AFINIDADES ELETIVAS
GISELA HADDAD[1]
Utilizada
originalmente pelas ciências naturais para designar a atração entre dois
elementos químicos diferentes, mas afins, a expressão afinidades eletivas ficou mais conhecida por dar título a um
romance de Goethe, bastante reproduzido no último século, tanto no cinema
quanto em peças teatrais. Escrito em 1809 quando o autor já era um sexagenário,
é possível que tal título tivesse a intenção de capturar a moderna sina humana
amor-desejo, responsável pelo pêndulo entre o imperativo de nossa natureza que solicita e deseja, o
imperativo moral, que tanto pode nos constranger quanto nos dignificar e nossa
ânsia de reconhecimento amoroso. É fato que, por questionar repetidamente a tão
esperada fidelidade, o idealizado casamento e o significado do amor, as paixões
inesperadas desconstruiriam as
expectativas de uma vida amorosa tranqüila e pacífica e marcariam a
complexidade de nossos desejos.
Goethe
é considerado um ícone do romantismo alemão, movimento que trazia como novidade
o acolhimento das contradições e antíteses, e o fato de que nossas vidas não
seriam ditadas somente pela razão, mas também pelo nosso estado d’alma. Afinal
a razão, a luz com a qual poderíamos contar em nosso percurso moderno sem
garantias transcendentais, sucumbiria, como nos ensinou Freud, aos desígnios
mais crus de nossas tendências pulsionais.
O
mito do amor romântico pretendia embarcar nas políticas de felicidade que a
modernidade prometia produzir, ao apostar que em algum lugar do futuro cada um
viveria sua história de amor com alguém especial. Este ideal de amor romântico,
o amor verdadeiro, aquele cuja função deveria ser promover a junção sexo, amor
e casamento, surge juntamente com os valores modernos pós-revolução francesa,
que pretendiam transpor as barreiras das diferenças de direitos entre homens e
mulheres, das diferenças culturais, de raça e de religião, dos preconceitos
sociais, etc. Foi a partir daí que homens e mulheres passaram a escolher seus
parceiros por amor, a construir roteiros, sensibilidades e aspirações amorosas
diferentes, inspirando e ao mesmo tempo se alimentando de um vasto repertório
de amor distribuído entre os romances, filmes, peças de teatro, novelas ou
letras de músicas.
Desde
então, verdadeiras ou fictícias, as histórias de amor passaram a fascinar a todos
e se perpetuaram através do tempo ao serem lidas e relidas, assistidas,
lembradas ou citadas. Parte integrante deste mito amoroso, a sexualidade humana,
por seu caráter disruptivo, manteve-se durante grande parte da história
ocidental como uma dimensão de nossas vidas que deveria ser acobertada, tendo
como aval a ideologia judaico-cristã, que condenava a carne e rejeitava suas
paixões em proveito das coisas do espírito. Sabemos que a cultura de cada época
delimita as possibilidades e impossibilidades, incentiva certas condutas e
interdita outras para o convívio entre os humanos. As paixões despertadas pelo
desejo rompiam com a moral da época de Goethe, e tornavam trágica a busca pela
realização amorosa romântica, que não podia suportar a invasão das forças da natureza responsáveis pela atração
irrefreável entre as pessoas.
Continuamos
a buscar realizações sentimentais e satisfações sensoriais, mas a liberdade
sexual que hoje usufruímos, impensável mesmo há três ou quatro décadas atrás, incentiva
a busca e não condena mais o prazer
físico. Estamos, sob este ponto de vista, mais livres para decidir sobre o que
fazer (e como fazer) com os nossos corpos. A partir da década de sessenta, nossa
revolução
sexual impôs reposicionamentos sociais e redefinições dos papéis sexuais, o
que repercutiu de forma decisiva nas
relações homem/mulher e sobretudo nas relações amorosas entre os jovens, que
começaram a ver e a viver a sexualidade de forma totalmente diversa. O advento
da pílula anticoncepcional e a liberação do aborto em diversos países
ocidentais permitiram aos jovens morar juntos, ter relações sexuais fora de uma
conjugalidade mais séria, separar-se quando não havia mais motivos para se
estar juntos, e assumir suas preferências sexuais mesmo quando estas não
pertenciam ao modo tradicional das relações heterossexuais.
Estas
mudanças que hoje já estão mais digeridas pela cultura ocidental, mudaram
sobremaneira a paisagem social e admitiram
uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados, ainda que possam
compor várias melodias. O enigmático se deslocou de nossa sexualidade para nossos
desejos. O ficar, prática que se
consolidou entre os adolescentes e que hoje permeia as relações de todas as
idades, abriu um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos,
que não visam compromissos futuros e em que
predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço
privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo
entre os pares e por isso prevêem uma confluência de interesses e desejos
continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem
a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou
ambas as partes.
É
fato que o remanejamento dos antigos códigos de convivência amorosa assegura
uma liberdade maior a cada indivíduo, que hoje pode escolher, entre um leque
amplo de opções, aquilo que mais se afina com seus gostos ou estilo de viver; mas
não tem sido fácil para a grande maioria fazer o luto do ideal de amor
romântico, habitante velado ou declarado do íntimo de cada um. Talvez porque as
dores provocadas pela luta entre a manutenção deste anseio romântico e todos os
sentimentos que o acompanham - como o medo da perda, do abandono ou da traição
- sejam reminiscências do romance infantil vivido por cada um em seu seio
familiar. O amor incondicional imaginado durante os cuidados e acolhimento dos primeiros anos de vida transformaria cada
um em Narciso e marcaria um destino de busca para ser amado e admirado.
Recuperar esta imagem de centro do mundo e de todas as atenções confunde-se com
a promessa do romantismo amoroso, que assim parece legitimar a expectativa
de satisfação sexual e sentimental e a
busca de um parceiro (a) que nos devolva
este olhar que esperamos poder nos amparar e confortar.
Se,
por um lado, radicalizamos nossa autonomia e nossa liberdade para escolher e
viver nossa vida amorosa, desconstruindo os antigos códigos e referências,
aumentamos nossas incertezas e nossa
dependência de um olhar amoroso, o que nos torna vulneráveis aos fracassos e ao
sentimento de impotência. O sucesso ansiado de nossa vida amorosa passa a depender
de um investimento infinito das partes envolvidas, mas principalmente da
possibilidade de cada uma destas partes atribuir ao outro uma individualidade (ou
alteridade) a ser respeitada. O que mantém este anseio, a despeito da
obsolescência do ideal romântico, é o fato de se considerar a vida amorosa como
um dos poucos espaços que empresta a cada um o sentimento de pertencimento, de
não se estar só, de poder dar um sentido para a vida e para a morte. Através dela
é possível temperar nossa existência com
pitadas de fantasias e transformar a banalidade do cotidiano em um teatro de
magias. Ela também pode nos incentivar a inventarmos novas maneiras de ser,
mais próximas do que imaginamos que o outro queira que sejamos, ou ainda apostar
que podemos ser melhores e mais amáveis.
Na
época de Goethe, a tarefa de encontrar uma acomodação feliz entre as reivindicações individuais e culturais indicava a
necessidade de internalizar a repressão social dos sentimentos destrutivos e
dos desejos sexuais temidos, que deveriam se transformar em uma consciência
moral vinculada à culpa. Hoje a pluralidade dos códigos de convivência nos
coloca em contínuos conflitos a serem administrados para que possamos validar a
diversidade de nossas opções.
Sabemos
que, no terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a
ambigüidade e a dúvida. Resta-nos construir caminhos em que o jogo narcísico
que nos constitui e reúne, também possa inventar uma ética para nossas condutas.
Pode-se dizer que as afinidades eletivas
nestes dois séculos que nos separam de Goethe, mantêm este dilema entre nosso
ideal subjetivo e os ideais sociais, mas nossas dores e temores estão mais
ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.
[1] Gisela
Haddad é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica, membro do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da equipe editorial da revista Percurso, autora dos livros Amor e
Fidelidade (Ed. Casa do Psicólogo) e Amor (Ed.Duetto)
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