segunda-feira, 23 de março de 2020

Afinidades Eletivas


AFINIDADES ELETIVAS
GISELA HADDAD[1]
Utilizada originalmente pelas ciências naturais para designar a atração entre dois elementos químicos diferentes, mas afins, a expressão afinidades eletivas ficou mais conhecida por dar título a um romance de Goethe, bastante reproduzido no último século, tanto no cinema quanto em peças teatrais. Escrito em 1809 quando o autor já era um sexagenário, é possível que tal título tivesse a intenção de capturar a moderna sina humana amor-desejo, responsável pelo pêndulo entre o imperativo de nossa natureza que solicita e deseja, o imperativo moral, que tanto pode nos constranger quanto nos dignificar e nossa ânsia de reconhecimento amoroso. É fato que, por questionar repetidamente a tão esperada fidelidade, o idealizado casamento e o significado do amor, as paixões inesperadas desconstruiriam as  expectativas de uma vida amorosa tranqüila e pacífica e marcariam a complexidade de nossos desejos.
Goethe é considerado um ícone do romantismo alemão, movimento que trazia como novidade o acolhimento das contradições e antíteses, e o fato de que nossas vidas não seriam ditadas somente pela razão, mas também pelo nosso estado d’alma. Afinal a razão, a luz com a qual poderíamos contar em nosso percurso moderno sem garantias transcendentais, sucumbiria, como nos ensinou Freud, aos desígnios mais crus de nossas tendências pulsionais.
O mito do amor romântico pretendia embarcar nas políticas de felicidade que a modernidade prometia produzir, ao apostar que em algum lugar do futuro cada um viveria sua história de amor com alguém especial. Este ideal de amor romântico, o amor verdadeiro, aquele cuja função deveria ser promover a junção sexo, amor e casamento, surge juntamente com os valores modernos pós-revolução francesa, que pretendiam transpor as barreiras das diferenças de direitos entre homens e mulheres, das diferenças culturais, de raça e de religião, dos preconceitos sociais, etc. Foi a partir daí que homens e mulheres passaram a escolher seus parceiros por amor, a construir roteiros, sensibilidades e aspirações amorosas diferentes, inspirando e ao mesmo tempo se alimentando de um vasto repertório de amor distribuído entre os romances, filmes, peças de teatro, novelas ou letras de músicas.
Desde então, verdadeiras ou fictícias, as histórias de amor passaram a fascinar a todos e se perpetuaram através do tempo ao serem lidas e relidas, assistidas, lembradas ou citadas. Parte integrante deste mito amoroso, a sexualidade humana, por seu caráter disruptivo, manteve-se durante grande parte da história ocidental como uma dimensão de nossas vidas que deveria ser acobertada, tendo como aval a ideologia judaico-cristã, que condenava a carne e rejeitava suas paixões em proveito das coisas do espírito. Sabemos que a cultura de cada época delimita as possibilidades e impossibilidades, incentiva certas condutas e interdita outras para o convívio entre os humanos. As paixões despertadas pelo desejo rompiam com a moral da época de Goethe, e tornavam trágica a busca pela realização amorosa romântica, que não podia suportar a invasão das forças da natureza responsáveis pela atração irrefreável entre as pessoas.
Continuamos a buscar realizações sentimentais e satisfações sensoriais, mas a liberdade sexual que hoje usufruímos, impensável mesmo há três ou quatro décadas atrás, incentiva a  busca e não condena mais o prazer físico. Estamos, sob este ponto de vista, mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos. A partir da década de sessenta, nossa  revolução sexual impôs reposicionamentos sociais e redefinições dos papéis sexuais, o que  repercutiu de forma decisiva nas relações homem/mulher e sobretudo nas relações amorosas entre os jovens, que começaram a ver e a viver a sexualidade de forma totalmente diversa. O advento da pílula anticoncepcional e a liberação do aborto em diversos países ocidentais permitiram aos jovens morar juntos, ter relações sexuais fora de uma conjugalidade mais séria, separar-se quando não havia mais motivos para se estar juntos, e assumir suas preferências sexuais mesmo quando estas não pertenciam ao modo tradicional das relações heterossexuais.
Estas mudanças que hoje já estão mais digeridas pela cultura ocidental, mudaram sobremaneira  a paisagem social e admitiram uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados, ainda que possam compor várias melodias. O enigmático se deslocou de nossa sexualidade para nossos desejos. O ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes e que hoje permeia as relações de todas as idades, abriu um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que  predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo entre os pares e por isso prevêem uma confluência de interesses e desejos continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou ambas as partes.
É fato que o remanejamento dos antigos códigos de convivência amorosa assegura uma liberdade maior a cada indivíduo, que hoje pode escolher, entre um leque amplo de opções, aquilo que mais se afina com seus gostos ou estilo de viver; mas não tem sido fácil para a grande maioria fazer o luto do ideal de amor romântico, habitante velado ou declarado do íntimo de cada um. Talvez porque as dores provocadas pela luta entre a manutenção deste anseio romântico e todos os sentimentos que o acompanham - como o medo da perda, do abandono ou da traição - sejam reminiscências do romance infantil vivido por cada um em seu seio familiar. O amor incondicional imaginado durante os cuidados e acolhimento  dos primeiros anos de vida transformaria cada um em Narciso e marcaria um destino de busca para ser amado e admirado. Recuperar esta imagem de centro do mundo e de todas as atenções confunde-se com a promessa do romantismo amoroso, que assim parece legitimar a expectativa de  satisfação sexual e sentimental e a busca de  um parceiro (a) que nos devolva este olhar que esperamos poder nos amparar e confortar.
Se, por um lado, radicalizamos nossa autonomia e nossa liberdade para escolher e viver nossa vida amorosa, desconstruindo os antigos códigos e referências, aumentamos nossas incertezas e  nossa dependência de um olhar amoroso, o que nos torna vulneráveis aos fracassos e ao sentimento de impotência. O sucesso ansiado de nossa vida amorosa passa a depender de um investimento infinito das partes envolvidas, mas principalmente da possibilidade de cada uma destas partes atribuir ao outro uma individualidade (ou alteridade) a ser respeitada. O que mantém este anseio, a despeito da obsolescência do ideal romântico, é o fato de se considerar a vida amorosa como um dos poucos espaços que empresta a cada um o sentimento de pertencimento, de não se estar só, de poder dar um sentido para a vida e para a morte. Através dela é possível  temperar nossa existência com pitadas de fantasias e transformar a banalidade do cotidiano em um teatro de magias. Ela também pode nos incentivar a inventarmos novas maneiras de ser, mais próximas do que imaginamos que o outro queira que sejamos, ou ainda apostar que podemos ser melhores e mais amáveis.
Na época de Goethe, a tarefa de encontrar uma acomodação feliz entre as reivindicações individuais e culturais indicava a necessidade de internalizar a repressão social dos sentimentos destrutivos e dos desejos sexuais temidos, que deveriam se transformar em uma consciência moral vinculada à culpa. Hoje a pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos conflitos a serem administrados para que possamos validar a diversidade de nossas opções.
Sabemos que, no terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a ambigüidade e a dúvida. Resta-nos construir caminhos em que o jogo narcísico que nos constitui e reúne, também possa  inventar uma ética para nossas condutas. Pode-se dizer que as afinidades eletivas nestes dois séculos que nos separam de Goethe, mantêm este dilema entre nosso ideal subjetivo e os ideais sociais, mas nossas dores e temores estão mais ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.


[1] Gisela Haddad é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da equipe editorial da revista Percurso, autora dos livros Amor e Fidelidade (Ed. Casa do Psicólogo) e Amor (Ed.Duetto)


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