quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Queremos uma boa (vida) morte

Todo ano há certa expectativa em torno dos laureados pelo Nobel de Medicina, premio que costuma dar destaque a pesquisas e descobertas  de cientistas imersos na busca de respostas às perguntas aflitas sobre ruídos, descontroles e enigmas de nosso corpo ou em novas formas de suplantar seus limites. No ano passado o britânico Robert Edwards foi o escolhido por ter desenvolvido a técnica (fertilização in vitro) em que óvulos são fertilizados fora do corpo humano e implantados no útero. Neste ano foi a vez de três cientistas (um francês, um americano e um canadense) que desvendaram segredos do nosso sistema imunológico, abrindo caminho para novas vacinas e tratamentos contra o câncer. A nota destoante ficou por conta do fato de um deles, o canadense radicado nos EUA Ralph Steinman, ter falecido três dias antes de ser anunciado como um dos vencedores do premio. Diagnosticado com câncer de pâncreas há quatro anos, Steinman  prolongou sua vida graças à aplicação da imunoterapia à base de células dendríticas que ele mesmo criou. Para lá de moderno, as notícias sobre possíveis soluções para as “anormalidades” de nosso corpo passaram a ser destaques na mídia e assunto a ser debatido entre todos. Afinal nossas vidas atuais estão orientadas em função de nossa relação com nossos corpos (até o nosso amor próprio) e tudo o que desejamos é que ele seja o mais perfeito, saudável e “técnico” possível, a fim de garantir-nos prazeres, mas principalmente vida. E se a avaliação de  uma vida bem vivida muitas vezes está articulada a uma boa morte, no caso do pesquisador  recém falecido a dignidade fica por conta de seus esforços em lutar, pesquisar, apostar na possibilidade de superar os “invasores” cancerígenos indesejáveis de seu corpo. Bem longe de uma era que admirava e reverenciava certos heróis prontos a morrer ou a enfrentar sacrifícios corporais e superar dores sem reclamar, estamos de bem com nossa busca sem fim de meios que nos protejam das dores do viver e que nos ofereçam visões (versões) menos dolorosas do morrer. A tecnociencia é hoje, sem sombra de dúvida, aquela que mais se assemelha a uma mãe prometeica pós-moderna. Quase todos nós, mesmo os mais desconfiados, nos rendemos às suas benesses e bendizemos suas descobertas de novas e melhores ferramentas que possam trazer conforto e bem estar. O júbilo aumenta quando as noticias respondem ao apelo de um corpo que deseja “viver” mais e melhor. O paradoxo é que na medida em que a existência de nosso corpo ganha esta dimensão inusitada, nossa vigilância sobre sua saúde e aparência se amplia e fica muito mais detalhista e obstinada. Manter o corpo perfeito e saudável  exige de cada um não só cuidados, mas sacrifícios e renúncias importantes e portanto quanto mais  valoroso é, mais ele se torna alvo de preocupações e mais nos tornamos sensíveis à sua presença. Quase a desbancar a antiga aura de nossa alma, o corpo é hoje o lugar privilegiado de manifestação do sentido da vida, nosso espelho, e por isso palco de muitos de nossos conflitos que, a despeito de nossa resistência, muitas vezes  insistem em se tornar visíveis através de seus órgãos, tecidos, células e sistemas. Nossas doenças (orgânicas ou psíquicas) são nossas formas de buscar um equilíbrio para as nossas relações com o mundo e com os outros. Mas certamente não há como negar nossa subserviência ao mito cientifico ao redor do qual todos oramos  para que continue a nos premiar com o aprimoramento e a sobrevivência da espécie, e assim seguimos alternando entre formas inimagináveis e protéticas de nos reproduzirmos (por exemplo) e a corrida atrás de novas e mais eficientes defesas contras as inesperadas, (as vezes) surpreendentes e muitas vezes enigmáticas perturbações (físicas ou morais).

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