia ligada a afetos insuportáveis,
preservando-se, por esta via, do confronto com a perda, o abandono ou o
desamparo. Nesta lógica o masoquismo pode se tornar uma forma privilegiada de
subjetivação, uma saída para se resguardar do desamparo, da invasão pulsional
advinda do ódio do objeto privilegiado: para evitar a experiência de abandono,
o sujeito pode se dobrar aos cuidados patológicos e se submeter aos maus-tratos
de um mau objeto.
Estamos, portanto apontando para a existência de
organizações psíquicas em que a intensidade e a negociação e derivação do ódio
e do sofrimento é a condição da vida mental e/ou da sobrevivência psíquica.
Ainda que alguns teóricos pós-freudianos tenham
se debruçado sobre a clínica do ódio e construído reflexões teórico-clínicas importantes
sobre o ódio como uma espécie de investimento, ligado a um objeto externo ou
interno, é provável que a maioria dos analistas teriam muito a relatar sobre as
situações transferenciais vivenciadas na tarefa de escutar os diferentes
sujeitos cujos investimentos objetais estão atravessados pelo signo do ódio.
Acresce-se a isso o fato de que tudo o que gira em torno da tendência
autodestrutiva, da desistência da vida ou da agressividade incontrolável tende
a desestabilizar as relações, inclusive as de analistas e seus
analisandos.
É principalmente na experiência clínica, por intermédio do ódio
transferencial, que se pode vislumbrar sua dimensão paradoxal e contingente,
ora se manifestando como ódio destrutivo –ruptura, força destruidora, sem
objeto nem lugar de legitimação, ora se apresentando como afeto necessário,
estruturante, a serviço da afirmação psíquica do Eu – dimensão essencial que
realçamos neste texto. Uma clínica, enfim, que convoca uma escuta sensível e
sofisticada em suas nuances.
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