segunda-feira, 23 de março de 2020

KASSEL: UM CERTO OLHAR (2012)



KASSEL: UM CERTO OLHAR (2012)

GISELA HADDAD1

Documenta de Kassel? Já tinha ouvido falar sobre esta exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos na Alemanha e me empolguei com a ideia ir até lá conferir sua fama. Depois de uma semana de mergulho na cultura berlinense, nada parecia mais apropriado, inclusive pela oportunidade de viajar pelos moderníssimos trens alemães.

Cidade de uns 200 mil habitantes, Kassel recebe a todos que chegam a sua estação para a Documenta com um tapete vermelho. Um jeito simpático e de certa maneira despojado de anunciar a importância deste período de cem dias em que a cidade é sede desta respeitada mostra. Também um jeito de avisar os desavisados como eu que se está diante de um evento muito maior do que se imagina. Em sua 13ª edição - a primeira foi idealizada em 1955 por Arnold Bode, professor de arte e design que, diante de uma Alemanha pós-guerra devastada (também) culturalmente pela ditadura nazista, pretendia abrir um amplo debate sobre as artes, preservar as tendências e reposicionar a Alemanha no circuito internacional cultural.

Quando se é um visitante do país, na atualidade, não é difícil se deparar com este espírito de reconstrução - não só geográfica, política ou cultural, mas também moral. Há um grande empenho não mais em romper com a herança sombria do passado, mas em repará-la continuamente. Berlim, em especial, expõe suas feridas sem nenhuma concessão, lado a lado com as melhores atrações das vanguardas culturais, artísticas e musicais.
Quem desce na estação central de Kassel é capturado pelo “colorido” formado pelas pessoas. São muitos os que fazem parte do mundo das artes e se organizam para estar em algum momento na cidade. E, quando se tem apenas dois dias, um planejamento dos espaços e artistas a serem visitados é mais do que necessário, incluindo aí a apreciação das obras das quatro artistas brasileiras desta edição - as esculturas de Maria Martins (1894-1973) e a produção atual de Anna Maria Maiolino (1942), Maria Thereza Alves (1961) e Renata Lucas (1971).
Na continuidade, imerge-se em um mundo habitado por pessoas que pensam a arte atual como uma forma de surpreender, de trazer novos sentidos ao que já se conhece. De apresentar nosso mundo arte-cultural como um enorme espaço sem fronteiras, mesmo quando são apresentadas suas diferenças e marcas. Uma arte engajada, que se propõe pensar o futuro da vida humana por meio de todos os debates possíveis, em relação à natureza, às novas formas de política, à sustentabilidade ou ainda às formas de sobrevivências econômicas, éticas e emocionais. Arte em movimento, sempre a absorver os novos conhecimentos, a se renovar.

Para a curadora desta edição, a escritora ítalo-americana Carolyn Christov-Bakargiev, uma arte que não é feita apenas por artistas, mas que inclui historiadores, filósofos, físicos, ativistas ambientais, todos convidados a refletir sobre as incertezas e os riscos que nos rondam, sobre a situação do mundo atual. Por isso seu time foi composto por gestores provenientes das áreas de artes, filosofia, biologia, física, antropologia, política, arquitetura e economia, e as obras de 150 artistas de 55 países, escolhidas sem que o critério fosse necessariamente fazer parte das estrelas do cenário contemporâneo. Utilizando para as obras, além dos museus e do parque, um grande e eclético número de espaços espalhados pela cidade - a nova e a velha estação de trem, um hotel, um bunker, um campo de concentração, um hospital desativado - o panorama geral estava mais para o sensível e significativo do que para o espetacular e majestoso.

Talvez o exemplo mais interessante desta caracterização seja o dos dois trabalhos da dupla canadense Janet Cardiff  e George Miller. Em um deles, talvez o mais genial, cada visitante deveria seguir o monitor de um Ipod em uma visita guiada pela voz da artista através da movimentada estação de trem, percorrendo o mesmo percurso que ela fez no dia da gravação do vídeo, surpreendendo-se com as intervenções de bandas, bailarinas, vozes, sons de pelotões nazistas, silêncios ou ainda interrupções artificiais. É inevitável que o passado e o presente, o real e o virtual se entrelacem.

A mesma dupla assina outro emocionante sound art, com caixas instaladas entre as árvores do Karlsaue Park (o majestoso parque da cidade) que recriam os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, o transporte de judeus aos campos de concentração e que termina com vozes maravilhosas de um coral. Uma maratona rápida e intensa da qual não se pode sair incólume. Numa palavra? Belíssimo!


1 Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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