Debate Psicanálise e Cinema
– Cisne Negro
Gisela Haddad
Não se assiste ao filme
Cisne Negro impunemente. Lembro-me de ter ficado com uma sensação perturbadora
durante alguns dias. No momento em que escrevo este texto, já com alguma
distancia no tempo, torna-se mais fácil analisar o impacto que o drama de Nina
exerce sobre nós. Não por acaso ele causou tanto frisson na área psi, que produziu
muitos textos espalhados pelas redes sociais.
O diretor, Darren
Aronofsky - conhecido por privilegiar análises psicológicas de seus personagens
- nos
presentou, entre outras coisas, com a apresentação de muitas cenas ilustrativas
dos sintomas típicos de uma paranóia. Mas pensar neste filme como um caso
clínico é reduzir sua beleza e seu valor estético/artístico e mais, é deixar de
lado o fato de ele ser uma produção cultural e por isso ser uma leitura
atualizada de nossa condição humana, o que pode enriquecer nosso debate sobre
ele. É possível, por exemplo, analisar os diferentes lugares que a cultura
reservou e reserva para a loucura, a maneira como a loucura se enlaça com a
arte na história, ou ainda em como a loucura impõe este “estranho/familiar” que
em geral provoca uma sensação de desconforto, mal estar e estranhamento. Foi
assim que a maioria das pessoas que viram o filme descreveram seus sentimentos
e é bem capaz que este descompasso situe-se na exigência que sua narrativa
impõe a cada um para que abra mão de suas referências - se puder – para entrar em
outra lógica, sem tentar enquadrá-la em seus parâmetros. A loucura, tão comum e
frequente na cultura, suscita sentimentos intensos de repulsa, de temor e às
vezes de idealização.
Cisne Negro é também a
encenação de uma das peças mais importantes da história do ballet, uma
releitura moderna do clássico dos clássicos, “O Lago dos Cisnes” de
Tchaikovsky. “O Lago dos Cisnes" é mais do que a história de um cisne, ou
de um papel para uma bailarina. Conta a história de um príncipe, Siegfried,
que, coagido pela mãe a se casar com uma cortesã, se apaixona, ao invés, por
uma mulher-cisne, Odette, a princesa transformada em cisne branco que só
retornará à vida humana pelo amor sincero de um príncipe. Numa noite de luar com
o céu encoberto, Siegfried confunde-a com Odile, a filha do feiticeiro
Rothbart, que tentara seduzi-lo no baile e, enfeitiçado, jura-lhe amor eterno,
condenando assim Odette ao suicídio e à morte. No
início interpretado por duas bailarinas, com o tempo alguns coreógrafos perceberam
que haveria uma maior coerência com a dramaturgia da peça se fosse um mesmo corpo encenando esta divisão. Ou
seja, é arte como expressão legítima do psiquismo humano ou de sua
compreensão no contexto histórico. Exaustivamente encenada nestes últimos dois
séculos, O Lago dos Cisnes parece exercer seu fascínio justamente por este
desafio imposto à prima ballerina que precisa tanto encarnar o cisne branco, que obedece a um rigor e a um controle
extraordinários, quanto o cisne negro, quase uma catarse deste controle. Para o
cisne branco, símbolo do amor ideal e puro, o bater de asas são gestos de
proteção, mais instintivos, o que exige movimentos mais lentos e suaves. Já
para o cisne negro os movimentos são mais rápidos, sensuais e libidinosos.
Odette, o cisne branco, jamais encara o príncipe Siegfred enquanto que Odile está
sempre a seduzi-lo. Tchaikovsky aproveitou-se da mitologia local em que o cisne
representa a feminilidade, mas compõe uma história trágica. Talvez porque
vivesse em uma época cujos valores herdeiros da Revolução Francesa (Iluminismo)
prometiam liberdade e autonomia, mas na verdade limitavam a vida adulta ao
trabalho, ao exército e ao casamento. A vida real era asfixiante, a sexualidade
civilizada e a homossexualidade inaceitável. O cisne negro seria uma tentativa
de burlar esta moral burguesa, sem
sucesso. O casamento entre o príncipe a princesa acaba em morte aos dois. O
filme do diretor Darren Aronofsky abre com imagens de Nina interpretando
o Cisne Branco juntamente com o príncipe Siegfried e o feiticeiro/demônio
Rothbarth. A câmera capta seus movimentos suaves e precisos, mas logo ficamos
sabendo se tratar de um sonho. O sonho de Nina que almeja ardentemente ser a
primeira bailarina do Ballet de Nova York. Seu rosto parece satisfeito ao
acordar. Sua vida tem um sentido. Ela se levanta e inicia sua jornada diária. Na
cena em que o diretor anuncia que estará selecionando a rainha cisne, ele
informa sobre a versão escolhida, em que a menina virginal, pura e doce está
presa no corpo de um cisne. Ela quer a liberdade, mas só o verdadeiro amor pode
quebrar o feitiço. Seu desejo é quase concedido sob a forma de um príncipe.
Mas, antes que ele possa declarar seu amor, o gêmeo lascivo, o Cisne Negro,
engana e o seduz. Devastado, o Cisne Branco pula de um penhasco, matando-se e,
na morte, encontra a liberdade. A partir daí o filme induz cada espectador a
ser refém da perspectiva de Nina na imersão da conquista do que parece ser a sua
(e de sua mãe) única razão de viver: ser a prima ballerina. Embarcamos em uma viagem às vezes emocionante, outras aterrorizante, à
sua psique. O resultado é uma sensação mista entre o sufoco, a aflição e
o desconforto. Para muitos uma sensação de horror. Para poucos, o da compaixão.
Ficamos aprisionados em seu corpo, ao mesmo tempo em que este é testemunha do
surto psicótico de seu psiquismo. Assim
como Nina, não conseguimos mais distinguir delírio de realidade. O
diretor Aronofsky
consegue,
de forma genial, criar um paralelo entre a história da bailarina Nina e a saga
que ela interpreta. Cada personagem - a mãe, o diretor, Lily, e até mesmo Beth, ex- prima donna deste
corpo de ballet que acaba se suicidando - ocupa um lugar no imaginário de Nina
e passam a ser protagonistas de sua trama paranóica.
Nina é escolhida com
ressalvas pelo diretor. Ela é tecnicamente perfeita para encarnar o Cisne
Branco: silencioso, doce, contido. Por isso, ao escolhê-la, o diretor deixa
claro que ela precisará despertar seu Cisne Negro, deixar vir à tona a
agressividade e o erotismo. Mas ele está longe de perceber o significado desta
demanda que lhe faz. Talvez se ele se interessasse em acompanhá-la a sua casa,
ao seu quarto cor de rosa mantido com uma decoração infantil, à sua rotina
diária de horários e dietas rígidas sob os cuidados de uma mãe que se dedica de
forma absoluta à realização pela filha, de seu frustrado sonho de ser uma
grande bailarina. Se ele pudesse assistir às cenas de seu cotidiano, quem sabe haveria
um destino diferente para aquela menina. Mas desde o início o filme já anuncia
o fim trágico tal e qual as grandes tragédias gregas em que os heróis nada podem
fazer contra o que já lhes está predestinado. Ter que ocupar o lugar da Rainha
Cisne desencadeará sua crise. Ao defrontar-se com as exigências que
esta experiência lhe coloca, ela não poderá suportar suas insuficiências ou
responder aos impasses por não ter como responder, por não ter referências ou um saber e assim seu mundo
começa a ruir e sua resposta é o delírio. Até então sustentada por uma
suplência que a aderência ao desejo de sua mãe lhe proporcionava e submetida às
certezas maternas, Nina podia viver sem a dúvida ou algum enigma a respeito de
si. Mas agora é ao diretor que ela deve se submeter e responder aos seus
pedidos, alguém que lhe impõe questões difíceis, confronta-a com o real do
sexo, que ela está longe de poder digerir ou suportar. Reduzida à condição de
objeto e vítima de seu diretor, é invadida por suas próprias pulsões,
perseguida por incessantes demandas imaginárias. O delírio é uma produção de
defesa contra o extermínio subjetivo. É uma espécie de construção, uma
tentativa de ordenar, dar algum sentido àquele mundo que a circunda e as
relações com aquelas pessoas. É o delírio
que lhe permite continuar a viver a bailarina , embora a um custo
altíssimo.
Fosse
ela neurótica, poderia se questionar se o diretor a achava mesmo especial,
desconfiar se ele estaria tramando algo, duvidar se a colega rival a amava ou
estava a fim de ferra-la. Mas para Nina não há chances de dúvidas. Ela precisa
de certezas a respeito de si e dos demais. Resta-lhe ser a perseguida. Sua
experiência é da ordem da certeza, é plena, é absoluta. Ela “sabe” que a
conquista do papel principal está em perigo graças às más intenções de Lilly, sua
rival, que além de seduzi-la também seduziu seu diretor, que por estar apaixonado,
não hesitará em substituí-la por Lilly. O delírio é
a tentativa desesperada dela reconstruir
seu mundo espatifado, uma tentativa de saída da crise já que através dele ela pode obter uma significação
subjetiva para si, uma história na qual poderá se incluir e se contar. Sua vida resume-se agora a este trabalho de
interpretação destas situações enigmáticas dirigidas a ela, as quais ela só
pode responder por meio desta construção. São relações de força, não
dialetizáveis, de um mundo sem equívocos, sem
contingência e de uma sexualidade sem tropeços. Só nos resta acompanhá-la nesta outra
lógica, e vivermos seu aprisionamento até a morte.
No final testemunhamos
mais uma vez que o insuportável suscitado pela loucura é o que ela revela de
nós mesmos, aquilo que não queremos saber, aquilo que queremos manter oculto, reprimido. Ela nos evoca a fragilidade de
nossa própria significação mostrando que ela não está livre de dúvida ou de
questionamento, que somos órfãos dos deuses. Nos lembra que sem esta ficção que
construímos sobre quem somos, podemos ficar reduzidos ao nosso próprio corpo. Que a vida não
tem nenhum sentido a priori, e que é sobre esse fundo de não sentido que às
duras penas construímos um sentido para nossa existência.
Nina circula de modo
diferente nas significações da cultura, possui outra escala de referências e
valores. Sem esta “estrada principal”,
todas as estradas, ou seja, as avenidas, ruas e ruelas, se equivalem.
É muito difícil conviver
com a alteridade que a loucura provoca, por isso existem poucas pessoas
dispostas a isso, e menos ainda são as capacitadas para um convívio
construtivo. Se há algo que revoluciona nossa concepção de sujeito, mesmo a do
sujeito neurótico, é a experiência com a psicose. Por isso para acompanhar
uma busca de significação de um psicótico é necessário uma paixão pela
variedade das significações humanas. O psicótico reinventa o
mundo, cria suas próprias regras, constrói associações inusitadas e sentidos
inesperados. Suas palavras são preto no branco, são sérias, decisivas
e precisam de respostas muito bem pesadas e pensadas. Sua vida é sempre por um
fio e aquilo que ele constrói às duras penas por toda a vida pode desmoronar em
um minuto.
Na psicose o acesso ao simbólico
- este legado que nos possibilita fazer parte de uma história, ter uma origem,
um passado que nos antecede, um mundo que podemos compartilhar com suas leis,
regras e normas – está vetado. Se nenhum significante consegue substituir o
significante do desejo materno, a lógica simbólica se organiza de outra forma,
assim como a realidade psíquica do sujeito. Ele pode ficar assujeitado a uma
relação primitiva com a mãe e se tornar o único objeto de desejo dela,
provavelmente porque a mãe imaginou- o como alguém que pudesse satisfazê-la por
completo. Sem poder ser um outro diferente da mãe, institui-se entre eles uma
relação fusional, sem espaços para mediadores, um “mal entendido” trágico e
fascinante que obstaculiza e destitui qualquer terceiro. Muitas vezes a mãe cria
suas próprias leis, que diferem da lei compartilhada pela cultura. Esta é nossa
Nina.
Trabalho apresentado em Sorocaba -
Maio de 2011
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