SIMPLES
RECICLAGENS[1]
GISELA HADDAD[2]
Garrido arqueou as sobrancelhas para
expressar sua conclusão: se o Brasil era campeão em
reciclagem de latinhas de cervejas, que tal reciclar pessoas? Um negro de cinquenta
e poucos anos, olhar penetrante, coração aberto, Garrido falava para uma
pequena platéia composta de profissionais da área psi, sobre seu projeto de recuperação e “reciclagem” de pessoas.
Sendo ex-boxeador, há alguns anos atrás, abril de 2004, parecia que seu sonho
se realizaria. Depois de anos treinando o filho Fabio batendo em geladeiras,
pneus e surdinas de caminhão pendurados na academia da família - Vila Ré, Zona
Leste da cidade de São Paulo - este iria enfrentar o então campeão em uma luta
que valia o título brasileiro dos meio-pesados pela Confederação Brasileira de
Boxe. Mas foi duramente nocauteado e, além de ficar entre a vida e a morte, sua
carreira (e com isso o sonho de um lugar especial) ficara abortada pela
contusão cerebral que sofrera.
Tempos depois,
trabalhando como segurança no centro de São Paulo, ao ver crianças cheirando
cola e fumando crack, Garrido
resolveu trazer a ideia da geladeira velha, os restos de carros/ pneus usados e
algumas pedras para baixo de um viaduto, improvisar uma academia de boxe e
oferecer - a quem quisesse - um espaço para treinar. Logo a idéia cresceu e o
antigo espaço sob o Viaduto do Café, local de tráfico de drogas e de
desabrigados, tornou-se referência no bairro do Bexiga, atraindo moradores e
até empresários que se sensibilizaram com a “paixão” com que Garrido se dedicava
ao resgate de qualquer pessoa em vulnerabilidade social, desde crianças de rua,
ex-detentos, meninos recém-saídos da Febem, catadores de lixos, moradores de
rua, etc.
Em meio ao pensamento
contemporâneo marcado pelo ceticismo e pelo individualismo, ouvir alguém falar
de forma ao mesmo tempo despretensiosa e apaixonada sobre as possibilidades de
se abrir ao outro, mesmo em face às mais pungentes adversidades, é no mínimo
alentador. A maioria dos que o assistiam
se surpreendia pela forma simples com que ele afirmava o resgate de
pessoas totalmente excluídas da rede social. Parecia mal se dar conta da potência
de seus projetos pessoais e da aposta sensível na resposta positiva de seus
investimentos no outro, mesmo com todas as evidências de falência. Paradoxalmente
o boxe acenava com um destino para a violência, uma violência submetida às
regras, à disciplina e, portanto capaz de gerar vida e ajudar na criação da realidade
compartilhada.
Já se vão seis anos e
Garrido continua com sua “garra”. Seu projeto cresceu, ganhou a parceria da
amiga Cora Batista, que há anos trabalhava com assistência social às mulheres,
e chega à terceira ponte (no bairro de São Miguel Paulista) transformada em
espaço para os moradores pobres locais ou para quem se interessar por “novas
oportunidades, disciplina, e autoestima”, segundo suas palavras. O Cora Garrido Boxe ou o Projeto Viver continua transformando
alguns que vivem assujeitados pelo medo, pela violência, pela falta de
oportunidades, ao oferecer uma brecha de acesso à vida, uma “reciclagem” do
desejo que permite a construção de um sentido, em um clima de trocas e
solidariedade. Garrido leva a mesma “palavra” aos seus pupilos, incitando-os a
manterem seus espíritos abertos à multidão dos excluídos, marginalizados,
pobres em geral. Algo como a construção da tal responsabilidade social. Sua
frase preferida é a que reafirma sua aposta: transformar “pessoas em seres
humanos”, “reciclá-las”. Mas a que mais toca é a que diz que isto é simples, muito simples, basta
querer fazer. Resta apostar.
Para conferir:
Cora Garrido Boxe
(Projeto Viver)
Rua Santo Antônio, 821 -
Bela Vista - São Paulo – SP
Email: coragarrido@gmail.com
[1]
Originalmente publicado no jornal A
cidade de Ribeirão Preto, de 20 de outubro de 2010.
[2]
Gisela Haddad é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae.
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