sábado, 19 de novembro de 2011

Eu como você

Em geral os filmes de Almodóvar dispensam apresentações. São filmes que trazem a marca e o estilo de seu “autor”, este espanhol que conseguiu abordar a temática da sexualidade latina (e humana, claro) escancarando o preconceito, mas principalmente o que fica escondido nas bordas, na periferia ou no avançado das noites, quando a grande maioria já dorme em suas camas e casas protegidos. Sua arte não cabe nos bons nem nos maus valores: causa espanto, ambiguidade e surpreende por tocar-nos seja pela com-paixão ou pela perturbação (caso de seu ultimo filme “A pele que habito”). Sem o colorido e o excesso que marcam seus filmes anteriores, neste, Almodóvar parece querer “esterilizar” e até banalizar os impactos da sexualidade ao trazer ao grande público um tema perseguido desde sempre pela humanidade, o controle da vida e da morte ou, se quisermos, o controle (silencio) das dores do viver. Tal como um Dr. Frankenstein pós-moderno, Antonio Banderas interpreta o cirurgião plástico Ledgard, que utiliza como cobaia (de forma inescrupulosa), uma mulher que mantém cativa em sua mansão/ clinica, e na qual irá implantar  um novo tipo de pele transgênica (feita com DNA suíno) que, embora mantenha a sensibilidade ao toque, deixa-a resistente ao fogo, a picadas de inseto e ,é claro, a dor. A frieza/indiferença deste cientista ousado esconde, no entanto, não só sua busca obsessiva pela esposa perdida (e reconstruída nesta mulher-objeto), como sua vingança pela morte da filha, pela qual tentará fazer “justiça” com suas próprias “mãos”. Na medida em que o filme avança e regressa no tempo para situar o espectador, a trama se abre aos personagens almodovarianos, agora sim se apresentando com suas historias dramáticas, seus segredos, infortúnios, perdas, enfim, tudo o que pode tentar justificar o uso e o abuso de uns contra os outros. Há com certeza uma espécie de crítica aos avanços inimagináveis da ciência, mas há mais que isso. Como toda  arte  que exerce seu papel de apontar para valores futuros, transgredindo os vigentes, Almodóvar escancara o homem por trás da ciência  e seu anseio em se apossar do próprio corpo através do  controle de seus excessos, suas vontades, seus prazeres e  dores, em especial, as dores psíquicas. Corpos que se transformam em meros objetos, que podem adquirir novas formas e sexo ou descartar o que não serve. O perturbador da trama é o que ela revela sobre os avessos e sombras do espírito humano - a violência do desprezo, do constrangimento e da humilhação própria das relações de domínio e submetimento. É a constatação de que estamos sujeitos a construir, ainda que de forma defensiva, um eu todo poderoso e onipotente, que facilmente nos conduz ao abuso de poder, ao canibalismo utilitário e instrumental, subvertendo o que temos de mais caro em nossa escalada humana - a possibilidade de dimensionar o valor do outro/ próximo como um parceiro em nossa empreitada do viver. Se é pelas parcerias que podemos enfrentar o medo e os percalços de nosso encontro com a sexualidade e a morte, tal percepção não está dada e nem sempre é possível; precisa ser buscada, desejada, fazer-se necessária. Por isso o filme incomoda, e ficamos sem saber em que arquivo guarda-lo: teremos que inventar ou nos indignar.
Para conferir: A Pele Que Habito (La Piel que Habito) – Espanha 2011
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes

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