Amor,
sexo e psicanálise
Gisela
Haddad
O
tema do amor romântico é bastante amplo e inclui um panorama histórico dos caminhos do amor e da sexualidade na cultura a
partir do século burguês, época em que acontece o auge da idealização romântica
do amor, assim como o nascimento da psicanálise e de uma subjetividade moderna.
Tentaremos demarcar, ainda que de forma resumida, a montagem dos fundamentos da
vida passional moderna, articulando-a a constituição de uma subjetividade
amorosa que pôde ser analisada pela Psicanálise.
As concepções sobre o homem no final do século XIX
se superpunham. A aposta de que se
pudesse ser apenas razão, o centro do mundo e protagonista de uma nova ciência
que prometia acabar com o obscurantismo através do conhecimento convivia com um
espaço ocupado pelo discurso do romantismo, da literatura e da psicanálise que
questionam a razão e apontam suas contradições. A Razão, a luz com a qual todos
esperavam seguir em seu percurso moderno sem garantias transcendentais,
sucumbia, segundo Freud, aos desígnios mais crus das tendências pulsionais
humanas. O ethos freudiano exigia um
confronto com a hipocrisia da época que impunha silêncio sobre o tema tabu da
sexualidade.
No controvertido cenário sociocultural burguês são
inúmeras as tentativas de se organizar o tumulto do surgimento de novas
subjetividades e novas possibilidades de vivências e liberdades de pensamento.
As proibições e o medo dos desvios sexuais causavam incertezas nas mentes
burguesas, o que de certa forma explicava o recrudescimento dos costumes e da
moral religiosa que passam a serem normas de condutas. Sendo o sexo acesso à
vida do corpo e à vida da espécie, ele passa a ter lugar de destaque nos
discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos, no intuito de
focalizar a saúde dos indivíduos, mas também de criar dispositivos e normas
para o prazer sexual. Com a sexualidade crescendo em importância no modo em que
os indivíduos passam a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres,
prazeres, sentimentos, sensações e sonhos, os desregramentos de toda ordem tornam-se
assunto de especialistas (médicos e juristas) e o termo perversão a ser utilizado tanto no campo médico como no jurídico
para designar práticas sexuais proscritas do social, tais como incesto,
pedofilia, homossexualidade, sadomasoquismo, zoofilia. Mas esta higienização promovida pela cultura
burguesa não conseguia impedir o avanço ideológico de um individualismo que
prezava a liberdade de pensamento e se impunha, mantendo a produção de discursos
antagônicos. A literatura da época se ocupava em revelar tal disparidade com
narrativas que ora condenavam a sexualidade a vício e à insanidade ora
exaltavam suas possibilidades de êxtases
prazerosos.
Entre normas, rigores e excessos, a possibilidade de
que amor e sexo pudessem se entrelaçar num único ideal fundando o verdadeiro
amor acena com uma solução ao combinar estes discursos díspares e oferecer
uma medida mista de enaltecimento do sentimento (amor) levado às alturas
com a melhor das emoções (sexo) dentro do casamento. Além de proporcionar
um lugar de aceitação da sensualidade, esta composição cumpria um papel de
coesão social ao responder às expectativas de gestão da moral burguesa.
Esta
eleição do amor como eixo central das escolhas de parceiros e norteador das
vidas de homens e mulheres inaugura uma
verdadeira ditadura do amor no seio das relações familiares. Através de uma
especial análise de suas mazelas, a psicanálise se pôs a elucidar e a propiciar
novas questões ao debate sobre as relações amorosas, a constituição e o
funcionamento das famílias, as relações entre pais e filhos e empreendeu um projeto de conhecimento da
sexualidade humana desenhada pelo inconsciente, apontando o recalcamento
e o lugar de fantasia deste sexual, uma sexualidade em que o sujeito seria ao
mesmo tempo livre e coagido por ela.
Em
sua época, embora a sexualidade despertasse uma crescente atenção, a moral sexual
burguesa tentava abater a importância da ligação do sexo com o prazer. Os casamentos de então pretendiam civilizar as
relações sexuais restringindo-as à sua vigência e impondo limites a vida sexual
de homens e mulheres (principalmente destas). Com isso, as relações sexuais no
casamento não ofereceriam as esperadas compensações, já que estariam sujeitas
aos inúmeros fatores impeditivos de uma relação íntima (falta de métodos
anticoncepcionais mais eficazes, nascimento de filhos, partos, saúde da
mulher), o que levaria a grande maioria das mulheres de volta à abstinência
sexual acrescida de uma desilusão. O esgotamento do desejo acrescido do
desencantamento do sexo começa a dar margem ao surgimento de uma relação muito
próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar, item privilegiado da sociedade
da época, passa a girar em torno deste ninho e
a mulher-mãe ganha as atenções e
a reverência da sociedade. O amor
materno passa a ocupar um espaço social de destaque e o corpo da mulher-mãe
é alçado ao lugar de um paraíso originário.
Embora
fosse condição e critério de sucesso dos casamentos o amor não consegue
garantir o eterno romance conjugal. Surge assim a infância, este tempo feliz
protegido pelo amor dos pais, mas principalmente pelos cuidados de uma mãe
amorosa, espaço que irá assumir o prolongamento do ideal de amor e felicidade
irrealizável dos pais. Aos poucos os filhos passam a representar a esperança da
realização da felicidade almejada pelos pais e o amor dos pais a seus filhos se alimenta da possibilidade de
assisti-los transformarem-se na imagem desta felicidade idealizada por eles:
cria-se um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna. O ideal
de amor romântico, com seu valor político e cultural de regulador das relações
entre os homens e as mulheres se articula a este estreitamento do vínculo mãe-
criança e produz um alocamento de ideal de felicidade na infância. A relação
mãe-filho se torna o pedestal da existência moderna, um protótipo do amor.
Neste
último século a psicanálise ajudou a desvendar este particular contexto
familiar e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar não só
os bastidores conflituosos das relações entre mãe, pai, filhos e filhas como o
lugar privilegiado das funções (amorosas) parentais na constituição do
psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e
reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a
emergência psíquica do bebê. É o rosto da mãe o primeiro espelho da criança,
que depende de seu amor para poder vir a se amar. Mas é esperado que ainda no
seio familiar o bebê possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser
rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava.
Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de obter
novamente este lugar privilegiado e exclusivo, que a criança deverá abrir mão
desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente para dar lugar às
infinitas condições a que ela terá que se submeter, mas que tentará evitar. É neste jogo amoroso
singular entre ela, seus cuidadores e seus irmãos que se construirá sua
subjetividade. O amor dos pais, tão reverenciado, precisa ser na justa medida
entre uma erotização do corpo infantil, fonte do desejo de viver e de amar e certas
rupturas deste estado fusional e primitivo que o auxiliem a entrar na cultura.
Na justa medida entre o prometido, o esperado, o permitido e o proibido cada um deve poder se desvencilhar das malhas
(eróticas e amorosas) do submetimento, da alienação e da fascinação que a
família promove e construir sua rede de relações para buscar um novo lugar no
mundo. A lembrança mítica de um amor incondicional permanecerá na aspiração de
um reencontro amoroso futuro, alimentando o ideal de amor romântico, e fundando
um ideal para o eu. São as mazelas do amor, seu excesso, sua falta, o ódio, a
indiferença, a invasão, que darão forma
a subjetividade de cada um.
Este
também é o tecido da sexualidade humana, não a sexualidade genital, mas a que
participa na construção do desejo humano pela constituição psíquica da criança
e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O que Freud chamou de
complexo de Édipo é uma comédia de costumes encenada por todos os membros da
família, uma arena em que acontecem jogos que fogem às possibilidades de
entendimento e clareza e que em geral se referem às tramas dos amores, das preferências,
rejeições e ambivalências muitas vezes vividas ou imaginadas de forma exagerada
pelas crianças. Sem possibilidades de dar sentido a tantas emoções, resta aos
pequenos fazer valer seus artifícios ao serem chamados a lutar contra suas
perdas na disputa com os genitores e com os irmãos. São estes os indispensáveis
ingredientes das fantasias, responsáveis por colorir suas vidas subjetivas ao
participar da construção das defesas que inventam versões suportáveis (às vezes
atraentes, outras dolorosas) para o que lhes falta e para o que imaginam ser o
que os completaria.
A
identidade sexual é, portanto uma questão de amores. É fruto da história destes
amores que cada um tem, do amor que os pais dedicam um ao outro, a cada um dos
filhos e das identidades dos que inspiram a criança a ser alguém. Ser homem ou
mulher, hetero ou homossexual é um percurso complexo cumprido durante toda a
vida. Para adquirir uma identidade pessoal e sexual cada um precisa se haver
com as perdas que pode suportar e os acordos possíveis diante de um impossível
desejo de encarnar os dois sexos e amar (possuir) os dois genitores. São muitos
os elementos que contribuem para o desenvolvimento da identidade sexual e da
escolha amorosa, seja ela homo ou heterossexual, mas no centro estaria a
possibilidade de admissão de se saber irremediavelmente incompleto. Este seria
um dos dilemas mais importantes tanto de homens quanto de mulheres, condição
para se aceder ao campo da alteridade e ao convívio com as diferenças entre os
semelhantes. Algo como ser possível um eterno ajuste com os ideais de amor e sexo (infantis) inatingíveis.
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