sexta-feira, 20 de março de 2020

Amor,sexo e psicanálise


Amor, sexo e psicanálise

Gisela Haddad

O tema do amor romântico é bastante amplo e inclui um panorama histórico dos caminhos do amor e da sexualidade na cultura a partir do século burguês, época em que acontece o auge da idealização romântica do amor, assim como o nascimento da psicanálise e de uma subjetividade moderna. Tentaremos demarcar, ainda que de forma resumida, a montagem dos fundamentos da vida passional moderna, articulando-a a constituição de uma subjetividade amorosa que pôde ser analisada pela Psicanálise.
As concepções sobre o homem no final do século XIX se superpunham.  A aposta de que se pudesse ser apenas razão, o centro do mundo e protagonista de uma nova ciência que prometia acabar com o obscurantismo através do conhecimento convivia com um espaço ocupado pelo discurso do romantismo, da literatura e da psicanálise que questionam a razão e apontam suas contradições. A Razão, a luz com a qual todos esperavam seguir em seu percurso moderno sem garantias transcendentais, sucumbia, segundo Freud, aos desígnios mais crus das tendências pulsionais humanas. O ethos freudiano exigia um confronto com a hipocri­sia da época que impunha silêncio sobre o tema tabu da sexualidade.
No controvertido cenário sociocultural burguês são inúmeras as tentativas de se organizar o tumulto do surgimento de novas subjetividades e novas possibilidades de vivências e liberdades de pensamento. As proibições e o medo dos desvios sexuais causavam incertezas nas mentes burguesas, o que de certa forma explicava o recrudescimento dos costumes e da moral religiosa que passam a serem normas de condutas. Sendo o sexo acesso à vida do corpo e à vida da espécie, ele passa a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos, no intuito de focalizar a saúde dos indivíduos, mas também de criar dispositivos e normas para o prazer sexual. Com a sexualidade crescendo em importância no modo em que os indivíduos passam a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos, os desregramentos de toda ordem tornam-se assunto de especialistas (médicos e juristas) e o termo perversão a ser utilizado tanto no campo médico como no jurídico para designar práticas sexuais proscritas do social, tais como incesto, pedofilia, homossexualidade, sadomasoquismo, zoofilia.  Mas esta higienização promovida pela cultura burguesa não conseguia impedir o avanço ideológico de um individualismo que prezava a liberdade de pensamento e se impunha, mantendo a produção de discursos antagônicos. A literatura da época se ocupava em revelar tal disparidade com narrativas que ora condenavam a sexualidade a vício e à insanidade ora exaltavam  suas possibilidades de êxtases prazerosos.
Entre normas, rigores e excessos, a possibilidade de que amor e sexo pudessem se entrelaçar num único ideal fundando o verdadeiro amor acena com uma solução ao combinar estes discursos díspares e oferecer uma medida mista de enaltecimento do sentimento (amor) levado às alturas com a melhor das emoções (sexo) dentro do casamento. Além de proporcionar um lugar de aceitação da sensualidade, esta composição cumpria um papel de coesão social ao responder às expectativas de gestão da moral burguesa.
Esta eleição do amor como eixo central das escolhas de parceiros e norteador das vidas de homens e mulheres  inaugura uma verdadeira ditadura do amor no seio das relações familiares. Através de uma especial análise de suas mazelas, a psicanálise se pôs a elucidar e a propiciar novas questões ao debate sobre as relações amorosas, a constituição e o funcionamento das famílias, as relações entre pais e filhos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente, apontando o recalcamento e o lugar de fantasia deste sexual, uma sexualidade em que o sujeito seria ao mesmo tempo livre e coagido por ela.
Em sua época, embora a sexualidade despertasse uma crescente atenção, a moral sexual burguesa tentava abater a importância da ligação do sexo com o prazer. Os casamentos de então pretendiam civilizar as relações sexuais restringindo-as à sua vigência e impondo limites a vida sexual de homens e mulheres (principalmente destas). Com isso, as relações sexuais no casamento não ofereceriam as esperadas compensações, já que estariam sujeitas aos inúmeros fatores impeditivos de uma relação íntima (falta de métodos anticoncepcionais mais eficazes, nascimento de filhos, partos, saúde da mulher), o que levaria a grande maioria das mulheres de volta à abstinência sexual acrescida de uma desilusão. O esgotamento do desejo acrescido do desencantamento do sexo começa a dar margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar, item privilegiado da sociedade da época, passa a girar em torno deste ninho e  a mulher-mãe  ganha as atenções e a reverência da sociedade. O amor materno passa a ocupar um espaço social de destaque e o corpo da mulher-mãe é alçado ao lugar de um paraíso originário.
Embora fosse condição e critério de sucesso dos casamentos o amor não consegue garantir o eterno romance conjugal. Surge assim a infância, este tempo feliz protegido pelo amor dos pais, mas principalmente pelos cuidados de uma mãe amorosa, espaço que irá assumir o prolongamento do ideal de amor e felicidade irrealizável dos pais. Aos poucos os filhos passam a representar a esperança da realização da felicidade almejada pelos pais e o amor dos pais a seus filhos se alimenta da possibilidade de assisti-los transformarem-se na imagem desta felicidade idealizada por eles: cria-se um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna. O ideal de amor romântico, com seu valor político e cultural de regulador das relações entre os homens e as mulheres se articula a este estreitamento do vínculo mãe- criança e produz um alocamento de ideal de felicidade na infância. A relação mãe-filho se torna o pedestal da existência moderna, um protótipo do amor.
Neste último século a psicanálise ajudou a desvendar este particular contexto familiar e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar não só os bastidores conflituosos das relações entre mãe, pai, filhos e filhas como o lugar privilegiado das funções (amorosas) parentais na constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê. É o rosto da mãe o primeiro espelho da criança, que depende de seu amor para poder vir a se amar. Mas é esperado que ainda no seio familiar o bebê possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo, que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente para dar lugar às infinitas condições a que ela terá que se submeter, mas  que tentará evitar. É neste jogo amoroso singular entre ela, seus cuidadores e seus irmãos que se construirá sua subjetividade. O amor dos pais, tão reverenciado, precisa ser na justa medida entre uma erotização do corpo infantil, fonte do desejo de viver e de amar e certas rupturas deste estado fusional e primitivo que o auxiliem a entrar na cultura. Na justa medida entre o prometido, o esperado, o permitido e o proibido  cada um deve poder se desvencilhar das malhas (eróticas e amorosas) do submetimento, da alienação e da fascinação que a família promove e construir sua rede de relações para buscar um novo lugar no mundo. A lembrança mítica de um amor incondicional permanecerá na aspiração de um reencontro amoroso futuro, alimentando o ideal de amor romântico, e fundando um ideal para o eu. São as mazelas do amor, seu excesso, sua falta, o ódio, a indiferença, a invasão, que  darão forma a subjetividade de cada um.
Este também é o tecido da sexualidade humana, não a sexualidade genital, mas a que participa na construção do desejo humano pela constituição psíquica da criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O que Freud chamou de complexo de Édipo é uma comédia de costu­mes encenada por todos os membros da família, uma arena em que acontecem jogos que fogem às possibilidades de entendimento e clareza e que em geral se referem às tramas dos amores, das preferências, rejeições e ambivalências muitas vezes vividas ou imaginadas de forma exagerada pelas crianças. Sem possibilidades de dar sentido a tantas emoções, resta aos pequenos fazer valer seus artifícios ao serem chamados a lutar contra suas perdas na disputa com os genitores e com os irmãos. São estes os indispensáveis ingredientes das fantasias, responsáveis por colorir suas vidas subjetivas ao participar da construção das defesas que inventam versões suportáveis (às vezes atraentes, outras dolorosas) para o que lhes falta e para o que imaginam ser o que os completaria.
A identidade sexual é, portanto uma questão de amores. É fruto da história destes amores que cada um tem, do amor que os pais dedicam um ao outro, a cada um dos filhos e das identidades dos que inspiram a criança a ser alguém. Ser homem ou mulher, hetero ou homossexual é um percurso complexo cumprido durante toda a vida. Para adquirir uma identidade pessoal e sexual cada um precisa se haver com as perdas que pode suportar e os acordos possíveis diante de um impossível desejo de encarnar os dois sexos e amar (possuir) os dois genitores. São muitos os elementos que contribuem para o desenvolvimento da identidade sexual e da escolha amorosa, seja ela homo ou heterossexual, mas no centro estaria a possibilidade de admissão de se saber irremediavelmente incompleto. Este seria um dos dilemas mais importantes tanto de homens quanto de mulheres, condição para se aceder ao campo da alteridade e ao convívio com as diferenças entre os semelhantes. Algo como ser possível um eterno ajuste com os ideais de amor e sexo (infantis) inatingíveis.



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