segunda-feira, 12 de junho de 2017

Fazer da psicanálise um ofício: sobre o início da clínica de um psicanalista

Fazer da psicanálise um ofício: sobre o início da clínica de um psicanalista

Gisela Haddad

É sempre bom participar de um debate a respeito deste ofício ao mesmo tempo polêmico e fascinante,  ao qual a maioria de nós escolheu investir e que nos cobra em troca um fazer, um pensar e um refletir incessante sobre a nossa condição humana. Este tipo de debate costuma contemplar os dilemas e aflições daqueles que iniciam sua formação em busca de se tornarem psicanalistas e das questões implicadas na iniciação de sua prática clínica. Em geral os textos que tratam deste tema são gestados geralmente nas instituições que se propõem a constituir um espaço de formação e transmissão da psicanálise ou daqueles que os escrevem, que também o fazem para tentar  sistematizar e organizar as diferentes dimensões aí implicadas.  Curiosamente os textos que abordam este tema são muito parecidos. Em quase todos encontramos tentativas de enumerar as complexas questões deste processo e fornecer algumas dicas para  aqueles que pretendem se aventurar neste oficio. Ou seja, reiteram que  o processo pelo qual alguém se autoriza ao exercício da psicanálise acontece no próprio percurso de formação no qual, além da aquisição e apropriação das conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel central. Que a análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é preciso analisar e submeter a sua clínica à escuta apurada de um supervisor.   Uma frase comum a maioria dos textos me chamou a atenção e é a ela que eu havia pensado em me deter para iniciar nossa reflexão sobre os ossos deste ofício.
Assim como todos os analistas estão de acordo que viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não há um saber a priori.
Aquilo que a psicanálise insiste em revelar ao sujeito a sua revelia é parte integrante do saber e da intervenção psicanalítica, seu paradoxo e sua razão de ser. Eu só posso me considerar uma psicanalista se eu puder me submeter a uma analise com alguém que também se submeteu, etc. Tal e qual um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via inconsciente,  está articulada de forma complexa ao modo de apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos analistas. E isto é apenas uma ponta do iceberg.
É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um se aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise. E são muitas as dimensões aí implicadas. É assim que podemos conhecer o trabalho de um outro analista. Também é como analisando que podemos verificar a realidade psíquica, reconhecer sua existência, experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas, sem testemunhas, que não se ensina, e que é transmitida na medida em que são oferecidos sentidos possíveis aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, na medida em que somos defrontados com nossas dores e resistências, que somos tomados pela transferência, nesta viagem em direção ao reconhecimento de nossos conflitos e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se vive na carne, visceral e pessoal. É na clinica que a teoria se re-cria.Ela é o lugar disruptor e o motor da conceitualização teórica. Deitados no divã daquele que elegemos como nosso analista , vamos nos familiarizando com o método psicanalítico, que busca reconstruir nossa história psíquica, e  nos joga a incumbência de refazê-la (ou ressignifica-la) continuamente.
Os primeiros passos deste percurso para nos tornarmos analistas é também um trecho espinhoso de nossa prática clinica. Paralelo ao mergulho em nosso inconsciente,o contato com nossos pacientes nos lançam as mesmas questões, convocando-nos a revisitá-las sob diversos ângulos. Mas não é fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos teoricamente nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses do campo transferencial. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da profissão de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e despreparo pessoal, conceitual e técnico. É comum que apresentemos uma certa rigidez técnica e alguma confusão teórica, ou ainda que sacralizemos os textos, em uma tentativa de antecipação teórica que nos auxilie a suportar nossa aflição diante do não saber.
Mas o desejo de ser analista também nos coloca diante de questões de identidade, reconhecimento e pertinência, via a eleição da instituição, dos analistas, dos supervisores. É comum que elejamos Mestres, a quem atribuímos todo o saber psicanalítico. Nossa formação  carrega esta potencialidade identificatoria, que muitas vezes transforma o discurso teórico em dogma.
Por outro lado este árduo percurso rumo ao oficio de psicanalista não nos isenta de idealizá-lo como a possibilidade de vir a alcançar no seu saber  uma espécie de completude, de respostas a todas as perguntas. Neste sentido a Psicanálise deixa de ser apenas uma possibilidade de investigação humana para ocupar um lugar de verdade absoluta.
A meu ver este é o desafio que este ofício de psicanalista impõe hoje mais do que nunca. Se nos orgulhamos de poder compartilhar da excentricidade da psicanálise, que sempre pretendeu a desconstrução da majestade do eu, que visa o deslocamento do sujeito com relação ao submetimento acrítico aos ideais absolutos de seu tempo, que busca abrir a economia narcísica para outras e novas significações, também é verdade que a resistência a este saber insiste na cultura. Enquanto a psicanálise propõe não negar o irracional e o inquietante e sim legitimá-lo como produções autênticas do sujeito no campo do sentido, seguimos recalcando o barbarismo do desejo em nome de uma leitura "científica" e "limpa" dos movimentos da alma.  A cultura não cessa de produzir novas formas de repudio à castração. Somos avessos a ela.
Estou falando de um ideal referido a uma forma de pensar a psicanálise, um destino que cada um outorga ao movimento psicanalítico. Cada um de nós constrói este ideal como resíduo de processos identificatórios ocorridos em sua própria análise, nas experiências de supervisão, nas leituras dos textos, nas trocas com os pares, e eu sublinho, nas fronteiras com outros saberes.
Como contribuir para trazer à tona aquilo que a lógica de funcionamento social necessariamente oculta no imaginário? Como oferecer uma crítica às normas deste funcionamento social tendo como base a premissa ética contida na descrição que a psicanálise faz do sujeito ou a sua concepção da condição humana?
Para ilustrar um pouco estas inquietas questões me reporto a uma dissertação de mestrado a qual tive a oportunidade de assistir pela manhã na Fundação Getulio Vargas, cujo título Representações do somático e do psíquico na cultura de uma organização universitária e hospitalar, é um trabalho de pesquisa realizado por Cristiane Curi Abbud que trabalha na Unifesp e que  tentou traçar um mapa destas representações ao questionar quais os elementos da cultura das organizações hospitalares oferecidos a seus membros para que eles construam coletivamente representações sociais acerca do psíquico e do somático, e que elementos oferece para que tais representações sejam integradas, articuladas ou cindidas coletivamente pelos seus membros. Como a organização se estrutura para lidar com a ansiedade hipocondríaca, o medo de adoecer e de morrer?A pesquisa mostra que as organizações analisadas não dispõem de uma cultura que favoreça o processamento psíquico das angústias despertadas pela tarefa médica em geral, e tampouco pelas angústias despertadas pelos pacientes somatizadores. Tarefa que constantemente acena a possibilidade da morte, determinando como angústia central despertada, a hipocondria.
Quem sabe este seja um desafio àqueles que depois de percorrerem este árduo caminho de se tornar psicanalista, vêem-se diante da tarefa de emprestar sua escuta aos desvios de leitura de nossa condição humana que a cultura não cessa de produzir, tal como a leitura que se faz às portas fechadas.

Debate relizado no CEP (Centro de Estudos de Psicanálise) a convite de Karin de Paula 2012 


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