domingo, 11 de junho de 2017

Debate Psicanálise e Cinema - Cisne Negro

Debate Psicanálise e Cinema – Cisne Negro

Gisela Haddad

Não se assiste ao filme Cisne Negro impunemente. Lembro-me de ter ficado com uma sensação perturbadora durante alguns dias. No momento em que escrevo este texto, já com alguma distancia no tempo, torna-se mais fácil analisar o impacto que o drama de Nina exerce sobre nós. Não por acaso ele causou tanto frisson na área psi, que produziu muitos textos espalhados pelas redes sociais.
O diretor, Darren Aronofsky - conhecido por privilegiar análises psicológicas de seus personagens - nos presentou, entre outras coisas, com a apresentação de muitas cenas ilustrativas dos sintomas típicos de uma paranóia. Mas pensar neste filme como um caso clínico é reduzir sua beleza e seu valor estético/artístico e mais, é deixar de lado o fato de ele ser uma produção cultural e por isso ser uma leitura atualizada de nossa condição humana, o que pode enriquecer nosso debate sobre ele. É possível, por exemplo, analisar os diferentes lugares que a cultura reservou e reserva para a loucura, a maneira como a loucura se enlaça com a arte na história, ou ainda em como a loucura impõe este “estranho/familiar” que em geral provoca uma sensação de desconforto, mal estar e estranhamento. Foi assim que a maioria das pessoas que viram o filme descreveram seus sentimentos e é bem capaz que este descompasso situe-se na exigência que sua narrativa impõe a cada um para que abra mão de suas referências - se puder – para entrar em outra lógica, sem tentar enquadrá-la em seus parâmetros. A loucura, tão comum e frequente na cultura, suscita sentimentos intensos de repulsa, de temor e às vezes de idealização.  
Cisne Negro é também a encenação de uma das peças mais importantes da história do ballet, uma releitura moderna do clássico dos clássicos, “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky. “O Lago dos Cisnes" é mais do que a história de um cisne, ou de um papel para uma bailarina. Conta a história de um príncipe, Siegfried, que, coagido pela mãe a se casar com uma cortesã, se apaixona, ao invés, por uma mulher-cisne, Odette, a princesa transformada em cisne branco que só retornará à vida humana pelo amor sincero de um príncipe. Numa noite de luar com o céu encoberto, Siegfried confunde-a com Odile, a filha do feiticeiro Rothbart, que tentara seduzi-lo no baile e, enfeitiçado, jura-lhe amor eterno, condenando assim Odette ao suicídio e à morte. No início interpretado por duas bailarinas, com o tempo alguns coreógrafos perceberam que haveria uma maior coerência com a dramaturgia da peça se fosse  um mesmo corpo encenando esta divisão. Ou seja, é arte como expressão legítima do psiquismo humano ou de sua compreensão no contexto histórico. Exaustivamente encenada nestes últimos dois séculos, O Lago dos Cisnes parece exercer seu fascínio justamente por este desafio imposto à prima ballerina que precisa tanto encarnar o cisne branco, que obedece a um rigor e a um controle extraordinários, quanto o cisne negro, quase uma catarse deste controle. Para o cisne branco, símbolo do amor ideal e puro, o bater de asas são gestos de proteção, mais instintivos, o que exige movimentos mais lentos e suaves. Já para o cisne negro os movimentos são mais rápidos, sensuais e libidinosos. Odette, o cisne branco, jamais encara o príncipe Siegfred enquanto que Odile está sempre a seduzi-lo. Tchaikovsky aproveitou-se da mitologia local em que o cisne representa a feminilidade, mas compõe uma história trágica. Talvez porque vivesse em uma época cujos valores herdeiros da Revolução Francesa (Iluminismo) prometiam liberdade e autonomia, mas na verdade limitavam a vida adulta ao trabalho, ao exército e ao casamento. A vida real era asfixiante, a sexualidade civilizada e a homossexualidade inaceitável. O cisne negro seria uma tentativa de  burlar esta moral burguesa, sem sucesso. O casamento entre o príncipe a princesa acaba em morte aos dois. O filme do diretor Darren Aronofsky abre com imagens de Nina interpretando o Cisne Branco juntamente com o príncipe Siegfried e o feiticeiro/demônio Rothbarth. A câmera capta seus movimentos suaves e precisos, mas logo ficamos sabendo se tratar de um sonho. O sonho de Nina que almeja ardentemente ser a primeira bailarina do Ballet de Nova York. Seu rosto parece satisfeito ao acordar. Sua vida tem um sentido. Ela se levanta e inicia sua jornada diária. Na cena em que o diretor anuncia que estará selecionando a rainha cisne, ele informa sobre a versão escolhida, em que a menina virginal, pura e doce está presa no corpo de um cisne. Ela quer a liberdade, mas só o verdadeiro amor pode quebrar o feitiço. Seu desejo é quase concedido sob a forma de um príncipe. Mas, antes que ele possa declarar seu amor, o gêmeo lascivo, o Cisne Negro, engana e o seduz. Devastado, o Cisne Branco pula de um penhasco, matando-se e, na morte, encontra a liberdade. A partir daí o filme induz cada espectador a ser refém da perspectiva de Nina na imersão da conquista do que parece ser a sua (e de sua mãe) única razão de viver: ser a prima ballerina. Embarcamos em uma viagem às vezes emocionante, outras aterrorizante, à sua psique. O resultado é uma sensação mista entre o sufoco, a aflição e o desconforto. Para muitos uma sensação de horror. Para poucos, o da compaixão. Ficamos aprisionados em seu corpo, ao mesmo tempo em que este é testemunha do surto psicótico de seu psiquismo. Assim  como Nina, não conseguimos mais distinguir delírio de realidade. O diretor Aronofsky consegue, de forma genial, criar um paralelo entre a história da bailarina Nina e a saga que ela interpreta. Cada personagem - a mãe, o diretor,  Lily, e até mesmo Beth, ex- prima donna deste corpo de ballet que acaba se suicidando - ocupa um lugar no imaginário de Nina e passam a ser protagonistas de sua trama paranóica.
Nina é escolhida com ressalvas pelo diretor. Ela é tecnicamente perfeita para encarnar o Cisne Branco: silencioso, doce, contido. Por isso, ao escolhê-la, o diretor deixa claro que ela precisará despertar seu Cisne Negro, deixar vir à tona a agressividade e o erotismo. Mas ele está longe de perceber o significado desta demanda que lhe faz. Talvez se ele se interessasse em acompanhá-la a sua casa, ao seu quarto cor de rosa mantido com uma decoração infantil, à sua rotina diária de horários e dietas rígidas sob os cuidados de uma mãe que se dedica de forma absoluta à realização pela filha, de seu frustrado sonho de ser uma grande bailarina. Se ele pudesse assistir às cenas de seu cotidiano, quem sabe haveria um destino diferente para aquela menina. Mas desde o início o filme já anuncia o fim trágico tal e qual as grandes tragédias gregas em que os heróis nada podem fazer contra o que já lhes está predestinado. Ter que ocupar o lugar da Rainha Cisne desencadeará sua crise. Ao defrontar-se com as exigências que esta experiência lhe coloca, ela não poderá suportar suas insuficiências ou responder aos impasses por não ter como responder, por não ter  referências ou um saber e assim seu mundo começa a ruir e sua resposta é o delírio. Até então sustentada por uma suplência que a aderência ao desejo de sua mãe lhe proporcionava e submetida às certezas maternas, Nina podia viver sem a dúvida ou algum enigma a respeito de si. Mas agora é ao diretor que ela deve se submeter e responder aos seus pedidos, alguém que lhe impõe questões difíceis, confronta-a com o real do sexo, que ela está longe de poder digerir ou suportar. Reduzida à condição de objeto e vítima de seu diretor, é invadida por suas próprias pulsões, perseguida por incessantes demandas imaginárias. O delírio é uma produção de defesa contra o extermínio subjetivo. É uma espécie de construção, uma tentativa de ordenar, dar algum sentido àquele mundo que a circunda e as relações com aquelas pessoas. É o delírio  que lhe permite continuar a viver a bailarina , embora a um custo altíssimo.
Fosse ela neurótica, poderia se questionar se o diretor a achava mesmo especial, desconfiar se ele estaria tramando algo, duvidar se a colega rival a amava ou estava a fim de ferra-la. Mas para Nina não há chances de dúvidas. Ela precisa de certezas a respeito de si e dos demais. Resta-lhe ser a perseguida. Sua experiência é da ordem da certeza, é plena, é absoluta. Ela “sabe” que a conquista do papel principal está em perigo graças às más intenções de Lilly, sua rival, que além de seduzi-la também seduziu seu diretor, que por estar apaixonado, não hesitará em substituí-la por Lilly. O delírio é a  tentativa desesperada dela reconstruir seu mundo espatifado, uma tentativa de saída da crise já que  através dele ela pode obter uma significação subjetiva para si, uma história na qual poderá se incluir e se contar. Sua vida resume-se agora a este trabalho de interpretação destas situações enigmáticas dirigidas a ela, as quais ela só pode responder por meio desta construção. São relações de força, não dialetizáveis, de um mundo sem equívocos, sem contingência e de uma sexualidade sem tropeços. Só nos resta acompanhá-la nesta outra lógica, e vivermos seu aprisionamento até a morte.
No final testemunhamos mais uma vez que o insuportável suscitado pela loucura é o que ela revela de nós mesmos, aquilo que não queremos saber, aquilo que  queremos manter  oculto, reprimido.  Ela nos evoca a fragilidade de nossa própria significação mostrando que ela não está livre de dúvida ou de questionamento, que somos órfãos dos deuses. Nos lembra que sem esta ficção que construímos sobre quem somos, podemos ficar  reduzidos ao nosso próprio corpo. Que a vida não tem nenhum sentido a priori, e que é sobre esse fundo de não sentido que às duras penas construímos um sentido para nossa existência.
Nina circula de modo diferente nas significações da cultura, possui outra escala de referências e valores. Sem  esta “estrada principal”, todas as estradas, ou seja, as avenidas, ruas e ruelas, se equivalem.
É muito difícil conviver com a alteridade que a loucura provoca, por isso existem poucas pessoas dispostas a isso, e menos ainda são as capacitadas para um convívio construtivo. Se há algo que revoluciona nossa concepção de sujeito, mesmo a do sujeito neurótico, é a experiência com a psicose. Por isso para acompanhar uma busca de significação de um psicótico é necessário uma paixão pela variedade das significações humanas. O psicótico reinventa o mundo, cria suas próprias regras, constrói associações inusitadas e sentidos inesperados. Suas palavras são preto no branco, são sérias, decisivas e precisam de respostas muito bem pesadas e pensadas. Sua vida é sempre por um fio e aquilo que ele constrói às duras penas por toda a vida pode desmoronar em um minuto.
Na psicose o acesso ao simbólico - este legado que nos possibilita fazer parte de uma história, ter uma origem, um passado que nos antecede, um mundo que podemos compartilhar com suas leis, regras e normas – está vetado. Se nenhum significante consegue substituir o significante do desejo materno, a lógica simbólica se organiza de outra forma, assim como a realidade psíquica do sujeito. Ele pode ficar assujeitado a uma relação primitiva com a mãe e se tornar o único objeto de desejo dela, provavelmente porque a mãe imaginou- o como alguém que pudesse satisfazê-la por completo. Sem poder ser um outro diferente da mãe, institui-se entre eles uma relação fusional, sem espaços para mediadores, um “mal entendido” trágico e fascinante que obstaculiza e destitui qualquer terceiro. Muitas vezes a mãe cria suas próprias leis, que diferem da lei compartilhada pela cultura. Esta é nossa Nina.


Trabalho apresentado em Sorocaba - Maio de 2011

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