Fazer da psicanálise um ofício: sobre o início da
clínica de um psicanalista
Gisela Haddad
É sempre bom participar de um debate a respeito
deste ofício ao mesmo tempo polêmico e fascinante, ao qual a maioria de nós escolheu investir e
que nos cobra em troca um fazer, um pensar e um refletir incessante sobre a
nossa condição humana. Este tipo de debate costuma contemplar os dilemas e
aflições daqueles que iniciam sua formação em busca de se tornarem
psicanalistas e das questões implicadas na iniciação de sua prática clínica. Em
geral os textos que tratam deste tema são gestados geralmente nas instituições
que se propõem a constituir um espaço de formação e transmissão da psicanálise
ou daqueles que os escrevem, que também o fazem para tentar sistematizar e organizar as diferentes
dimensões aí implicadas. Curiosamente os
textos que abordam este tema são muito parecidos. Em quase todos encontramos
tentativas de enumerar as complexas questões deste processo e fornecer algumas dicas
para aqueles que pretendem se aventurar
neste oficio. Ou seja, reiteram que o
processo pelo qual alguém se autoriza ao exercício da psicanálise acontece no
próprio percurso de formação no qual, além da aquisição e apropriação das
conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel central. Que a
análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é preciso analisar e
submeter a sua clínica à escuta apurada de um supervisor. Uma frase comum a maioria dos textos me
chamou a atenção e é a ela que eu havia pensado em me deter para iniciar nossa reflexão
sobre os ossos deste ofício.
Assim como todos os analistas estão de acordo que
viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de
analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados
procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não
há um saber a priori.
Aquilo que a psicanálise insiste em revelar ao
sujeito a sua revelia é parte integrante do saber e da intervenção
psicanalítica, seu paradoxo e sua razão de ser. Eu só posso me considerar uma
psicanalista se eu puder me submeter a uma analise com alguém que também se
submeteu, etc. Tal e qual um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via
inconsciente, está articulada de forma
complexa ao modo de apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos
analistas. E isto é apenas uma ponta do iceberg.
É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um
se aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise. E são muitas as
dimensões aí implicadas. É assim que podemos conhecer o trabalho de um outro
analista. Também é como analisando que podemos verificar a realidade psíquica,
reconhecer sua existência, experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas,
sem testemunhas, que não se ensina, e que é transmitida na medida em que são
oferecidos sentidos possíveis aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, na medida
em que somos defrontados com nossas dores e resistências, que somos tomados
pela transferência, nesta viagem em direção ao reconhecimento de nossos
conflitos e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se
vive na carne, visceral e pessoal. É na clinica que a teoria se re-cria.Ela é o
lugar disruptor e o motor da conceitualização teórica. Deitados no divã daquele
que elegemos como nosso analista , vamos nos familiarizando com o método
psicanalítico, que busca reconstruir nossa história psíquica, e nos joga a incumbência de refazê-la (ou
ressignifica-la) continuamente.
Os primeiros passos deste percurso para nos
tornarmos analistas é também um trecho espinhoso de nossa prática clinica. Paralelo
ao mergulho em nosso inconsciente,o contato com nossos pacientes nos lançam as
mesmas questões, convocando-nos a revisitá-las sob diversos ângulos. Mas não é
fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos teoricamente
nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses do campo
transferencial. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da
profissão de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e
despreparo pessoal, conceitual e técnico. É comum que apresentemos uma certa
rigidez técnica e alguma confusão teórica, ou ainda que sacralizemos os textos,
em uma tentativa de antecipação teórica que nos auxilie a suportar nossa
aflição diante do não saber.
Mas o desejo de ser analista também nos coloca
diante de questões de identidade, reconhecimento e pertinência, via a eleição
da instituição, dos analistas, dos supervisores. É comum que elejamos Mestres,
a quem atribuímos todo o saber psicanalítico. Nossa formação carrega esta potencialidade identificatoria,
que muitas vezes transforma o discurso teórico em dogma.
Por outro lado este árduo percurso rumo ao oficio de
psicanalista não nos isenta de idealizá-lo como a possibilidade de vir a alcançar
no seu saber uma espécie de completude,
de respostas a todas as perguntas. Neste sentido a Psicanálise deixa de ser
apenas uma possibilidade de investigação humana para ocupar um lugar de verdade
absoluta.
A meu ver este é o desafio que este ofício de
psicanalista impõe hoje mais do que nunca. Se nos orgulhamos de poder
compartilhar da excentricidade da psicanálise, que sempre pretendeu a
desconstrução da majestade do eu, que visa o deslocamento do sujeito com
relação ao submetimento acrítico aos ideais absolutos de seu tempo, que busca abrir
a economia narcísica para outras e novas significações, também é verdade que a resistência
a este saber insiste na cultura. Enquanto a psicanálise propõe
não negar o irracional e o inquietante e sim legitimá-lo como produções autênticas
do sujeito no campo do sentido, seguimos recalcando o barbarismo do desejo em
nome de uma leitura "científica" e "limpa" dos movimentos
da alma. A cultura não cessa de produzir
novas formas de repudio à castração. Somos avessos a ela.
Estou falando de um ideal referido a uma
forma de pensar a psicanálise, um destino que cada um outorga ao movimento
psicanalítico. Cada um de nós constrói este ideal como resíduo de processos
identificatórios ocorridos em sua própria análise, nas experiências de
supervisão, nas leituras dos textos, nas trocas com os pares, e eu sublinho,
nas fronteiras com outros saberes.
Como contribuir para trazer à tona aquilo que a lógica de funcionamento
social necessariamente oculta no imaginário? Como oferecer uma crítica às
normas deste funcionamento social tendo como base a premissa ética contida na descrição que a psicanálise faz do sujeito ou
a sua concepção da condição humana?
Para ilustrar um pouco estas inquietas
questões me reporto a uma dissertação de mestrado a qual tive a oportunidade de
assistir pela manhã na Fundação Getulio Vargas, cujo título Representações do
somático e do psíquico na cultura de uma organização universitária e hospitalar,
é um trabalho de pesquisa realizado por Cristiane Curi Abbud que trabalha na
Unifesp e que tentou traçar um mapa
destas representações ao questionar quais os elementos da
cultura das organizações hospitalares oferecidos a seus membros para que eles
construam coletivamente representações sociais acerca do psíquico e do
somático, e que elementos oferece para que tais representações sejam
integradas, articuladas ou cindidas coletivamente pelos seus membros. Como a
organização se estrutura para lidar com a ansiedade hipocondríaca, o medo de
adoecer e de morrer?A pesquisa mostra que as organizações analisadas não
dispõem de uma cultura que favoreça o processamento psíquico das angústias
despertadas pela tarefa médica em geral, e tampouco pelas angústias despertadas
pelos pacientes somatizadores. Tarefa que constantemente acena a possibilidade
da morte, determinando como angústia central despertada, a hipocondria.
Quem sabe este seja um desafio àqueles que depois de
percorrerem este árduo caminho de se tornar psicanalista, vêem-se diante da
tarefa de emprestar sua escuta aos desvios de leitura de nossa condição humana
que a cultura não cessa de produzir, tal como a leitura que se faz às portas
fechadas.
Debate relizado no CEP (Centro de Estudos de Psicanálise) a convite de Karin de Paula 2012
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