A família como foco
Gisela Haddad
Falar sobre família é falar sobre um
assunto que diz respeito à vida de todos nós. E, ao mesmo tempo em que nos
torna parte de um comum - todos têm ou tiveram família – é um assunto de cada
um, já que cada um tem uma história particular sobre sua família.
Mas é justamente por ser parte da cultura em que vivemos e ao mesmo tempo o
berço da vida de cada um que falar de família não é tão simples.
A família pode ser vista como a
unidade doméstica que deve proporcionar condições materiais necessárias à
sobrevivência, como instituição que possibilita uma referência e um local de
segurança, como formadora, divulgadora e contestadora de valores, imagens e
representações, como um conjunto de laços de parentesco, como um grupo de
afinidade, com variados graus de convivência e proximidade, etc. Existe uma
multiplicidade de formas e sentidos da palavra família, construída com a
contribuição das várias ciências sociais e podendo ser pensada sob os mais
variados enfoques através dos diferentes referenciais acadêmicos. É vasta a
literatura tanto das ciências sociais como das humanas que apontam a
importância da família no desenvolvimento psíquico da criança. A proposta deste
curso é que possamos pensar a família para além de suas representações
clássicas, e refletir acerca de seu contexto histórico.
Não tem sido poucas às vezes em que
se escutam declarações de que foi decretada a “morte da família”. Em geral a
estas considerações são acrescidos a certa crise de valores ou à nostalgia do
tempo em que a família oferecia amparo, segurança e bons padrões de moralidade
às crianças.
Para abordarmos este tema,
começaremos apontando os determinantes da constituição da família moderna e sua
articulação com o aparecimento da psicanálise. Tentaremos mostrar como os
conceitos teóricos e clínicos da psicanálise estavam no cerne da constituição
da família nuclear, assim como de muitas de suas modificações.
Um pouco da historia da família, o
final da Idade Média e os ruídos da modernidade.
Uma das diferenças mais importantes
entre o homem medieval e o moderno está na maneira como cada um dava sentido a
sua vida. Para os nascidos antes da Modernidade, este sentido era
prévio.Nascia-se em determinada classe social e lá se permanecia.O filho de um
servo já sabia qual seria seu destino, suas funções e seu modo de
vida segui os passos do modelo de seus pais. Ou seja, as identidades e os
papéis sociais eram atribuídos por herança, seguindo os laços de pertencimento
já definidos ao nascer. Este esquema também funcionava para as famílias
aristocráticas. Carlota Joaquina, por exemplo, tinha apenas 10 anos quando se
mudou da Espanha para Portugal para ser esposa do então príncipe João
e assim cumprir os acordos de posses e poder que uniam as famílias reais. As
princesas nesta época funcionavam como objeto de trocas entre os diferentes
reinos, com o intuito de manter relações políticas e garantir o poder
e estavam desde seu nascimento ( ainda que à sua revelia) destinadas a casar
com príncipes ou reis e enfrentar outras culturas, costumes e
línguas.
É no final da Idade Média que passam
a acontecer as grandes navegações e com elas as descobertas de novos
continentes, o contato com novos povos, novas culturas, a urbanização das
cidades e o surgimento de novos serviços. O homem vê seus horizontes se
ampliarem, novas universidades se espalham pelo continente europeu e na Europa
toda, começa um movimento chamado de Luzes ou Iluminismo, que pretendia se
contrapor as Trevas da Idade Média, em que o conhecimento havia ficado
enclausurado pela Igreja Católica.É bom que não confundamos a questão da fé
religiosa com este período histórico após a queda do Império Romano em que a
Igreja dominou politicamente toda a Europa, impondo de forma totalitária toda a
sua ideologia, além de ditar as regras de convivência, o permitido e o
proibido. A reforma da Igreja questionou o monopólio da verdade por parte das
autoridades eclesiásticas e consolidou o individualismo cristão, segundo o qual
cada um era responsável pelas condutas que atestassem sua fé. A livre
circulação da palavra escrita possibilitada pela invenção da imprensa trouxe o
desenvolvimento do hábito de leituras silenciosas que contribuiu para reforçar
o individualismo e democratizar as possibilidades de reflexão solitária diante
de uma diversidade de textos impressos contendo saberes e opiniões que a Igreja
Católica já não conseguia mais guardar e controlar. Para Lutero, cada fiel,
examinando honestamente sua consciência, deveria julgar o certo e o errado, o
verdadeiro e o falso, pois não existe uma verdade definitiva que possa orientar
a fé de um cristão. Não existe uma palavra acima da palavra dos textos sagrados
para esclarecer os mistérios contidos neles. Lutero foi um racionalista, mas
não um cético. Ele apostou na busca da verdade através da razão. Seu pensamento
inaugurou um novo tipo de sofrimento para o homem ocidental, responsabilizado
por alcançar, sozinho e pela limpidez de sua mente, a verdade e o caminho da
salvação
A crise teológica, em relação à regra
da fé, aberta por Martinho Lutero, aprofundou-se com o pensamento de Montaigne.
O máximo que ele propunha é que é preferível aceitar a regra católica já que é
a mais próxima de nós, mas não temos como nos assegurar de que seja a melhor.
“Escolher” ser um católico, ou sê-lo por tradição, já denuncia que a verdade da
Igreja não é inquestionável.
Aprofundou também uma crise
humanística, ao admitir a diversidade das culturas sem estabelecer entre elas
uma hierarquia de valor. Com isto, instaurou o relativismo cultural e moral,
que ao mesmo tempo enriqueceu e abalou o humanismo da renascença.
Por fim, colocou o dedo na crise do
conhecimento científico: como posso conhecer o verdadeiro ser das coisas? As
coisas não possuem uma essência fixa. Além do mais nós também estamos sujeitos
a nos iludir: nossos desejos nos enganam, nossos sentidos são imperfeitos. Tudo
isso impede de confiar na capacidade humana em estabelecer qualquer ciência
segura.
Em parte esta pretensão moderna foi
abraçada pelos estudiosos da época, famintos que estavam em produzir
conhecimentos confiáveis sobre a natureza e o mundo que os cercava. O preço
deste empenho foi a divisão deste sujeito do conhecimento que se viu entre a
razão e a paixão.
Mas como nós humanos não cessamos de
produzir ruídos a partir de nossas paixões e afetos, surge no cenário moderno um
outro movimento, muito conhecido por todos vocês, o romantismo, que irá
incorporar o que fica excluído do projeto racionalista: o corpo, os afetos e as
paixões e que se impõem como objetos de conhecimento a serem
incorporadas pelo sujeito.
Será diante das perguntas que o homem
se faz para conhecer e conviver com esses ruídos do corpo que não se
silenciam que nascerão as Ciências Humanas, a Sociologia , Antropologia.
O movimento romântico não tem uma
data ou um país de origem e na verdade pode ser abordado de DIVERSOS ANGULOS e
em vários PAÍSES DA EUROPA do século XVIII e XIX, mas é na Alemanha
que ele irá se configurar como um movimento cultural, do qual GOETE é um
dos seus expoentes. É fácil fazer uma busca pelos romances desta época, e
perceber como estes tentam fazer uma conciliação entre a sensibilidade e a
razão. Este novo modo de falar sobre o homem, privilegiando seus sentidos,
trazem à cena uma nova dimensão humana, sua interioridade.
Freud tem um pé em cada
uma destas tradições modernas ,ou seja é médico com uma
formação acadêmico-científica na área de neurologia, fisiologia e anatomia ,
mas mantêm uma interlocução constante com a produção literária e
filosófica do movimento romântico, o que será fundamental
para o nascimento da Psicanálise e sua original teoria do psiquismo. Uma
pequena ilustração destas duas vertentes na sua obra são os textos “Projeto
de uma Psicologia científica” escrito em 1895 e “a Interpretação dos Sonhos”
escrito em 1900.( praticamente simultâneos) No primeiro, onde Freud desejava
construir uma teoria do aparelho psíquico em bases científicas, privilegia os
neurônios, as quantidades, os investimentos e deslocamentos de energia, etc. Em
seu texto sobre a interpretação dos sonhos traz o tema do cotidiano: afinal os
sonhos eram os restos daquilo que interessava ao pensamento científico do final
do século XIX. Se somos individuais, e é nossa consciência que deve decidir o
bom e o verdadeiro, nosso desamparo intelectual fica evidente; nada nos fornece
uma garantia final quanto à verdade e aos caminhos da salvação. Estamos no
mundo sem uma bula confiável para dirigir nossos destinos. A subjetividade
característica do individualismo moderno começou a se diferenciar aqui
Ao privilegiar o individuo, fazê-lo
pensar sobre si, a modernidade inaugura uma forma subjetiva
particular, caracterizada pela interioridade psicológica e pela construção de
identidades fundadas em atributos e sentimentos privados, em que ser alguém é
tornar-se alguém, é conceber sua existência como uma realização pessoal ao
longo da vida.
A família moderna é fruto do
iluminismo e calcada em valores muito mais individualistas em uma época em que
começa a haver o predomínio dos valores democráticos e igualitários que
tornaram possível,pelo menos ao nível das aspirações, a idéia de igualdade e
dos direitos individuais entre homens e mulheres.
O modelo familiar que conhecemos
nasceu de um projeto iluminista que teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal
projeto pretendia transformar a família em um dos maiores ideais de
felicidade humana que seria conquistada pelo laço amoroso, sexual e
exclusivo entre um homem e uma mulher e pela constituição de uma nova família,
assentada pelo amor entre os cônjuges e destes em relação aos seus filhos. Esta
composição de ideais do bem do amor, do sujeito amoroso e da felicidade amorosa
se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos e também funcionava como uma
proposta política para a sociedade burguesa ao prever um arranjo conjugal em
que a sexualidade ganhava legitimidade ao ser integrada ao amor e ao
casamento. Ainda que, ilusoriamente, a família burguesa tenha se pensado como
independente do controle externo, posto que, na verdade, sua constituição foi
historicamente determinada, tal ilusão de liberdade ofereceu as bases para a
noção de que a família se estrutura a partir de três
coordenadas distintas:
-o caráter voluntário: as pessoas se
unem por vontade própria, revelação plena do individualismo na medida em que as
pessoas perdem sua inscrição social e passam a contar individualmente;
-o amor natural: fundamento da noção
de que aquilo que mantém a união matrimonial é a natureza humana e seus
aspectos subjetivos estruturados pelos laços fraternos da paternidade e
maternidade sem interesses econômicos;
-a educação:a finalidade da família é
interna e não externa.
A literatura romântica da época era
pródiga em incentivar o amor como norte para os excessos do sexo.
Quem não conhece os destinos trágicos de Anna Karenina ou de Madame Bovary,
dois exemplos clássicos de paixões que se afastavam dos moldes previstos pela
família? Grande parte dos romances narravam histórias de amor em que sentimentos
de angústia e de sofrimento vividos por seus protagonistas giravam em torno de
um único objetivo: a realização do ideal de amor. Este repertório literário se
alimentava da idealização romântica do amor ao mesmo tempo em que propiciava
cenários de encontros e experiências amorosas cujas paixões e desesperos
passam a ser parte das fantasias humanas. Além disso, as narrativas
românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar uma
interioridade psicológica com identidades fundadas
em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência
amorosa inédita. Um novo conhecimento nascia, uma ciência do homem, de suas
particularidades e singularidades.
O amor romântico, por ser um ideal
reverenciado por toda a sociedade e base importante de um projeto político e
social da família burguesa, passa a fazer parte de um horizonte
futuro da vida de cada um , tornando-se uma aspiração poderosa ao
acenar com a possibilidade de uma felicidade humana terrena em
contraposição aos antigos ideais religiosos. Aos poucos estas
famílias vão se transformando em uma fortaleza afetiva restrita
fundando a vida privada e íntima, característica da era burguesa.
Estes casamentos realizados por amor
passam a apresentar, a longo prazo, um esgotamento do desejo e um
desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito
próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar passa a
depender deste maravilhoso ‘ninho’ e a mulher, promovida
ao papel de mãe, ganha as atenções e a reverência da sociedade.O amor materno
passa a ocupar um espaço jamais conquistado anteriormente na história da
humanidade. O corpo e o coração materno passam a ser o paraíso
originário transformando a mulher-mãe em fonte de cuidados da qual depende toda
a educação e o futuro dos homens. Sendo condição de sobrevivência e
indispensável à educação da criança, o amor materno concede às mulheres um
reconhecimento social importante. Mas se a influência materna passa a ser
decisiva para a criança, os erros e falhas infantis passam a ser fracassos de
sua função de mãe.
Estamos diante do momento histórico
em que a infância é inventada em um compósito entre a idéia de um tempo feliz
protegido pelo amor dos pais e pelos cuidados de uma mãe amorosa e a
preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem
quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. No plano social inicia-se
a interferência pública nos cuidados e proteção à criança, promovendo o
desenvolvimento de leis e de uma infinidade de setores que de forma gradual,
passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do
futuro adulto.
O ideal de amor romântico que
continua a regular as relações entre os homens e as mulheres, começa a se
articular a este estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança e inaugura um
prolongamento deste ideal de felicidade irrealizável na aspiração de um tempo
feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização desta
felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais sustenta-se nesta possibilidade
de assistir a seus filhos transformarem-se na imagem de felicidade idealizada
por eles. Surge assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade
moderna sustentado por esta família.
Nascida neste caldo cultural, a
psicanálise se põe a desvendar este particular contexto familiar e a
complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores
conflituosos das relações entre mãe,pai, filhos e filhas e o lugar
privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano. O
momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a
ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê, mas é
esperado que ainda no seio familiar o bebê possa ser confrontado com sua
humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade
amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder
e o desejo de obter novamente este lugar privilegiado e
exclusivo,que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada
incondicionalmente para dar lugar às infinitas condições
a que ela terá que se submeter mas que tentará evitar. É
neste jogo amoroso singular entre ela e seus cuidadores que se
construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor incondicional permanecerá
na aspiração de um reencontro amoroso futuro. O ideal de amor
romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um ideal para o eu.
A família assume um papel primário na
transmissão da cultura e das gerações, mas ao mesmo tempo em que é
fonte de normalidade é palco das piores patologias. As funções
parentais passam a ser cada vez mais alvo de cuidados públicos. De um espaço
totalmente privado, a parentalidade passa a ser praticamente pública.
Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família se torna o
centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas
características e especificidades para criar todos os tipos de serviços,
cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que
auxiliem o desenvolvimento de seus membros.
À medida que aumentam os saberes
sobre o humano, as funções parentais tornam-se maiores e
mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os
pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do
seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em
que sua subjetividade se constitua e cumprir a função
simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.
A invasão do olhar
público revela o avesso e a fragilidade desta estrutura familiar burguesa. Em
meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam corretivos, a
psicanálise entra pela porta dos fundos ao revelar seus vários descompassos. Um
deles era a falsa moral e as limitações que a cultura burguesa
impunha à vida sexual de todos, mas principalmente das mulheres. Sendo uma
sociedade centrada na autoridade patriarcal as leis de recato sexual pesavam
principalmente para as mulheres, para quem qualquer exposição de sensualidade
era motivo de desconforto. Aos homens era permitido extravasarem seus excessos
sexuais com mulheres moralmente depreciadas.
Mas a própria inauguração da junção do
amor e do sexo como condição de escolha dos pares conjugais abria perspectivas
jamais imaginadas para se questionar as maneiras de amar, as transformações do
erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições
impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar
o tema da sexualidade humana dos bastidores das vidas privadas ao
mostrar que a falsa moral burguesa escondia o temor e a preocupação da
cultura com a incapacidade dos homens gerenciarem o controle sobre seus
impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente começa a haver uma
subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair
por terra o instinto maternal e a raça feminina. Como todos os tabus, o tabu da
virgindade feminina revelava o temor de ambos os sexos em relação à
passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. Fica possível compreender a preocupação
social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina para a procriação
e para o casamento na tentativa de evitar um excesso sexual perturbador.
Acresce-se a isso o fato de ser complicado para os homens a imagem
da mãe-mulher o que induz a uma separação entre a figura da mãe e a figura da
mulher sexuada.
No plano do conhecimento humano
instala-se um embate entre o legado das tradições e as rupturas a
estas que não cessam de se suceder. Reina o pensamento crítico, as idéias de
progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e da
ignorância pela difusão da ciência e da cultura em geral. A
conseqüência é a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos,
políticos e religiosos que pretendem ora analisar ora criticar a convivência de
valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondam aos
alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucedem às antigas.
Foi a Revolução Francesa, as
reivindicações universais por igualdade e liberdade e a afirmação dos direitos
iguais entre todos os humanos, homens e mulheres, que derrubou num primeiro
momento a hierarquia fundada sobre os discursos tradicionais a respeito das
diferenças de gênero. Em reação ao período de desordem revolucionária, a
consolidação da ordem burguesa precisou produzir um pensamento que desse conta
dos deslocamentos já realizados pelas mulheres no novo campo de forças sociais.
O sexo, escreve Laqueur, “foi um importante campo de batalha da Revolução
Francesa (...) a criação de uma esfera pública burguesa (...) levantou com
violência a questão de qual sexo deveria ocupá-la. E em todo lugar a biologia
entrava no discurso”.
Assim, no período em que uma parte da
humanidade conheceu possibilidades de emancipação e progresso inusitadas, a
ciência e a filosofia trabalharam por manter as mulheres atadas à natureza,
enquanto os homens beneficiavam-se de seu novo estatuto de seres de razão. No
final do século XIX, as ciências médicas e biológicas trabalham para atender a
“demandas políticas imediatas para a criação de sexos biologicamente
distintos”, aos quais corresponderiam, é claro, lugares e papeis diferentes
“por natureza”. A mulher burguesa não só é mãe por vocação natural, como tem
seus desejos sexuais orientados e limitados pelas vicissitudes desta função.
Mulheres vocacionadas para o casamento e a fidelidade, pouco interessadas nos
prazeres sensuais e capazes de grandes sacrifícios pessoais em favor das
necessidades alheias, estas eram as mães de família que a natureza deveria
produzir, se nenhum fator patológico viesse desviá-las do projeto original
o parentesco é histórico, contingente
e não transcendente e não se distingue das redes de comunidade e de amizade na
qual se insere: novas redes de parentesco acenam na cultura atual assim como um
novo modelo de filiação. O gênero pode ser pensado apenas como um
devir que estende e subverte os limites do simbólico.O modelo tradicional de
pensar a diferença entre os sexos é historicamente construído, e depende do
modelo anterior em que a heterossexualidade e dominação masculina eram
hegemônicas.
O aumento gradual de um saber sobre si legitima
a construção de uma interioridade e o personagem principal passa a ser a
sexualidade.Não apenas a sexualidade genital, mas a que participa na construção
do desejo humano, com destaque para seu papel na constituição psíquica da
criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O
amor dos pais, tão reverenciado, precisa ser na justa medida entre uma
erotização do corpo infantil, fonte do desejo de viver e de amar e certas
rupturas deste estado fusional e primitivo que o auxiliem a entrar na cultura. Na
justa medida entre o permitido, o proibido e o prometido, cada um deve poder se
desvencilhar das malhas do submetimento, da alienação e da fascinação e
construir sua rede de relações para buscar um novo lugar no mundo.
No pensamento moderno cabe
a cada indivíduo construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um
futuro que não depende mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar
uma aposta em novos sentidos para a existência humana que acenem com
uma maior satisfação, prazer e conforto. A conquista desta
individualidade autônoma se reflete dentro do círculo doméstico fazendo com que
o poder familiar vá se restringindo e os interesses pessoais de seus membros
aumentando em consonância com uma exigência de simetria e liberdade
entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres ganham espaço
público e com o advento dos métodos anticoncepcionais, conquistam o
direito ao amor livre, ao aborto e ao divórcio.
Cada um se torna o único
ou o principal regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo
a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las. Sem as amarras das regras
de aliança,com a flexibilização das interdições religiosas e morais e o aumento
da mobilidade espaço-temporal e social, homens, mulheres,
homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados apenas em escolhas
afetivas e mantidos por acordos e negociações.Esta liberdade incide
tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das
relações quando estas se mostram impossibilitadas de cumprirem os
acordos estipulados.
Muda a realidade
social,despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas.
A formação dos pares conjugais fica independente do sexo ou da orientação
sexual de cada um. O fim dos constrangimentos e das regras
coercitivas sociais mantém apenas o amor como eixo
central da constituição das novas parcerias conjugais e o preço desta aventura
incerta é a redefinição de uma ética e uma estética do convívio amoroso. Com
relações amorosas mais efêmeras os indivíduos passam a
formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que altera de forma
significativa a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre
os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos. A função da
parentalidade passa a questionar as normas sociais que a
regulamentam voltando a ser objeto de análises e busca de ajustes
dos antigos saberes sobre o papel da família na vida da criança.
Os métodos anticoncepcionais e a
biogenética rompem a antiga junção casamento-sexo-procriação. A
concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar
casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só tem o
reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem
uma função parental. Novos modelos conjugais homoparentais ou
monoparentais assumem uma função de parentalidade.
A partir dos novos casamentos que
cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os
núcleos familiares precisam receber os filhos de um ou ambos os
integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a
fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida
diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma
criança pode pertencer simultaneamente a mais de um grupo familiar e
sua circulação entre eles pode ser constante e
organizada ou irregular e informal. Alguns núcleos formam verdadeiras redes que
agregam ex-cônjuges, antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados,
padrastos e madrastas.
A filiação passa a não ser mais
definida pelos laços sanguíneos, legais ou residenciais e sim por
uma filiação social ou sócio-afetiva, fundando um grupo doméstico cada vez que
em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro e de ambos. Um
novo panorama familiar e seus múltiplos e inéditos arranjos é inaugurado.
A escolha do par conjugal não
depende mais de sexo ou gênero. Embora o critério seja o amor e a aposta seja
de futuro, diminui o acento na promessa de amor eterno ou na indissolubilidade
da relação. O vínculo amoroso permanece enquanto é possível manter os acordos e
estes, mais do que nunca demandam contínuas negociações e pactos de
cumplicidade. Ao contrário da estabilidade formalizada à priori nos antigos
casamentos, tais pactos dependem exclusivamente da lealdade e do
comprometimento mútuo, o que permitirá ou não aos pares compartilhar uma busca
de metas a longo prazo que implique um adiamento de satisfações em troca de um
futuro.
Ser pai ou mãe, ou exercer uma função
de parentalidade também passa a depender apenas de um comprometimento. O lugar
do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais
legítimos nem por um homem e por uma mulher. A "função paterna" ou
"função materna" não implica na presença de um homem e de
uma mulher. São funções de cuidados e responsabilidade com o desenvolvimento
físico e psíquico do bebê e com sua inserção na cultura. Embora a família tenha mudado
sua feição e desconstruído seu antigo modelo, o exercício
destas funções continua sendo essencial e necessário para a sobrevivência da
criança.
A horizontalização das relações
familiares faz com que o antigo poder patriarcal passe a ser compartilhado
entre os diferentes membros. As gerações se aproximam nos modos de existir.
Pais e filhos vestem roupas semelhantes, frequentam os mesmos lugares, consomem
os mesmos objetos e fazem trocas antes pouco imaginadas, dando um novo colorido
ao convívio familiar. O mundo contemporâneo ganha pais mais amorosos e mais
preocupados em proporcionar um ambiente protegido aos seus filhos. O
contraponto é que aumenta a tentativa de evitar quaisquer frustrações a estas
crianças. A responsabilidade e a autoridade que o
exercício das funções parentais exige muitas vezes é vista como um lugar pouco
atrativo e constrangedor pelos pais e muito combatido pelas
crianças, embora seja essencial para que possa ser confirmada a
diferença geracional que permite legitimar e sustentar a existência de cada
criança.
Homens e mulheres, pais ou
mães, biológicos ou adotivos se vêem diante do desafio de assumir uma função
parental. Como se responsabilizar por este lugar de acolher, criar e educar as
crianças que lhe cabem? Nas famílias recompostas em que convivem
filho(a)s de outros relacionamentos ou pais e mães adotivos o exercício da
função de pais requer acertos, pactos e alianças que legitimem estas
parentalidades afim de que as crianças possam assumir suas filiações.
Mesmo mantendo o amor como base, o interior de
qualquer grupo famíliar não é só paz e harmonia. A dinâmica entre os
membros familiares é complexa e depende de uma rede de sentimentos e
fantasias que se cruzam.Os excessos são em geral patológicos, as justas medidas
difíceis e a tarefa de construir um espaço que possa suportar os conflitos
entre as expectativas e os fracassos, os sentimentos de amor e ódio, de
acolhimento e autonomia, é infinita.
Apostamos que nossas crianças possam
herdar nossos anseios e insatisfações.Isto faz com que todos se
esmerem em preparar cada vez mais e melhor seus infantes de olho no sucesso que
eles podem vir a ter, satisfazendo sonhos e aspirações.É nesta
conjuntura que surge a adolescência, formada por estas crianças
depositárias de nossa esperança de felicidade e realização. Algo natural já que
a adolescência é o ideal coletivo de todas as culturas que desprezam a tradição
e cultuam a liberdade e a irreverência.
Mas a adolescência vista como um
ideal pela cultura não resolve os conflitos e aspirações dos adolescentes, aumentando
o seu desamparo e o tempo de espera para sua inserção na idade adulta. Eles
passam a ser vitimas da contradição entre o ideal contemporâneo de
autonomia e a imposição da continuação de sua dependência.Sentem-se aptos a ter
sexo, amor e trabalho, mas lhes é imposto uma espera para produzir, ganhar e
amar.
Entre outras funções, o casal
parental serve como porta-voz das crenças, ideais e proibições que fazem parte
de um discurso social amplo, ao qual também estão assujeitados. A mãe e o pai
serão os primeiros a veicular inconscientemente significações culturais
introjetadas em um determinado contexto histórico; por exemplo, as modalidades
de alimentação do recém-nascido, o período do desmame, o controle de
esfíncteres e a permissividade ou controle diante do mundo. A libidinização
corporal, a educação sexual e as expectativas identificatórias são
significativamente marcadas pelos ideais e pelas proibições culturais, assim
como a definição de determinados papéis paras meninas e meninos e da atividade
ou passividade das atitudes em função do gênero. A criança tem por missão
perpetuar a linha geracional, assegurando a continuidade da identidade familiar
e o fortalecimento do espaço narcísico. Ela deve partilhar enunciados
históricos familiares, por vezes às custas de sua integridade psíquica, já que
esses enunciados eventualmente podem contradizer suas próprias percepções
internas e externas. Neste sentido, cada sujeito retoma o discurso do “mito
fundador do grupo”, que inclui ideais e valores culturais, e é fundamental para
a problemática do grupo familiar transculturado. Seria ingênuo afirmar que as
novas configurações familiares provocam muitos males atuais, num moralismo
simplista e redutor. É certo que a passagem de um modelo de referências mais
rígidas e autoritárias para este em que reina absoluto o amor parental, deixou
os pais desorientados em relação ao compromisso e a responsabilidade que lhes
compete na tarefa de auxiliar seus filhos a se tornarem gente. As novas
gerações de pais, seguindo a ideologia individualista e a alta oferta de
auxílios para a infância , tentam evitar os erros das gerações anteriores,
buscando modelos mais perfeitos e às vezes negando o
legado de seus pais. Muitas vezes, segundo Khel, instala-se certa nostalgia dos
modelos anteriores e um sentimento de dívida para com a idealização
deste modelo. Mas as novas configurações podem ser enriquecedoras
para todos, ampliando os leques identificatórios para as crianças e
possibilitando aos adultos criarem novas formas de exercício da tarefa de
transmitir aos mais novos sua experiência singular de humanidade.
O pai tinha a autoridade de senhor
político e religioso, tinha o poder de fundar e garantir. O poder e a
autoridade do pai eram hegemônicos tanto no espaço público como no espaço
privado da família, reinando sobre a mulher e o destino dos filhos. Esse poder
se exercia não apenas pelo exercício da força, seja física, seja militar. É
claro que o mais forte tem o poder de submeter o mais fraco à sua vontade, mas
essa forma de poder não lhe confere o poder da autoridade legítima, o poder de
lei. A chamada “lei do mais forte” é uma distorção do conceito de lei
simbólica. É a diferença que existe entre dizer “eu sou a lei” e ser
representante da lei. Ser representante da lei é estar submetido à castração
também.
Submeter o outro à própria vontade,
seja homem, seja mulher, sempre foi
e sempre será o impulso intrínseco do
ser humano. Dadas as condições, sem a perspectiva da proibição e de punição, a
exigência pulsional é de submeter oudestruir a tudo e a qualquer um que se
oponha à sua satisfação
A clínica com crianças nos mostra o
quanto pode ser difícil constituir-se como sujeito sem contar com pais da
realidade que dêem suporte a isso. Assim, podemos pensar que a forma como um
pai da realidade se apresenta não é indiferente para o filho. O pai pode
apresentar dificuldades de encarnar um pai imaginário tirânico, necessário num
dado momento da constituição do sujeito.
Momento de passagem do estado
soberano para o estado moderno, em que o poder que emana do rei dá lugar a uma
forma de poder anônimo, incidindo sobre os corpos, que é o poder disciplinar,ao
qual o rei, destituído de suas insígnias, é, ele também, submetido. A
disseminação de dispositivos disciplinares faz ressaltar, da norma
instituída,aquilo que é sua exceção, ou seja, os pontos de resistência ao poder
disciplinar que dão origem à produção de anomalias, justificando a criação de
novas disciplinas que, de forma especial, visam à normalização dessas
anomalias.No contexto dessa relação de poder, ocorrem as condições para o
surgimento da psicanálise, a partir de um processo que leva à implantação do
modelo familiar na psiquiatria, já no final do séc. XIX. Na medida em que a
família é ela própria psiquiatrizada, tornando-se sua soberania permeável ao
discurso disciplinar, uma relação estreita é estabelecida entre o espaço
familiar e os dispositivos disciplinares: de um lado, a família se encarrega de
designar o indivíduo anormal no seu interior, aquele que não se submete ao regime
disciplinar que passou a reger também a vida doméstica; de outro, a disciplina
psiquiátrica acolhe os anormais apontados
pela família sob a promessa de
refamiliarizá-los, de devolvê-los dóceis
à disciplina reinante no seio da
família. É nesse ponto que se constitui o que Foucault chama de função-psi,
descrita como um discurso que assinala o fracasso da soberania familiar,
evidenciado no caráter indisciplinável do indivíduo. A psicanálise funda-se aí,
nesse modelo da psiquiatria familiarizada. tanto aquela calcada na referência à
soberania do pai quanto a que investe de poder a figura da mãe preservam a
marca familiarista que reenvia à disciplina, reforçando o jogo estabelecido
entre soberania familiar e funcionamento disciplinar.
A modernidade, ao proporcionar o
advento de um sujeito centrado na razão individual , um sujeito soberano em
relação a suas certezas e suas representações, não tutelado por Deus e suas
instituições terrenas, estabeleceu uma configuração subjetiva muito particular
no que diz respeito à relação entre o eu (identificado com a razão e a
consciência) e o inconsciente. Meu interesse, como o de muitos psicanalistas
hoje em dia e também historiadores e filósofos, é entender como é que, do
sujeito solar, racional e auto centrado que a modernidade constituiu, surgiu o
sujeito do poema de Ungaretti, que percebe seu eu como um mísero barquinho
entregue às correntes e às tempestades do oceano libidinoso que ele não
controla.
A modernidade contém tanto
“civilização” quanto “barbárie”. Contém os sistemas de pensamento da certeza
absoluta, que produzem fanatismo, intolerância e não comportam a alteridade, e
os sistemas de pensamento que não buscam a totalização e suportam a falta de
uma verdade absoluta: este é o pensamento que se abre para a alteridade. A
modernidade contém os dois sistemas de pensamento, da dúvida e da certeza, que
vou qualificar como a civilização e a barbárie, já que são as certezas
absolutas que justificam a intolerância e a violência em relação ao diferente.
Atributos como “sangue”, casta,
posição na ordem familiar, profissão transmitida de pai para filho através das
gerações, etc, perdem consistência ontológica com a mobilidade de classes
estabelecida pelo capitalismo; do mesmo modo as certezas conferidas pelo
reconhecimento da comunidade em que as pessoas passavam suas vidas, as certezas
morais e cognitivas transmitidas pela tradição, a segurança de um destino
preestabelecido pelo projeto de um Deus onisciente, todas elas desmancham-se
rapidamente no ar das sociedades industriais, laicas, urbanas – modernas,
enfim.
Onde falta o ser, proliferam os discursos.
O homem moderno é um pesquisador minucioso das coisas humanas e um autor
compulsivo de sua própria biografia. Confessa-se, descreve-se, explica-se,
tenta fixar em palavras faladas ou escritas a permanente incerteza sobre quem
ele é. O ser não nos é dado; o ser se constrói, ao longo da vida. Construir o
ser é constituir diferenças. A diferença entre homens e mulheres, objeto de
investigações filosóficas desde a antiguidade, foi investida de uma enorme
quantidade de saberes que procuravam encontrar na natureza dos gêneros alguma
espécie de verdade sobre o ser.
O modelo idealizado de família
voltada para a produção de bem-estar, em que deveria bastar ter seu fundamento
no amor entre os membros, demonstra quase sempre ser um terreno fértil na produção
de violência psíquica. Sendo a razão de seu viver e fruto de um alto
investimento dos pais, a criança passa a carregar inúmeras e muitas
vezes descabidas expectativas por parte destes. A dívida amorosa pode se
converter em sentimentos de culpa tanto pela incapacidade de cumprir
com as expectativas quanto pela sensação de não amá-los tanto quanto esperam.
Paradoxalmente, apesar da imensidão
de saberes que a ciência produziu e continua a produzir dirigido aos cuidados e
às necessidades do bebê e de seu futuro, e a profusão de cartilhas variadas, famílias,
pais e crianças seguem meio órfãos a buscar amparo em novas redes de
sustentação. É certo que o imaginário cultural coloca a criança e a infância no
centro de suas preocupações presentes e futuras e cobra modelos
idealizados das funções parentais.Também são inúmeras as tentativas
de instrumentalizar estas funções ou oferecer suplência a elas.
Apesar de suas contribuições
importantes, muitas já incorporadas ao imaginário social, um século
de psicanálise e a revelação da existência de um inconsciente
humano, de motivações escusas e de difícil acesso, não conseguem impedir que
o psiquismo humano resista insistentemente à emergência deste inconsciente, nem
que novos sintomas psíquicos sigam sendo produzidos diante do que
escapa a interpretação humana.
Ao que parece, o projeto
moderno da busca da felicidade e de um bem estar geral não encontra soluções definitivas,
mas segue construindo novas e desafiadoras experiências. A despeito
deste destino conturbado, o ideal de amor romântico mantém-se como norte na
formação dos pares conjugais e na relação dos pais e seus filhos, mesmo
ocupando um lugar fetichizado ao não esconder suas promessas
ilusórias.Também a família com suas novas facetas, permanece sendo o espaço que
pode propiciar a cada rebento tornar-se gente grande, construir um futuro e um
lugar no mundo para ser reconhecido por seus pares. Uma visão idealizada, mas
necessária para que se possa imaginar um mundo futuro em que indivíduos
possuam um lugar de construção de si e de transmissão dos valores geracionais e
culturais.
Usufruindo de um mundo novo
tecnológico, com confortos e benesses jamais vistas,o novo sujeito e seus novos
valores inauguram uma nova família. Novos tempos, novas mulheres novos homens.
Nasce uma nova subjetividade mais
ancorada na exterioridade da imagem corporal e na fruição das sensações
físicas. São novos ideais, novos modelos de pensamento, novos repertórios de
condutas,novos jogos de linguagem, novos sentidos ou verdades que dão
consistência ao imaginário social .Com a ciência como geradora de verdades e
sentidos para o mundo e para o individuo e a explosão das tecnologias
cognitivas que tem transformado e redesenhado a nossa visão do mundo, o modo
como os indivíduos se subjetivam se modificou, inaugurando um discurso em que a
dimensão biológica começa a sobrepujar a psicológica. Ao lado de tristezas,
apatias , temores, surgem depressão, pânicos, distmia. A fronteira entre
privado e publico fica tênue e o mal estar tende a se situar no campo da
performance física ou mental, expressando muito mais as incompetências, as
insuficiências e as disfunções.O bem estar é um dever e o mal estar sinal de
incompetência.Por outro lado este quadro torna mais visível que nos
constituímos pelos laços sociais e que nossa autonomia é relativa e implica
dependências importantes.A ação humana vai se livrando dos limites de sua
biologia retirando cada vez mais a “naturalidade” das concepções sobre o
humano. Mas a psicanálise continua interrogando a experiência humana. Todos
setores que se cruzam na pretensão de estudar o humano necessitam refletir
necessariamente sobre o individuo, a família, a fronteira entre privado e
publico. Mas a despeito de todo o progresso do conhecimento algo de humano nos
escapa: a natureza estorva a cultura, o gozo insiste sobre as leis.
Nossa ética é uma ética baseada na individualidade
e são nossos afetos que fundamentam hoje nossas ações morais.Uma cidadania
emocional que convoca a cada um sentir o que o outro está sentindo. A ética
viabiliza o convívio entre os indivíduos.
Curso ministrado em Sorocaba 2011
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