sexta-feira, 27 de abril de 2012

Arte e deuses


Em conversas ao pé da porta com uma querida amiga, ela me contava como às vezes se entristecia ao perceber que suas lembranças de infância lhe surgiam fragmentadas. E se durante muito tempo seguiu culpando sua fraca memória, este argumento já não cabia. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, teria evitado trazer à tona passagens muito tristes ou impactantes de sua vida. Havia lido em algum lugar o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, também se debatia com os entrecortes de sua memória infantil. E tal dificuldade lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, cartas, cadernos ou diários, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças. Só depois de muitas entrevistas em que foi questionado sobre os caminhos de sua inspiração, teria passado a tentar entender o motor que movia sua necessidade de escrever. Era-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade,  escrever, que agora poderia ser sua melhor ferramenta, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. Quando de tempos em tempos se permitia (ou podia) voltar a ler seus textos, por vezes conseguia traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. O relato de tal escritor teria sido muito inspirador para ela, que não sendo uma escritora e sim artista plástica, via sua arte vagando em um espaço sem sentidos definidos. Como ele havia confessado, ela também criava suas peças aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-las em seguida como a poderem ser guardadas em algum “arquivo” imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se durante um bom tempo esta simples tarefa lhe trouxe conforto, neste momento as dúvidas lhe assaltavam e o que parecia ordenado passou a lhe perturbar. Precisava achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse um sentido para ela. E isso a levava a outra premissa, a de que ao construir a história de sua arte pudesse entender a sua própria. Mas...e se sua arte fosse uma espécie de imposição dos “vãos” de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na “linha do tempo”? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma? Sua aflição me parecia genuína. Como ajudá-la? O que dizer? Fui socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolhiam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas ( pré) visões.

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