sexta-feira, 20 de março de 2020

O amor na cultura


O amor na cultura

Gisela Haddad

Para Harold Bloom, William Shakespeare “inventou o humano” quando fez com que seus personagens mudassem (ou se obrigassem a mudar) ouvindo-se a si mesmos. Inaugurava-se a conversa consigo próprio, uma introspecção que não havia na literatura anterior e com ela a importância do conhecimento da dimensão subjetiva e de sua complexidade. Uma dimensão que transpassa a relação de cada um com o mundo, com a significação que dá ao mundo e com a imagem que faz de si, responsável pela heterogeneidade dos modos de funcionamento psíquico.
Podemos dizer que o amor é  o grande protagonista do psiquismo humano, gerando inúmeras histórias que compõem nosso acervo (romance, filmes, músicas),graças ao fato de que nossas relações amorosas passaram a ser, desde nossa infância, as responsáveis pela construção de nossas ficções. São elas que servem de ponte de contato com o mundo e nos auxiliam na composição de um lugar para nós, além de nos fornecer uma história que poderemos achar especial, mas que traz  em seu bojo a repetição dos anseios de cada um. A cada época, graças ao bonde da história que jamais para, podemos nos permitir novas reflexões sobre estes mesmos dramas humanos.
São estas histórias de amor que nos fornecem pistas sobre o percurso do amor na cultura assim como as idiossincrasias da complexa ligação amor-sexo.
A partir  do século XVIII, a ânsia pelo momento de êxtase máximo do ser humano, em que duas pessoas poderiam se bastar uma para outra não necessitando de mais nada no mundo, consumando a realização plena dos desejos, escancarou um debate questionador sobre as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais e as restrições impostas aos sexos.
Stendhal e Balzac são exemplos desta literatura romântica que pretendia questionar ou educar seus leitores quanto aos meandros do amor erótico, também na tentativa (romântica) de evitar seus males e surpresas ou as dores do adultério, tema presente em muitas das ficções da época, em geral para contar as histórias das paixões impossíveis ou de vítimas imaturas e irresponsáveis do desejo. Emma Bovary (Flaubert) e Anna Karenina (Dostoievski) são personagens conhecidos por terem cedido a impulsos amorosos que sua posição na vida, suas obrigações religiosas e as regras de sua sociedade declaravam proibidos. Sabemos bem o destino trágico desta ousadia amorosa. No entanto estas ficções cumpriam um papel relevante ao permitir que através de seus personagens, cada leitor pudesse realizar seus desejos secretos e proibidos ou a sua miséria inconfessa. A infidelidade de Ana Karenina ou Madame Bovary assumia um papel  tanto de redenção quanto de ascese ao proporcionar um êxtase  por sua leitura e ao mesmo tempo finalizar com um banho de moral, acalmando os sentimentos controversos. Não por acaso eram as mulheres o alvo desta controvérsia. A grande inquietação da época girava em torno da sexualidade e em especial do erotismo feminino, que no imaginário masculino seria transbordante, excessivo e incontrolável. Se a literatura (quase que exclusivamente escrita por homens) denunciava este misto de fascínio e medo, os discursos sociais se apressavam em adestrar o corpo e a sexualidade feminina à  procriação e ao casamento e qualquer desejo ou comportamento sexual que extravasasse estes limites era tratado como excesso, degeneração ou patologia.
O amor romântico, embora acenasse com uma solução de controle da sexualidade feminina através do casamento, incitava a junção de duas figuras míticas femininas, a santa e a prostituta, divisão que a cultura se ocupava em caucionar diante da dificuldade dos homens enfrentarem a figura da mulher-mãe assexuada, protótipo do primeiro amor de todos e a figura da mulher-sensual. Sexo e amor confirmavam sua difícil convivência pelo fascínio-medo  da figura da mulher sensual e da mãe cuidadora, cuja junção seria impossível em tal contexto histórico. Pode-se entender porque havia uma grande tolerância social à infidelidade masculina que de certa forma possibilitava aos homens resguardar-se desta atração proibida e inconsciente ao permitir viver o sexo de um lado e o amor de outro. Esta prática serviu para que a infidelidade masculina pudesse ser naturalizada e o adultério feminino condenado (chegando a ser considerado crime até a algumas décadas atrás).
Alguns historiadores dizem que o século XX foi pequeno para conter todos os acontecimentos e mudanças que nele ocorreram, mas sem dúvida as luzes e os holofotes iluminaram a história das mulheres, assim como as crenças, superstições, medos e enigmas com os quais os homens tentaram entender seus desejos, sua capacidade de gerar e criar outros humanos e seus anseios de sair da margem das decisões sobre os rumos da humanidade. A história contada e escrita pelas mulheres é um fato recente e é graças às que passaram a falar ou escrever sobre si mesmas, sobre seus amores e dores, que foi possível construir um acervo de reflexões, sentimentos e intuições próprios, que permite às outras sentirem-se compreendidas em suas dúvidas e dilemas, ou em seus anseios e sonhos. Estas luzes selaram o fim de uma hierarquia entre os sexos, que convencionou um poder e uma liberdade ao homem e um submetimento à mulher.
Sem dúvida a literatura dos primeiros séculos modernos compôs um acervo capaz de elucidar os dramas e dilemas humanos em torno do amor através de uma leitura sensível da paixão e do desejo, das dores e do sofrimento do coração humano,  inaugurando uma prática de despertar em cada leitor sentimentos de identificação ou de idealização ao fornecer palavras aos seus sentimentos e emoções. Mas  no último século o cinema tem sido a grande vedete desta tarefa de nos afetar, ao emprestar suas imagens às descrições literárias, dando contornos e cores à estes personagens. O acervo cinematográfico faz parte integral do imaginário cultural e cada vez mais são usadas referencias e associações com os filmes, suas historias e seus personagens, cujas palavras, cenas e discursos nos apropriamos.
Nas últimas décadas o cinema tem transformado a banalidade de nosso cotidiano em historias de “heróis” modernos, sem nobrezas e grandezas ,sem grande peso às dívidas com o passado ou  às grandes questões morais. Uma cultura que divulga de forma mais rápida as idiossincrasias e as contradições que habitam nosso imaginário, e continuam a nos capturar seja por abrigar nossas fantasias e sonhos, oferecer-nos um espaço de imediatização de satisfações em torno destes, ou pela oportunidade de nos confrontar com os dilemas e dores de nossos amores. Ele nos permite compartilhar uma diversidade de historias que mostram nossas experiências de misérias ou grandezas, alegrias e tristezas, sonhos ou pesadelos. Experiências que podem ser reparadoras e comovedoras da vida cotidiana de todos nós, auxiliando-nos a falar e escrever sobre o que pensamos o que aumenta nosso repertório cultural.
Deste grande acervo cultural são inúmeros os livros, revistas, filmes e seriados que mostram um painel das relações amorosas atuais e desfilam estórias de personagens banais, às voltas com os desassossegos, angústias e dilemas amorosos, ora jogando luz às mazelas do convívio amoroso cotidiano, ora em sua poesia ou em suas cenas eróticas. São filmes, músicas, romances gerados em torno do lugar especial do amor que funcionam como motor e alimento de seu valor. O desejo de uns por outros, sejam estes nascidos com qualquer sexo, ou as grandes paixões, suas decepções, suas dores na busca por alguém especial que comprove, ainda que por algum tempo, que se pode ser amado. Os ciúmes sempre presente, narrado ou encenado, ingrediente inseparável da lógica paradoxal que rege o amor: queremos ser livres e ao mesmo tempo fusionados com alguém que não cesse de nos amar. Graças à intuição dos “poetas”, estes que escrevem roteiros, livros, blogs, e que estão sempre um pouco à frente do tempo podemos captar melhor as nuances de nossa alma, sempre em busca de seu par amoroso.

         Parece que vivemos em um circuito amoroso que se repete indefinidamente em que o amor que é esperado que tenhamos de nossos pais vai nos proporcionar o amor que nutrimos por nós mesmos e fará com que busquemos o mesmo reconhecimento e valor deste amor nos outros que iremos eleger. Espera-se que possamos encontrar maneiras de nos amar mesmo quando não fomos tão amados quanto gostaríamos, e quem sabe buscar através de nossas escolhas amorosas o amor que queríamos ter recebido. Mas o que dizer da hostilidade e do ódio que podem organizar a violência dos encontros humanos a partir da quebra deste circuito que é hoje nosso ideal amoroso moderno? Tornamo-nos reféns do amor e com isso buscamos todos sermos únicos, amados e especiais para alguém assim como acreditamos que fomos ou deveríamos ter sido amados por nossos pais. Até mesmo as normas e leis que regiam as relações familiares há bem pouco tempo sucumbiram ao argumento deste amor. Se a criação de deuses e mitos foi em nosso passado recente uma forma de proteção à nossa fragilidade diante de nossa finitude e uma maneira de respondermos aos enigmas de nossa existência, o amor que hoje permeia nossas relações é um ideal que nos proporciona uma visão de vida, nos oferece alguma remissão e um significado à nossa existência. As inúmeras opções que nosso mundo contemporâneo produz no intuito de nos oferecer felicidade parecem  ganhar mais sentido se forem vividas com nosso parceiro(a) amoroso ou com nossos queridos rebentos. O amor mostra como precisamos deste lugar, ainda que imaginário, em que solicitamos ao outro que nos responda sobre nossa importância. Sobre sermos especiais.



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