sexta-feira, 20 de março de 2020

Paixão, amor e escolhas


A Paixão e o Amor

Gisela Haddad
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Eduardo e Monica,  Renato Russo

São  inúmeras as produções culturais que alimentam a idéia de que a vida não tem sentido se não encontramos nosso par amoroso, por isso, na cultura atual, as escolhas amorosas habitam o centro nervoso da relação de cada um com seus eleitos e todos valorizam esta busca e suas questões. Mas como nos apaixonamos? O que faz com que nos sintamos atraídos amorosa e sexualmente por alguém? Como se explica que quando menos esperamos alguém nos leve a experimentar uma aceleração de nossos batimentos cardíacos, um suar frio, às vezes um rubor ou uma inesperada inibição?
Em geral, quando o amor bate à nossa porta sem avisar e sua presença se impõe prescindindo de definições ou apresentações prévias estamos diante da paixão. Considerada o auge do sentimento de amor, na paixão a fronteira entre nós e este outro  ameaça desaparecer e contra todas as provas de nossos sentidos, declaramos que somos praticamente um só, fazendo disso um fato. A  verdade é que a experiência da paixão é a de um amor ideal em que colocamos nosso eleito no lugar de nosso próprio eu idealizado e não mais podemos  distinguir ele de nós mesmos. Apagam-se as diferenças e tem-se a sensação de nada faltar. Toda escolha apaixonada de alguém para amar revela essa captura narcísica  inconsciente,ou seja vemos no outro o que  somos, o que fomos ou o que gostaríamos de ser ou possuir. É assim que imaginamos estar diante daquela pessoa perfeita que faz nosso coração pular de alegria e ficar descompassado de amor. O amor-paixão busca esta complementaridade; amamos para ser amados.
A maioria dos encontros amorosos partilha deste momento amoroso idealizado da paixão. Espera-se, no entanto que aos poucos possa surgir uma relação menos fusional, quando então deverá haver um reconhecimento de cada um  como diferente do outro. Esta pode ser uma diferença entre a paixão e o amor.  
Os neurocientistas estabeleceram  um tempo de duração da paixão, esta magia do amor, normalmente entre 12 e 18 meses, mas embora seja possível através destas pesquisas verificar as alterações físicas e orgânicas desencadeadas neste período de paixão  ou na desilusão que ela  pode gerar, os grandes mistérios do amor continuam a surpreender-nos.  Temos sempre a sensação de que no amor nada está escrito por antecipação, e que seu encontro, ao contrário do espermatozóide e do óvulo, não pode ser programado, assim como não depende dos genes.
E quando estamos vivendo a paixão não só temos a convicção de que o outro pode sanar a nossa falta como a de que nós temos aquilo que lhe falta. Imaginamo-nos capaz de oferecer todo o prazer ao nosso par sem jamais sermos fonte de sofrimento o que cria uma dependência passional. Um é necessário e vital para a sobrevivência do outro, não há possibilidade de se pensar ou desejar algo que não seja voltado para o outro, as divergências são ameaçadoras e a exigência de exclusividade é exorbitante. Vivemos tal e qual uma relação aditiva e alienada.
Na experiência do amor, embora nosso eleito possa ter sido idealmente escolhido, ele precisará se tornar um depositário privilegiado e não exclusivo de nossas demandas de prazer. Cada um precisa ter um mesmo poder de prazer e de sofrimento, o que limita a dependência de um e outro e possibilita certa autonomia dos investimentos que cada um precisa preservar. Podemos aceitar não sermos o único a habitar o desejo de nosso eleito, dar a ele o que não temos ou receber o que não pedimos. O que está em jogo, um em relação ao outro, é uma esperança de satisfação.
A possibilidade de “transformar” a vivencia da paixão na experiência do amor não está garantida antecipadamente e exige um “trabalho psíquico”; esta passagem pode não se dar e mesmo que isto aconteça nada garante que permaneça ou que seja para ambos os parceiros. Vejamos as razões.
 As escolhas amorosas
Nem sempre sabemos quem são aqueles que irão despertar em nós os  rumores ensurdecedores da paixão. É que cada um escolhe seu parceiro em função de suas experiências de vida, suas marcas de prazer e de desprazer, seus modos de sentir o outro ou de interpretar a busca de prazer na vida. Nossa biografia amorosa contém a memória de nosso corpo erotizado, assim como as maneiras singulares de desejar reconhecimento e amor do outro. Na grande parte do tempo essa escolha amorosa se dá de forma inconsciente o que impede que os parceiros conheçam de verdade as motivações de sua escolha.
Estamos sempre buscando em nossas escolhas amorosas as condições infantis de amar, ou seja, tentando reconhecer no outro os traços de nossas relações com nossos pais ou traços que o erotizam, seguindo nossas marcas (registros inconscientes) de prazer. Pode tanto ser um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um de nós uma função determinante em nossa escolha amorosa. Mas escapa totalmente às neurociências, por ser próprio de cada um e ter a ver com nossa história singular e íntima, sempre atravessada por nossas fantasias e pelos ideais que nosso eleito representa como veículo de satisfação.
Uma história que começa quando somos bebê e ainda não podemos separar o que é nosso e do outro, quando dependemos dos cuidados dos adultos (e recebemos tanto o seu amor, quanto seu ódio, desejos, angústias) em geral de forma excessiva e sem possibilidades de adquirir sentido. Neste momento o olhar deste adulto é de extrema importância  para podermos ter uma imagem de nós mesmos. À medida que conseguimos nos distinguir, passamos a ansiar o amor deste outro e vivenciar momentos de submetimento e de insurgência em relação a ele. No percurso em direção ao mundo extra familiar ainda precisamos passar pelas disputas (principalmente com nossos irmãos) na tentativa frustrada de reaver o amor incondicional que supomos ter existido, e que nos dará a chance de ter que reconhecer que há outros entre nós e nossa imagem, dor necessária tanto para que  ansiemos menos avidamente o amor deste outro, como para que possamos suportar que ele  possa ou não amar-nos.
Neste complexo percurso, cada uma das etapas delineia diferentes formas de amar  relacionadas à possibilidade ou não de reconhecermos o outro, reconhecermos o desejo do outro e reconhecermos a existencia de um terceiro (outros) entre nós e o outro. Aquisições que fazem parte de um processo, de uma organização simbólica que permite a cada um de nós fazer esta passagem de um amor primitivo e básico em que nos imaginamos amados incondicionalmente para outro onde é necessário contar com o risco de não ser amado ou ser amado de forma diferente do que desejaríamos. O que complica ainda mais é que mesmo tendo podido avançar na direção de nossa percepção do outro, para muitos de nós, dependendo do que certas experiencias amorosas despertam, nada impede que regridamos à modos mais “primitivos” de nos relacionarmos.
Na relação amorosa podemos assumir duas diferentes posições, ora como o amado, ocupando o lugar de quem é investido pelo outro, ora como o amante, aquele que investe. Quando somos amados, buscamos o que fomos, o que imaginamos que perdemos ou o que gostaríamos de ter sido. Quando somos o amante seguimos o modelo amoroso de nossos cuidadores e suas formas de amar, acolher e proteger. Raramente estas  posições existem em seu estado puro, já que em geral  ora somos o amado ora o amante,   sobressaindo um pouco mais desta ou daquela em diferentes momentos de nossas vidas ou em uma mesma relação amorosa. Mas assim como a maioria das pessoas transitam entre estes dois lugares, outras podem ficar aprisionadas em um deles. Nossa capacidade de amar (parceiros, filhos, amigos) depende de quanto e como fomos amados e do lugar que ocupamos na história de nossos pais; se não pudemos  ser amados em nossa infância, teremos dificuldades para saber amar alguém.
De qualquer forma, existem muitas formas de escolha amorosa, e para cada uma delas o “outro” ocupa um lugar diferente em nossa imaginação. Podemos amar alguém pelas perfeições que gostaríamos de adquirir, ou seja, como um meio de nos sentirmos melhores do que somos. Mas esta escolha pode nos cegar e consumir, ao nos sentirmos cada vez “menos” e nosso eleito cada vez mais perfeito, por não podermos deixar de idealizá-lo. Este tipo de relação tanto pode chegar a um extremo em que o nosso fascínio nos impele a nos submetermos totalmente a este outro, ou ao contrário, enriquecer-nos com o que consideramos serem as “perfeições” de nosso eleito, ao incorporamos algumas delas. Tanto a literatura quanto o cinema exploraram e continuam a nos fornecer repertórios desta diversidade de tons responsáveis por nossas idas e vindas amorosas. O filme Closer (2004) do diretor Mike Nichols oferece esta oportunidade ao apresentar tal como um caleidoscópio, a formação, dissolução e  troca de pares entre quatro personagens (dois homens -Dan e Larry e duas mulheres – Alice e Anna) mostrando os diferentes modos com que cada um dos personagens se posiciona tanto em relação ao seu desejo de amor pelo outro quanto às suas expectativas em relação ao amor deste outro, delineando alguns traços de condição de escolha amorosa e a dança das cadeiras das diferentes posições ( amado-amante) que  cada um assume. E claro, não deixa de fora o lado mais sombrio destas relações, o das disputas, rivalidades, ódio, desprezo, vingança, ressentimento, ou seja, das dores.



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