segunda-feira, 23 de março de 2020

Simples reciclagens




SIMPLES RECICLAGENS[1]

GISELA HADDAD[2]


Garrido arqueou as sobrancelhas para expressar sua conclusão: se o Brasil era campeão em reciclagem de latinhas de cervejas, que tal reciclar pessoas? Um negro de cinquenta e poucos anos, olhar penetrante, coração aberto, Garrido falava para uma pequena platéia composta de profissionais da área psi, sobre seu projeto de recuperação e “reciclagem” de pessoas. Sendo ex-boxeador, há alguns anos atrás, abril de 2004, parecia que seu sonho se realizaria. Depois de anos treinando o filho Fabio batendo em geladeiras, pneus e surdinas de caminhão pendurados na academia da família - Vila Ré, Zona Leste da cidade de São Paulo - este iria enfrentar o então campeão em uma luta que valia o título brasileiro dos meio-pesados pela Confederação Brasileira de Boxe. Mas foi duramente nocauteado e, além de ficar entre a vida e a morte, sua carreira (e com isso o sonho de um lugar especial) ficara abortada pela contusão cerebral que sofrera.

Tempos depois, trabalhando como segurança no centro de São Paulo, ao ver crianças cheirando cola e fumando crack, Garrido resolveu trazer a ideia da geladeira velha, os restos de carros/ pneus usados e algumas pedras para baixo de um viaduto, improvisar uma academia de boxe e oferecer - a quem quisesse - um espaço para treinar. Logo a idéia cresceu e o antigo espaço sob o Viaduto do Café, local de tráfico de drogas e de desabrigados, tornou-se referência no bairro do Bexiga, atraindo moradores e até empresários que se sensibilizaram com a “paixão” com que Garrido se dedicava ao resgate de qualquer pessoa em vulnerabilidade social, desde crianças de rua, ex-detentos, meninos recém-saídos da Febem, catadores de lixos, moradores de rua, etc.

Em meio ao pensamento contemporâneo marcado pelo ceticismo e pelo individualismo, ouvir alguém falar de forma ao mesmo tempo despretensiosa e apaixonada sobre as possibilidades de se abrir ao outro, mesmo em face às mais pungentes adversidades, é no mínimo alentador. A maioria dos que o assistiam  se surpreendia pela forma simples com que ele afirmava o resgate de pessoas totalmente excluídas da rede social. Parecia mal se dar conta da potência de seus projetos pessoais e da aposta sensível na resposta positiva de seus investimentos no outro, mesmo com todas as evidências de falência. Paradoxalmente o boxe acenava com um destino para a violência, uma violência submetida às regras, à disciplina e, portanto capaz de gerar vida e ajudar na criação da realidade compartilhada.

Já se vão seis anos e Garrido continua com sua “garra”. Seu projeto cresceu, ganhou a parceria da amiga Cora Batista, que há anos trabalhava com assistência social às mulheres, e chega à terceira ponte (no bairro de São Miguel Paulista) transformada em espaço para os moradores pobres locais ou para quem se interessar por “novas oportunidades, disciplina, e autoestima”, segundo suas palavras. O Cora Garrido Boxe ou o Projeto Viver continua transformando alguns que vivem assujeitados pelo medo, pela violência, pela falta de oportunidades, ao oferecer uma brecha de acesso à vida, uma “reciclagem” do desejo que permite a construção de um sentido, em um clima de trocas e solidariedade. Garrido leva a mesma “palavra” aos seus pupilos, incitando-os a manterem seus espíritos abertos à multidão dos excluídos, marginalizados, pobres em geral. Algo como a construção da tal responsabilidade social. Sua frase preferida é a que reafirma sua aposta: transformar “pessoas em seres humanos”, “reciclá-las”. Mas a que mais toca é a que  diz que isto é simples, muito simples, basta querer fazer. Resta apostar.

Para conferir:
Cora Garrido Boxe (Projeto Viver)
Rua Santo Antônio, 821 - Bela Vista - São Paulo – SP




[1] Originalmente publicado no jornal A cidade de Ribeirão Preto, de 20 de outubro de 2010.
[2] Gisela Haddad é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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