O que você faria se fosse assaltado à mão armada e
os ladrões levassem, além de cartões de créditos, um bauzinho de madeira com
uma quantia razoável em dinheiro e duas passagens para a Tanzânia, ganho dias
antes em sua festa de bodas de prata, como um presente rateado por amigos e
parentes? Este é o mote para as reflexões que se seguirão entre os personagens do
filme “As neves de Killimanjaro”, do diretor francês (da Marselha), Robert
Guédiguian. O valor de sua temática, no entanto transcende as fronteiras dos
países, ao colocar em foco um debate importante sobre certas convicções
ideológicas de direita e esquerda, que sempre escorrem para o certo e o errado,
o bem e o mal. Se há uma lógica em curso nos dias atuais é a dos paradoxos, que
nos convida a não fechar e sim a admitir vários matizes sobre um assunto, e
exige que repensemos tudo por nossa conta e risco (embora fundamentados, claro).
E para crer ou apostar na possibilidade de se seguir buscando mundos e homens
melhores, talvez não seja mais tão
importante se alinhar a alguma ideologia de esquerda prêt-à-porter. O filme
apresenta quase todos os ingredientes deste tipo de questionamento. Michel, participante
ativo da efervescência político-cultural dos anos sessenta é o presidente do
sindicato dos pescadores de Marselha que, diante da atual crise que abate a
Europa, precisará dispensar vinte trabalhadores. Com o propósito de não cometer
injustiças decide fazer um sorteio, sendo ele mesmo um dos sorteados, o que surpreende
a todos, em particular ao seu companheiro de trabalho e amigo de infância, que
ao contrário, o condena por esta escolha, ressaltando que sua posição na escala
de poderes teria lhe permitido tal concessão. Assim se enuncia que seremos expectadores
dos diferentes dilemas que assaltarão aos personagens ao precisarem fazer uma
escolha ética. A título de reflexão, embora moral e ética possam ser tomadas
como um conjunto expressam conceitos diferentes. A moral seria o conjunto de
valores e normas que elegemos para nortear nossas vidas, que usamos para justificar,
dirigir e dar sentido a ela e que em geral nos ajuda a discriminar o que
aceitamos ou não como condutas a serem seguidas. Mas ao ter que colocar em
prática estes “nossos” valores, estamos no exercício da ética, o que quer dizer
enfrentar dúvidas e acertos com nossas próprias balizas. À medida que as
questões éticas acompanham as transformações sociais, carregam mais e mais
desafios, lembrando que em uma democracia o comportamento ético não se impõe: é
uma adesão livre ao que se acredita ser o melhor a fazer e inclui as tensões
impostas pelo poder, pelas leis, pela vaidade, pela violência (nossa e dos
outros). A aposentadoria “forçada” de Michel lhe dará tempo para pensar sobre
suas próprias convicções, inclusive aquelas que lhe pareciam tão límpidas e
certas como o engajamento em uma cultura da liberdade, da igualdade e da
solidariedade. Mas mesmo descendo aos infernos da dúvida, da raiva pelas
injustiças sofridas, de sua própria imposição a uma certa conduta humanista,
Michel mantém seu caule intacto, fornecendo pistas de um modelo humano
possível, corajoso em sua abertura às contradições. Um contraponto ao
personagem principal do filme "Um homem bom", o pacato e alienado Halder,
professor de literatura na Alemanha que começa a ser invadida (em todos os
poros) pelo nazismo, e que por medo, por falta de valores mais precisos sobre si,
sobre o mundo e as pessoas, se deixa capturar pelas ofertas sedutoras de
prestigio dos poderosos que gravitam em torno do fürher. Inverte e contraria
suas próprias linhas de pensamento e, perdido em suas concessões, não consegue
sequer ajudar seu (antes melhor) amigo judeu a escapar do cerco alemão. Como a
nos lembrar de que muitas vezes é preciso coragem para não ficar indiferente ao
que nos acontece.
Para
conferir:
Título: As neves do Kilimandjaro (Les Neiges du Kilimandjaro)
França 2011
Diretor: Robert Guédiguian
França 2011
Diretor: Robert Guédiguian
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