O
amor na cultura
Gisela
Haddad
Para
Harold Bloom, William Shakespeare “inventou o humano” quando fez com que seus
personagens mudassem (ou se obrigassem a mudar) ouvindo-se a si mesmos.
Inaugurava-se a conversa consigo próprio, uma introspecção que não havia na
literatura anterior e com ela a importância do conhecimento da dimensão
subjetiva e de sua complexidade. Uma dimensão que transpassa a relação de cada
um com o mundo, com a significação que dá ao mundo e com a imagem que faz de si,
responsável pela heterogeneidade dos modos de funcionamento psíquico.
Podemos
dizer que o amor é o grande protagonista
do psiquismo humano, gerando inúmeras histórias que compõem nosso acervo (romance,
filmes, músicas),graças ao fato de que nossas relações amorosas passaram a ser,
desde nossa infância, as responsáveis pela construção de nossas ficções. São
elas que servem de ponte de contato com o mundo e nos auxiliam na composição de
um lugar para nós, além de nos fornecer uma história que poderemos achar
especial, mas que traz em seu bojo a
repetição dos anseios de cada um. A cada época, graças ao bonde da história que
jamais para, podemos nos permitir novas reflexões sobre estes mesmos dramas
humanos.
São
estas histórias de amor que nos fornecem pistas sobre o percurso do amor na
cultura assim como as idiossincrasias da complexa ligação amor-sexo.
A
partir do século XVIII, a ânsia pelo
momento de êxtase máximo do ser humano, em que duas pessoas poderiam se bastar
uma para outra não necessitando de mais nada no mundo, consumando a realização
plena dos desejos, escancarou um debate questionador sobre as maneiras de amar,
as transformações do erotismo, as práticas sexuais e as restrições impostas aos
sexos.
Stendhal
e Balzac são exemplos desta literatura romântica que pretendia questionar ou
educar seus leitores quanto aos meandros do amor erótico, também na tentativa (romântica)
de evitar seus males e surpresas ou as dores do adultério, tema presente em
muitas das ficções da época, em geral para contar as histórias das paixões
impossíveis ou de vítimas imaturas e irresponsáveis do desejo. Emma Bovary
(Flaubert) e Anna Karenina (Dostoievski) são personagens conhecidos por terem
cedido a impulsos amorosos que sua posição na vida, suas obrigações religiosas
e as regras de sua sociedade declaravam proibidos. Sabemos bem o destino
trágico desta ousadia amorosa. No entanto estas ficções cumpriam um papel
relevante ao permitir que através de seus personagens, cada leitor pudesse
realizar seus desejos secretos e proibidos ou a sua miséria inconfessa. A
infidelidade de Ana Karenina ou Madame Bovary assumia um papel tanto de redenção quanto de ascese ao
proporcionar um êxtase por sua leitura e
ao mesmo tempo finalizar com um banho de moral, acalmando os sentimentos
controversos. Não por acaso eram as mulheres o alvo desta controvérsia. A
grande inquietação da época girava em torno da sexualidade e em especial do
erotismo feminino, que no imaginário masculino seria transbordante, excessivo e
incontrolável. Se a literatura (quase que exclusivamente escrita por homens)
denunciava este misto de fascínio e medo, os discursos sociais se apressavam em
adestrar o corpo e a sexualidade feminina à
procriação e ao casamento e qualquer desejo ou comportamento sexual que
extravasasse estes limites era tratado como excesso, degeneração ou patologia.
O
amor romântico, embora acenasse com uma solução de controle da sexualidade
feminina através do casamento, incitava a junção de duas figuras míticas femininas,
a santa e a prostituta, divisão que a cultura se ocupava em caucionar diante da
dificuldade dos homens enfrentarem a figura da mulher-mãe assexuada, protótipo
do primeiro amor de todos e a figura da mulher-sensual. Sexo e amor confirmavam
sua difícil convivência pelo fascínio-medo da figura da mulher sensual e da mãe cuidadora,
cuja junção seria impossível em tal contexto histórico. Pode-se entender porque
havia uma grande tolerância social à infidelidade masculina que de certa forma
possibilitava aos homens resguardar-se desta atração proibida e inconsciente ao
permitir viver o sexo de um lado e o amor de outro. Esta prática serviu para
que a infidelidade masculina pudesse ser naturalizada e o adultério feminino
condenado (chegando a ser considerado crime até a algumas décadas atrás).
Alguns
historiadores dizem que o século XX foi pequeno para conter todos os
acontecimentos e mudanças que nele ocorreram, mas sem dúvida as luzes e os
holofotes iluminaram a história das mulheres, assim como as crenças, superstições,
medos e enigmas com os quais os homens tentaram entender seus desejos, sua
capacidade de gerar e criar outros humanos e seus anseios de sair da margem das
decisões sobre os rumos da humanidade. A história contada e escrita pelas
mulheres é um fato recente e é graças às que passaram a falar ou escrever sobre
si mesmas, sobre seus amores e dores, que foi possível construir um acervo de
reflexões, sentimentos e intuições próprios, que permite às outras sentirem-se
compreendidas em suas dúvidas e dilemas, ou em seus anseios e sonhos. Estas
luzes selaram o fim de uma hierarquia entre os sexos, que convencionou um poder
e uma liberdade ao homem e um submetimento à mulher.
Sem
dúvida a literatura dos primeiros séculos modernos compôs um acervo capaz de elucidar
os dramas e dilemas humanos em torno do amor através de uma leitura sensível da
paixão e do desejo, das dores e do sofrimento do coração humano, inaugurando uma prática de despertar em cada
leitor sentimentos de identificação ou de idealização ao fornecer palavras aos
seus sentimentos e emoções. Mas no
último século o cinema tem sido a grande vedete desta tarefa de nos afetar, ao
emprestar suas imagens às descrições literárias, dando contornos e cores à
estes personagens. O acervo cinematográfico faz parte integral do imaginário
cultural e cada vez mais são usadas referencias e associações com os filmes,
suas historias e seus personagens, cujas palavras, cenas e discursos nos
apropriamos.
Nas
últimas décadas o cinema tem transformado a banalidade de nosso cotidiano em
historias de “heróis” modernos, sem nobrezas e grandezas ,sem grande peso às
dívidas com o passado ou às grandes
questões morais. Uma cultura que divulga de forma mais rápida as
idiossincrasias e as contradições que habitam nosso imaginário, e continuam a
nos capturar seja por abrigar nossas fantasias e sonhos, oferecer-nos um espaço
de imediatização de satisfações em torno destes, ou pela oportunidade de nos
confrontar com os dilemas e dores de nossos amores. Ele nos permite compartilhar
uma diversidade de historias que mostram nossas experiências de misérias ou
grandezas, alegrias e tristezas, sonhos ou pesadelos. Experiências que podem
ser reparadoras e comovedoras da vida cotidiana de todos nós, auxiliando-nos a falar
e escrever sobre o que pensamos o que aumenta nosso repertório cultural.
Deste
grande acervo cultural são inúmeros os livros, revistas, filmes e seriados que mostram
um painel das relações amorosas atuais e desfilam estórias de personagens
banais, às voltas com os desassossegos, angústias e dilemas amorosos, ora
jogando luz às mazelas do convívio amoroso cotidiano, ora em sua poesia ou em
suas cenas eróticas. São filmes, músicas, romances gerados em torno do lugar
especial do amor que funcionam como motor e alimento de seu valor. O desejo de
uns por outros, sejam estes nascidos com qualquer sexo, ou as grandes paixões,
suas decepções, suas dores na busca por alguém especial que comprove, ainda que
por algum tempo, que se pode ser amado. Os ciúmes sempre presente, narrado ou
encenado, ingrediente inseparável da lógica paradoxal que rege o amor: queremos
ser livres e ao mesmo tempo fusionados com alguém que não cesse de nos amar.
Graças à intuição dos “poetas”, estes que escrevem roteiros, livros, blogs, e
que estão sempre um pouco à frente do tempo podemos captar melhor as nuances de
nossa alma, sempre em busca de seu par amoroso.
Parece que vivemos em um circuito amoroso que se repete indefinidamente
em que o amor que é esperado que tenhamos de nossos pais vai nos proporcionar o
amor que nutrimos por nós mesmos e fará com que busquemos o mesmo
reconhecimento e valor deste amor nos outros que iremos eleger. Espera-se que
possamos encontrar maneiras de nos amar mesmo quando não fomos tão amados
quanto gostaríamos, e quem sabe buscar através de nossas escolhas amorosas o
amor que queríamos ter recebido. Mas o que dizer da hostilidade e do ódio que
podem organizar a violência dos encontros humanos a partir da quebra deste
circuito que é hoje nosso ideal amoroso moderno? Tornamo-nos reféns do amor e
com isso buscamos todos sermos únicos, amados e especiais para alguém assim
como acreditamos que fomos ou deveríamos ter sido amados por nossos pais. Até
mesmo as normas e leis que regiam as relações familiares há bem pouco tempo
sucumbiram ao argumento deste amor. Se a criação de deuses e mitos foi em nosso
passado recente uma forma de proteção à nossa fragilidade diante de nossa
finitude e uma maneira de respondermos aos enigmas de nossa existência, o amor
que hoje permeia nossas relações é um ideal que nos proporciona uma visão de
vida, nos oferece alguma remissão e um significado à nossa existência. As
inúmeras opções que nosso mundo contemporâneo produz no intuito de nos oferecer
felicidade parecem ganhar mais sentido
se forem vividas com nosso parceiro(a) amoroso ou com nossos queridos rebentos.
O amor mostra como precisamos deste lugar, ainda que imaginário, em que
solicitamos ao outro que nos responda sobre nossa importância. Sobre sermos
especiais.
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