Sobre o Ressentimento
Gisela Haddad
Este trabalho tenta pensar o ressentimento, afeto conhecido
e próximo de nosso cotidiano, a partir das concepções de Nietzsche,
entrelaçando-se com o que parece ser uma
certa configuração psíquica presente naquilo que tem sido chamado de novas
formas de subjetividade. Destacamos duas questões que podem ser levantadas a partir
deste fenômeno clínico, uma econômica, relativa a pulsão de morte onde o
ressentimento se assemelharia a uma melancolia às avessas com estreita
associação com o masoquismo, e outra, dinâmica, na problemática do
reconhecimento intersubjetivo, onde o ressentimento parece ser a expressão de uma
servidão voluntária ao narcisismo.
Na pesquisa
do campo semântico, o termo ressentimento no dicionário do Aurélio diz respeito
ao sujeito que está magoado, aquele que se melindra com facilidade ou que
sofreu os efeitos de abalo, dano ou moléstia. Em espanhol a palavra
correspondente é remordimiento e define-se como a amarga e arraigada lembrança
de uma injúria particular, da qual se deseja tirar satisfações. Pode-se dizer que seu sinônimo é
a palavra rancor, que vem do latim e que quer dizer queixa, querela, demanda.
Já em francês, ressentiment traz em sua etimologia a repetição de uma vivência
cuja qualidade da emoção é hostil.
Quem primeiro
se debruçou sobre a questão do
ressentimento foi Nietzsche,
filósofo alemão (1844-1900) que, ao se propor fazer uma genealogia da moral não
desejava apresentar novos valores ou reforçar outros já existentes e sim
questionar a própria existência dos valores. Filho de um pastor luterano (dado
que não deve ser desconsiderado) Nietzsche afirmava que a partir da vigência da
ética judaico-cristã, teria havido uma inversão nos valores da humanidade e
explicava este fato através do que ele chamou de moral dos escravos e moral dos
senhores.
Para se
tentar entender melhor seu legado bastante denso e de difícil acesso, devemos
nos reportar a sua visão antropológica e histórica do início da humanidade onde
o humano ou o que ele chama de “a besta loira” teve de abdicar em parte de sua
liberdade para viver em comunidade e com isso aprender a respeitar regras,
aprendizado este que foi feito em cima de dor e sofrimento e não de altruísmo.
Nesta
convivência, cria-se então uma relação credor/devedor e, na medida em que o
devedor não paga a sua dívida ou não cumpre sua promessa são criados métodos de
castigo que, pela coerção imposta pela dor e sofrimento faz surgir uma memória
da dívida ou uma consciência de culpa. Isto é o que Nietzsche vai chamar de má
consciência, ou seja, a consciência do dever não cumprido e das terríveis
consequências disso.
Surge daí uma
hierarquia de valores, tendo no topo os que dominam, nas camadas mais baixas os
dominados e, para administrar esta relação hierárquica de senhores e escravos,
os sacerdotes.
Segundo
Nietzsche serão os sacerdotes judeus quem, em virtude de sua impotência,
inverterão os valores ao propagar a vingança dos escravos contra seus mestres,
utilizando-se de uma artimanha ideológica- o ethos da caridade- infectando os senhores com a mentalidade de
escravo e roubando sua vitalidade natural, sua insolência agressiva e
autocrática, iniciando uma moral do ressentimento. A principal marca desta
moral é o ideal ascético, que despreza as coisas materiais do mundo e coloca as
esperanças numa vida além. O sacerdote encarna esta contradição de usar a
hostilidade e o ressentimento como fator de preservação da vida.
A atualidade desta análise da subjetividade
humana merece ser destacada aqui, como uma forma patológica de se defender, onde
há uma escolha deliberada de abrir mão da liberdade em prol de um submeter-se
ao outro, acreditando que ele tenha meios de se responsabilizar e cuidar.
Segundo
alguns autores, Nietzsche, além de ter encontrado o termo ressentimento nas
traduções francesas do escritor russo Dostoievski também teria se
inspirado em alguns personagens de seus
livros, personagens esses que, ao se
sentirem imensamente infelizes, rompiam com a religião e construíam sua própria
ética fundando o protótipo de um novo
homem.
Ao contrário
dos ressentidos, este novo homem teria a
coragem de assumir a realidade de um mundo onde Deus estaria morto sem que isto
significasse uma vida sem sentido. Para Nietzsche isto era liberdade, era a
possibilidade do homem construir o seu próprio destino sem arrependimentos, era
o que ele chamava de superhomem.
Para evitar o
enfraquecimento o homem deveria assumir uma perspectiva além do bem e do mal,
além da moral, o que não significava além do bom e do mau. Bom seria tudo que
intensificasse esse sentimento de potência no homem e mau seria o que proviesse
da fraqueza. Um humano capaz de se responsabilizar pelos seus atos.
Podemos dizer
que na mesma linha de Freud, mas por vias diferentes, Nietzsche intuiu o papel do inconsciente na vida humana
ao denunciar que as “intenções” de algumas escolhas estariam a serviço de algo
com o sentido inverso. Tanto a ideologia quanto a moral e a religião seriam
faces ressentidas da impossibilidade do homem assumir seu próprio destino.
Muitos anos depois da morte do filósofo, Freud escreveria seu texto “O futuro
de uma ilusão” onde colocaria a religião como uma necessidade do ser humano
suportar seu desamparo originário ou sua impotência.
Muitos
autores usaram esta teorização sobre o ressentimento em Nietzsche para explicar
as revoluções onde a inveja destrutiva dos que nada tem pelos que possuem,
incitaria as massas e daria um motivo às desordens. Foi Nietzsche também quem
cunhou o termo “sacerdotes ascéticos” para designar intelectuais (jornalistas, escritores,
filósofos) fracassados ou amargos, cuja insatisfação pessoal leva-los ia às
suas vocações como militantes políticos e revolucionários.
Ao descrever
seu “superhomem”, Nietzsche talvez achasse assim como Freud, que ele poderia
aceitar sua natureza pulsional sem amargura e encontrar um destino de grandeza
ao exercer um domínio sobre este caos. Na verdade toda a questão do
ressentimento estaria nessa impossibilidade de negociar com a satisfação dessas
pulsões eróticas ou destrutivas, fato que fez com que Freud se debruçasse sobre
o que ele chamou de inconsciente para teorizar a respeito dos complexos percursos
que resultariam dessa luta.
Nietzsche se
antecipa a Freud na tentativa de descrever essas duas forças antagônicas, as da
destruição e as da construção ou o duelo da vida e da morte que o homem teria
que se haver.
Poder-se ia
pensar que o homem contemporâneo, vivendo em um mundo onde a individualidade
atingiu seu momento máximo, possibilitando que se assumisse a responsabilidade
de sua vida privada e que arbitrasse sobre o certo e o errado com total
liberdade, conseguiria finalmente ser
este superhomem imaginado por Nietzsche, com espaço para viver suas paixões,
mas sendo forte o suficiente para administrar sua natureza pulsional.
Mas o que
vemos em termos de subjetividade correspondente não confere. Muito se tem
escrito e questionado sobre as novas formas de subjetividades determinadas pela
pós-modernidade, e parece que a humanidade não escapa nunca de produzir novas
formas de sofrimentos. Penso que o ressentimento é o sintoma que pode estar
denunciando que esta transcendência de valores
almejada e alcançada pelo homem não traz a felicidade esperada, pois o
aumento da responsabilidade sobre o próprio destino aumenta o efeito da
desilusão e favorece esta configuração
psíquica.
O
ressentimento é um afeto próximo, conhecido e usado desde sempre no senso
comum. Quando se pesquisa a palavra pela internet, encontra-se vários sites,
alguns ligados às comunidades religiosas, que, utilizando-se de um discurso de autoajuda,
referem-se à maneira como se deve proceder para evitá-lo e todas as
consequências nefastas que se produzem quando isto não é possível.
Usado
geralmente como adjetivo com sentido pejorativo denotando um certo desprezo ao
portador do mesmo, o sujeito ressentido é facilmente condenado pelas pessoas
que em geral se consideram isentas de tal discurso. Em um artigo da revista
Época o jornalista Augusto Nunes trata do ressentimento como o 8º pecado
capital fazendo referência ao modo como algumas pessoas públicas destilam
eternamente suas mágoas atribuindo seus fracassos a alguém numa digestão
interminável. “Frequentador dos subúrbios da ira, sobrinho do orgulho e primo
da cobiça, o ressentimento é irmão da inveja, com quem costuma ser confundido”
diz o jornalista.
Colocar o
ressentimento como o 8º pecado capital é classificá-lo como um sentimento de
certo modo inaceitável, que as pessoas não deveriam ter ou sentir. Entretanto é
quase unânime este modo de ver as pessoas que se ressentem facilmente, e
principalmente aquelas que parecem não poder esquecer jamais as desfeitas
sofridas, e que muitas vezes aos ouvidos incrédulos dos outros, repetem suas
histórias magoadas, destilando seu rancor às pessoas implicadas.
Tão
inquietante que o psicólogo e doutor
Frederic Luskin publicou um livro intitulado “O poder do perdão”, em que
discorre sobre uma pesquisa feita na Universidade de Stanford, onde o
ressentimento é definido como algo que pode e deve ser superado, e que o ato de
culpar os outros ou apegar-se a mágoas faria com que a vida pessoal e
profissional se desorganizasse, possibilitando tomar decisões equivocadas além
de liberar substâncias químicas do corpo associadas ao estresse. Em
compensação, ao aprender a perdoar, o indivíduo deixaria de desempenhar e
identificar-se com o papel de vítima, e passaria a desfrutar de uma vida com
saúde e satisfação.
Sem dúvidas,
não se deve desconsiderar o incômodo que nos causa o discurso ressentido por
clamar repetidamente e de forma hostil seu lugar de vítima. Mas é por sabermos
que o sujeito ressentido sofre, prisioneiro que é de seus sintomas, que nos
dispusemos a pensar um pouco sobre o que se passa nos subterrâneos de seu
psiquismo.
O recorte que
se pode fazer olhando a maneira como o ressentimento incide na vida de algumas
pessoas, comprometendo e marcando um sentimento de menos-valia e um discurso
onde o outro é o eterno impecilho também foi feito por Kancinper, psicanalista
argentino que dedicou um livro ao tema. Ele coloca o ressentimento no bojo dos
complexos edipianos e fraternos e situa o sujeito ressentido num circuito entre
a pulsão de morte, narcisismo e como uma consequência direta da inveja.
Em seu estudo sobre o narcisismo, Hugo
Bleichemar coloca o ressentimento como uma das compensações possíveis diante da
necessidade de se dar conta da renúncia à satisfação pulsional. Para ele os
sofrimentos narcisistas aumentam com a insatisfação do desejo principalmente
porque marcam a dependência do sujeito ao outro, no qual as suas satisfações se
esgotam. Gozar passa a ser a prova de uma integridade narcísica preservada e a
inveja do outro atinge o seu ápice quando se imagina que este goza sem
conflitos, ou melhor, sem inibição, sem culpa, e sem vergonha. O domínio sobre
as pulsões é sempre algo perseguido e a impossibilidade de saciar a necessidade
de domínio provoca a raiva narcisista negando ao sujeito a possibilidade de
liberá-lo do desejo.
Gabriel, um
executivo bem colocado no mercado, trabalhando numa empresa cuidadosamente
escolhida, ressente-se por estar sempre
insatisfeito, de olho em cargos de
empresas com maior prestígio que a sua.
Enquanto sonho impossível, a empresa de seus sonhos é tudo o que ele parece
querer para se sentir finalmente satisfeito. Durante o processo rigoroso de
seleção a que se submete, o medo de fracassar coloca-o diante de sua
impotência, e o seu ressentimento re-aparece .Gabriel supervaloriza sua
impotência o que justifica seu rancor recorrente e o torna prisioneiro de seu
ressentimento. Quanto mais liberdade e soberania ele poderia ter para fazer
suas conquistas, mais sedutor parece ser abrir mão disso e transferir ao outro
esta responsabilidade para não ter que se haver com o sofrimento
imponderável.
O
ressentimento caracteriza-se pela repetição sem fim de injúrias narcisistas que
não podem ser esquecidas. No ressentimento o sujeito se satisfaz naquilo que o
machuca, seus lamentos sem fim. O sintoma insiste porque dá uma solução ao
desejo e a pulsão. No ressentimento o sujeito vive o lugar de vítima do eu assujeitado mas com ódio. Ele quer ser
o outro, quer ter o que imagina que o outro tem, a posse do gozo. Além disso,
existe nos pacientes ressentidos uma inacessibilidade narcísica que dificulta a
retificação de seus sintomas e isto acontece porque o próprio ressentimento é
tomado na transferência.
Na clínica, é
possível observar em alguns pacientes, um
fio que liga algumas configurações patológicas num mesmo quadro clínico com
sintomas que desembocam num ressentir-se
sem fim, num lamento sofrido e injurioso dirigido em geral a um outro sempre culpado. Questionando-se eternamente
pela má sorte e pelo destino invariavelmente frustrante, o ressentido apresenta
um discurso magoado e na maioria das vezes rancoroso, o que numa primeira escuta
causa um certo mal estar parecendo constituir-se em uma queixa excessiva diante
de motivos aparentemente pouco convincentes. O que causa um desconforto aos
ouvidos é o fato de ser uma retórica recorrente onde o modo de contato com o
mundo é sempre o de legitimar o lugar de vítima e justificar o rancor.
Mas assim
como a inveja, que mereceu um estudo minucioso de Melanie Klein que a percebia
como algo primordial e resistente a qualquer elaboração, o ressentimento tem
suas semelhanças na clínica. Não por acaso, já que ele é um produto direto da
inveja embora dependa do ideal do eu para se manter. O ressentido sofre com seu
próprio ódio, com algo de si que não pode ser revelado nem a si próprio e tenta
sobreviver diante do que percebe ser-lhe muito destrutivo. O incômodo da escuta de seu discurso é
justamente a percepção da hostilidade rancorosa, velada ou não, mas sempre
presente. Há, no entanto, um sofrimento que se sobrepõe a este rancor, formando
um movimento circular em que sofrimento torna-se causa de rancor e rancor causa
de sofrimento.
Na canção
ininterrupta e repetitiva o ressentido demora a perceber que é prisioneiro de
seu sintoma e quando percebe, questiona insistentemente a causa de seus
fracassos todos anotados na mesma agenda onde não são registradas suas
conquistas.
Ele pede sim
o reconhecimento, mas para legitimar as injúrias sofridas, vingar-se
justamente, tudo numa visão do futuro onde o que importa é mais o acerto de
contas rancoroso com o passado do que a promessa do novo e do bom.
O sujeito
ressentido tem, em geral, um radar aguçado para as injustiças e arbitrariedades
e as vive com um ódio inconfesso e muitas vezes não assumido que é em geral o
que causa a indignação de seus interlocutores. É justamente este ódio que não
pode ser assumido pelo ressentido que está na base de todas as leituras feitas
sobre o ressentimento, a começar de Nietzsche. Há uma espécie de covardia moral
atribuída aos ressentidos que, ao não poderem assumir o confronto e a negociação,
sedimentam uma atitude de mágoa e revanche em relação ao outro e de autoindulgência
em relação a si.
Embora sejam
pacientes que busquem a análise, resistem e, em geral, fazem os analistas
se confrontarem com todos os sinais de
fracasso: reação terapêutica negativa, ódio inconsciente, masoquismo, doenças
do ideal.
Em que pese a
constatação, na clínica contemporânea, de uma subjetividade na qual os traços
de ressentimento sobejam, parece importante ressaltar a incidência da cultura
atual que, ao vender a promessa de uma vida sem conflitos e sofrimentos aumenta
o confronto entre o que é possível realizar e a decepção da promessa.
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Trabalho apresentado
nos Estados Gerais da
Psicanálise –Segundo
Encontro
Mundial Rio de Janeiro 2003
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