segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O que a gente pode fazer

As dores em seu corpo funcionavam como lembretes ao não lhe deixar esquecer que a noite tinha sido um calvário. Acordara pelo menos duas vezes na madrugada, assaltado por sua angústia e por uma sensação de medo. Talvez não houvesse nada pior do que estes “sentimentos agudos” que ficam a brigar com o torpor do sono até que finalmente vencem a batalha e inundam todo o corpo. Ponto para a  consciência crítica a lhe importunar sem descanso. O quarto ainda estava escuro, mas o barulho da manhã já invadia o ambiente. Tentou evitar olhar para os enormes números digitais vermelhos do relógio, mas eles haviam sido colocados ali no alto justamente para facilitar a organização de sua rotina diária. Medo. Medo de ter que pensar, de ter que se lembrar de tudo. De ter que resolver, decidir, agir. Nestas horas parecia fácil visualizar que à proporção da evolução,também pipocavam formas de se safar do peso da administração da própria vida. Na medida em que o orçamento ganhava algum volume era possível nomear agentes que passavam a funcionar como co-autores desta empreitada. Tinha se beneficiado desta prerrogativa sem nenhuma culpa. Seu secretário “faz tudo” e seu motorista – cuidadosamente selecionados – foram assumindo parte a parte de suas obrigações a ponto de se confundirem com ele mesmo. Os três juntos eram imbatíveis e podiam jogar horas sem deixar a bola cair, tamanha a sincronia. E quando se atinge um estágio em que é possível se ter a ilusão do controle (quase) absoluto é muito fácil se esquecer do imponderável. Do inesperado. Das surpresas. Tem-se a impressão de que a vida vai (mesmo) andar no trilho da tranquilidade, para sempre. Sentiu a vergonha inundando seu corpo, ultrapassando e se misturando por alguns segundos com o tormento do medo – um medo que não ousava dizer o seu nome, uma espécie de covardia autocomplacente. Será que havia estudos sobre estas diferenças, anunciadas pelo corpo, para as sensações de medo/ angustia, vergonha/humilhação, nojo/horror? Cada grupo parecia movimentar órgãos e vísceras específicos, como se fossem tonalidades diferentes de desconfortos. Vergonha de que? Não sabia ao certo, mas tinha dificuldade em se lembrar de si mesmo no passado recente. A figura poderosa que se tornara, um pouco arrogante e muito vaidosa, cuja presença provocava uma ruidosa avalanche de luzes, câmeras e microfones. Pensar que quase todos buscam esta espetacularização de suas vidas, este reconhecimento estampado nos olhos dos outros, a satisfação de estar em evidencia. Tal como um balão de aniversário, foi só a festa acabar para que ele ficasse sem ar, sem função, esquecido ali, à mercê dos que se ocupam da limpeza geral no dia seguinte. De repente  aquela parafernália tecnológica de sua casa que tanto lhe enchia de orgulho, da qual ele se ufanava de ter bolado e conquistado, já não fazia o menor sentido. Aninha bem que tentara lhe alertar. Mas desistira. Na ultima reunião familiar (antes do “desastre”) ela já fazia comentários irônicos, sem aquela preocupação/indignação de irmã mais velha diante dos “maus” comportamentos do caçula. A experiência humana seria mais complexa do que a tarefa de buscar, comprovar e ostentar status, teria dito. Para ela, qualquer atividade humana deveria -  antes de mais nada - ser reconhecida por sua responsabilidade social. Aninha seguia este modelo de gestão de vida, em que os encontros, as reuniões, a solidariedade, as trocas entre as pessoas precisavam ocupar a primeira linha de ações de qualquer ser humano. Balançou a cabeça. Com tantas coisas para decidir, surpreendia-se por este resgate de ideias sobre a vida. Ele que  sempre engrossara o coro dos que  consideravam sua irmã uma militante social, agora sentia-se tal e qual um mendigo desamparado, sem amigos que valessem a pena, louco por uma lembrança que lhe devolvesse um valor, uma medida de sua capacidade de ser amado. Resolveu ligar para Aninha.

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