sexta-feira, 23 de novembro de 2018





Sobre  o Ressentimento

Gisela Haddad

Este trabalho tenta pensar o ressentimento, afeto conhecido e próximo de nosso cotidiano, a partir das concepções de Nietzsche, entrelaçando-se com o que parece ser  uma certa configuração psíquica presente naquilo que tem sido chamado de novas formas de subjetividade. Destacamos duas questões que podem ser levantadas a partir deste fenômeno clínico, uma econômica, relativa a pulsão de morte onde o ressentimento se assemelharia a uma melancolia às avessas com estreita associação com o masoquismo, e outra, dinâmica, na problemática do reconhecimento intersubjetivo, onde o ressentimento parece ser a expressão de uma servidão voluntária ao narcisismo.

          


Na pesquisa do campo semântico, o termo ressentimento no dicionário do Aurélio diz respeito ao sujeito que está magoado, aquele que se melindra com facilidade ou que sofreu os efeitos de abalo, dano ou moléstia. Em espanhol a palavra correspondente é remordimiento e define-se como a amarga e arraigada lembrança de uma injúria particular, da qual se deseja tirar  satisfações. Pode-se dizer que seu sinônimo é a palavra rancor, que vem do latim e que quer dizer queixa, querela, demanda. Já em francês, ressentiment traz em sua etimologia a repetição de uma vivência cuja qualidade da emoção é hostil.
Quem primeiro se debruçou sobre a questão do  ressentimento  foi Nietzsche, filósofo alemão (1844-1900) que, ao se propor fazer uma genealogia da moral não desejava apresentar novos valores ou reforçar outros já existentes e sim questionar a própria existência dos valores. Filho de um pastor luterano (dado que não deve ser desconsiderado) Nietzsche afirmava que a partir da vigência da ética judaico-cristã, teria havido uma inversão nos valores da humanidade e explicava este fato através do que ele chamou de moral dos escravos e moral dos senhores.
Para se tentar entender melhor seu legado bastante denso e de difícil acesso, devemos nos reportar a sua visão antropológica e histórica do início da humanidade onde o humano ou o que ele chama de “a besta loira” teve de abdicar em parte de sua liberdade para viver em comunidade e com isso aprender a respeitar regras, aprendizado este que foi feito em cima de dor e sofrimento e não de altruísmo.
Nesta convivência, cria-se então uma relação credor/devedor e, na medida em que o devedor não paga a sua dívida ou não cumpre sua promessa são criados métodos de castigo que, pela coerção imposta pela dor e sofrimento faz surgir uma memória da dívida ou uma consciência de culpa. Isto é o que Nietzsche vai chamar de má consciência, ou seja, a consciência do dever não cumprido e das terríveis consequências disso.
Surge daí uma hierarquia de valores, tendo no topo os que dominam, nas camadas mais baixas os dominados e, para administrar esta relação hierárquica de senhores e escravos, os sacerdotes.
Segundo Nietzsche serão os sacerdotes judeus quem, em virtude de sua impotência, inverterão os valores ao propagar a vingança dos escravos contra seus mestres, utilizando-se de uma artimanha ideológica- o ethos da caridade- infectando os senhores com a mentalidade de escravo e roubando sua vitalidade natural, sua insolência agressiva e autocrática, iniciando uma moral do ressentimento. A principal marca desta moral é o ideal ascético, que despreza as coisas materiais do mundo e coloca as esperanças numa vida além. O sacerdote encarna esta contradição de usar a hostilidade e o ressentimento como fator de preservação da vida.
 A atualidade desta análise da subjetividade humana merece ser destacada aqui, como uma forma patológica de se defender, onde há uma escolha deliberada de abrir mão da liberdade em prol de um submeter-se ao outro, acreditando que ele tenha meios de se responsabilizar  e cuidar. 
Segundo alguns autores, Nietzsche, além de ter encontrado o termo ressentimento nas traduções francesas do escritor russo Dostoievski também teria se inspirado  em alguns personagens de seus livros, personagens esses que,  ao se sentirem imensamente infelizes, rompiam com a religião e construíam sua própria ética  fundando o protótipo de um novo homem.
Ao contrário dos ressentidos, este novo homem  teria a coragem de assumir a realidade de um mundo onde Deus estaria morto sem que isto significasse uma vida sem sentido. Para Nietzsche isto era liberdade, era a possibilidade do homem construir o seu próprio destino sem arrependimentos, era o que ele chamava de superhomem.
Para evitar o enfraquecimento o homem deveria assumir uma perspectiva além do bem e do mal, além da moral, o que não significava além do bom e do mau. Bom seria tudo que intensificasse esse sentimento de potência no homem e mau seria o que proviesse da fraqueza. Um humano capaz de se responsabilizar pelos seus atos.
Podemos dizer que na mesma linha de Freud, mas por vias diferentes, Nietzsche  intuiu o papel do inconsciente na vida humana ao denunciar que as “intenções” de algumas escolhas estariam a serviço de algo com o sentido inverso. Tanto a ideologia quanto a moral e a religião seriam faces ressentidas da impossibilidade do homem assumir seu próprio destino. Muitos anos depois da morte do filósofo, Freud escreveria seu texto “O futuro de uma ilusão” onde colocaria a religião como uma necessidade do ser humano suportar seu desamparo originário ou sua impotência.
Muitos autores usaram esta teorização sobre o ressentimento em Nietzsche para explicar as revoluções onde a inveja destrutiva dos que nada tem pelos que possuem, incitaria as massas e daria um motivo às desordens. Foi Nietzsche também quem cunhou o termo “sacerdotes ascéticos” para designar intelectuais (jornalistas, escritores, filósofos) fracassados ou amargos, cuja insatisfação pessoal leva-los ia às suas vocações como militantes políticos e revolucionários.
Ao descrever seu “superhomem”, Nietzsche talvez achasse assim como Freud, que ele poderia aceitar sua natureza pulsional sem amargura e encontrar um destino de grandeza ao exercer um domínio sobre este caos. Na verdade toda a questão do ressentimento estaria nessa impossibilidade de negociar com a satisfação dessas pulsões eróticas ou destrutivas, fato que fez com que Freud se debruçasse sobre o que ele chamou de inconsciente para teorizar a respeito dos complexos  percursos  que resultariam dessa luta.
Nietzsche se antecipa a Freud na tentativa de descrever essas duas forças antagônicas, as da destruição e as da construção ou o duelo da vida e da morte que o homem teria que se haver. 
Poder-se ia pensar que o homem contemporâneo, vivendo em um mundo onde a individualidade atingiu seu momento máximo, possibilitando que se assumisse a responsabilidade de sua vida privada e que arbitrasse sobre o certo e o errado com total liberdade, conseguiria finalmente  ser este superhomem imaginado por Nietzsche, com espaço para viver suas paixões, mas sendo forte o suficiente para administrar sua natureza pulsional.
Mas o que vemos em termos de subjetividade correspondente não confere. Muito se tem escrito e questionado sobre as novas formas de subjetividades determinadas pela pós-modernidade, e parece que a humanidade não escapa nunca de produzir novas formas de sofrimentos. Penso que o ressentimento é o sintoma que pode estar denunciando que esta transcendência de valores  almejada e alcançada pelo homem não traz a felicidade esperada, pois o aumento da responsabilidade sobre o próprio destino aumenta o efeito da desilusão e favorece  esta configuração psíquica.   
O ressentimento é um afeto próximo, conhecido e usado desde sempre no senso comum. Quando se pesquisa a palavra pela internet, encontra-se vários sites, alguns ligados às comunidades religiosas, que, utilizando-se de um discurso de autoajuda, referem-se à maneira como se deve proceder para evitá-lo e todas as consequências nefastas que se produzem quando isto não é possível.
Usado geralmente como adjetivo com sentido pejorativo denotando um certo desprezo ao portador do mesmo, o sujeito ressentido é facilmente condenado pelas pessoas que em geral se consideram isentas de tal discurso. Em um artigo da revista Época o jornalista Augusto Nunes trata do ressentimento como o 8º pecado capital fazendo referência ao modo como algumas pessoas públicas destilam eternamente suas mágoas atribuindo seus fracassos a alguém numa digestão interminável. “Frequentador dos subúrbios da ira, sobrinho do orgulho e primo da cobiça, o ressentimento é irmão da inveja, com quem costuma ser confundido” diz o jornalista.
Colocar o ressentimento como o 8º pecado capital é classificá-lo como um sentimento de certo modo inaceitável, que as pessoas não deveriam ter ou sentir. Entretanto é quase unânime este modo de ver as pessoas que se ressentem facilmente, e principalmente aquelas que parecem não poder esquecer jamais as desfeitas sofridas, e que muitas vezes aos ouvidos incrédulos dos outros, repetem suas histórias magoadas, destilando seu rancor às pessoas implicadas.
Tão inquietante que  o psicólogo e doutor Frederic Luskin publicou um livro intitulado “O poder do perdão”, em que discorre sobre uma pesquisa feita na Universidade de Stanford, onde o ressentimento é definido como algo que pode e deve ser superado, e que o ato de culpar os outros ou apegar-se a mágoas faria com que a vida pessoal e profissional se desorganizasse, possibilitando tomar decisões equivocadas além de liberar substâncias químicas do corpo associadas ao estresse. Em compensação, ao aprender a perdoar, o indivíduo deixaria de desempenhar e identificar-se com o papel de vítima, e passaria a desfrutar de uma vida com saúde e satisfação.
Sem dúvidas, não se deve desconsiderar o incômodo que nos causa o discurso ressentido por clamar repetidamente e de forma hostil seu lugar de vítima. Mas é por sabermos que o sujeito ressentido sofre, prisioneiro que é de seus sintomas, que nos dispusemos a pensar um pouco sobre o que se passa nos subterrâneos de seu psiquismo.
O recorte que se pode fazer olhando a maneira como o ressentimento incide na vida de algumas pessoas, comprometendo e marcando um sentimento de menos-valia e um discurso onde o outro é o eterno impecilho também foi feito por Kancinper, psicanalista argentino que dedicou um livro ao tema. Ele coloca o ressentimento no bojo dos complexos edipianos e fraternos e situa o sujeito ressentido num circuito entre a pulsão de morte, narcisismo e como uma consequência direta da inveja.
   Em seu estudo sobre o narcisismo, Hugo Bleichemar coloca o ressentimento como uma das compensações possíveis diante da necessidade de se dar conta da renúncia à satisfação pulsional. Para ele os sofrimentos narcisistas aumentam com a insatisfação do desejo principalmente porque marcam a dependência do sujeito ao outro, no qual as suas satisfações se esgotam. Gozar passa a ser a prova de uma integridade narcísica preservada e a inveja do outro atinge o seu ápice quando se imagina que este goza sem conflitos, ou melhor, sem inibição, sem culpa, e sem vergonha. O domínio sobre as pulsões é sempre algo perseguido e a impossibilidade de saciar a necessidade de domínio provoca a raiva narcisista negando ao sujeito a possibilidade de liberá-lo do desejo.
Gabriel, um executivo bem colocado no mercado, trabalhando numa empresa cuidadosamente escolhida, ressente-se por   estar sempre insatisfeito, de olho em  cargos de empresas com  maior prestígio que a sua. Enquanto sonho impossível, a empresa de seus sonhos é tudo o que ele parece querer para se sentir finalmente satisfeito. Durante o processo rigoroso de seleção a que se submete, o medo de fracassar coloca-o diante de sua impotência, e o seu ressentimento re-aparece .Gabriel supervaloriza sua impotência o que justifica seu rancor recorrente e o torna prisioneiro de seu ressentimento. Quanto mais liberdade e soberania ele poderia ter para fazer suas conquistas, mais sedutor parece ser abrir mão disso e transferir ao outro esta responsabilidade para não ter que se haver com o sofrimento imponderável.   
O ressentimento caracteriza-se pela repetição sem fim de injúrias narcisistas que não podem ser esquecidas. No ressentimento o sujeito se satisfaz naquilo que o machuca, seus lamentos sem fim. O sintoma insiste porque dá uma solução ao desejo e a pulsão. No ressentimento o sujeito vive o lugar de vítima  do eu assujeitado mas com ódio. Ele quer ser o outro, quer ter o que imagina que o outro tem, a posse do gozo. Além disso, existe nos pacientes ressentidos uma inacessibilidade narcísica que dificulta a retificação de seus sintomas e isto acontece porque o próprio ressentimento é tomado na transferência.
Na clínica, é possível observar em  alguns pacientes, um fio que  liga algumas configurações  patológicas num mesmo quadro clínico com sintomas que  desembocam num ressentir-se sem fim, num lamento sofrido e injurioso dirigido em geral a um outro  sempre culpado. Questionando-se eternamente pela má sorte e pelo destino invariavelmente frustrante, o ressentido apresenta um discurso magoado e na maioria das vezes rancoroso, o que numa primeira escuta causa um certo mal estar parecendo constituir-se em uma queixa excessiva diante de motivos aparentemente pouco convincentes. O que causa um desconforto aos ouvidos é o fato de ser uma retórica recorrente onde o modo de contato com o mundo é sempre o de legitimar o lugar de vítima e justificar o rancor.
Mas assim como a inveja, que mereceu um estudo minucioso de Melanie Klein que a percebia como algo primordial e resistente a qualquer elaboração, o ressentimento tem suas semelhanças na clínica. Não por acaso, já que ele é um produto direto da inveja embora dependa do ideal do eu para se manter. O ressentido sofre com seu próprio ódio, com algo de si que não pode ser revelado nem a si próprio e tenta sobreviver diante do que percebe ser-lhe muito destrutivo.  O incômodo da escuta de seu discurso é justamente a percepção da hostilidade rancorosa, velada ou não, mas sempre presente. Há, no entanto, um sofrimento que se sobrepõe a este rancor, formando um movimento circular em que sofrimento torna-se causa de rancor e rancor causa de sofrimento.
Na canção ininterrupta e repetitiva o ressentido demora a perceber que é prisioneiro de seu sintoma e quando percebe, questiona insistentemente a causa de seus fracassos todos anotados na mesma agenda onde não são registradas suas conquistas.
Ele pede sim o reconhecimento, mas para legitimar as injúrias sofridas, vingar-se justamente, tudo numa visão do futuro onde o que importa é mais o acerto de contas rancoroso com o passado do que a promessa do novo e do bom.
O sujeito ressentido tem, em geral, um radar aguçado para as injustiças e arbitrariedades e as vive com um ódio inconfesso e muitas vezes não assumido que é em geral o que causa a indignação de seus interlocutores. É justamente este ódio que não pode ser assumido pelo ressentido que está na base de todas as leituras feitas sobre o ressentimento, a começar de Nietzsche. Há uma espécie de covardia moral atribuída aos ressentidos que, ao não poderem assumir o confronto e a negociação, sedimentam uma atitude de mágoa e revanche em relação ao outro e de autoindulgência em relação a si.
Embora sejam pacientes que busquem a análise, resistem e, em geral, fazem os analistas se  confrontarem com todos os sinais de fracasso: reação terapêutica negativa, ódio inconsciente, masoquismo, doenças do ideal.  
Em que pese a constatação, na clínica contemporânea, de uma subjetividade na qual os traços de ressentimento sobejam, parece importante ressaltar a incidência da cultura atual que, ao vender a promessa de uma vida sem conflitos e sofrimentos aumenta o confronto entre o que é possível realizar e a decepção da promessa.

Referências   Bibliográficas
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JANILSON, F. O inconsciente político.SP Ática 1992

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Trabalho apresentado nos Estados   Gerais  da  Psicanálise –Segundo

Encontro Mundial  Rio de Janeiro 2003