quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Conto de fadas moderno

A frase saiu pronta, rápida, mas eu nem havia pensado sobre ela. Provavelmente fazia parte destes momentos em que fazemos alguma associação, mas seu sentido nos escapa. Diante da necessidade de eleger um tema a ser abordado em nossa seção de debates do próximo numero da Revista Percurso ( http://www.revistapercurso.com.br/) , pedi às minhas colegas que assistissem ao filme “O garoto da bicicleta” (ainda em cartaz na capital) e deixassem-se afetar por sua trama. Depois voltaríamos a conversar. Saí dali e fiquei a tentar buscar o sentido daquele convite. Porque aquele filme me parecia paradigmático a ponto de suscitar questões importantes? Assistira-o há dois dias antes, não só por ele ter conquistado o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes/2011 ou fazer parte da 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas por ter visto seu trailer algumas vezes e me encantado pelas cenas do menino “voando” em sua bicicleta no verão de alguma pequena cidade do interior. Cenas de crianças que circulam sozinhas de bicicleta pela cidade não são mais usuais em nosso panorama paulistano nem mesmo em cidades do interior como Ribeirão Preto ou Campinas, mas fazem parte de meu repertorio afetivo infantil. Com pouco mais de oito anos era meu veículo de transporte para fazer pequenas compras ou ir às aulas de piano, a algumas quadras de minha casa. Nunca me esquecerei da sensação de liberdade e até de uma certa autonomia protegida, que me permitia transitar as vezes pelas calçadas outras pelas ruas asfaltadas da minha querida Morada do Sol. De fato a bicicleta tem um significado importante na historia de Cyril. Ela funciona ao mesmo tempo como uma possibilidade dele transitar entre seu passado para resgatar as boas coisas e fechar suas feridas, e ajuda-o a buscar um lugar para si no futuro. Aos 11 anos, deixado por seu pai em um orfanato  com a promessa de que seria apenas por um mês, Ciryl  se inquieta com a falta de noticias deste pai (que desaparece quase sem deixar rastros), e passa a criar estratégias de fuga, convicto de que o encontrará, assim como a sua bicicleta. Em uma destas tentativas, consegue voltar ao seu apartamento, mas ele está vazio, quase sem vestígios de sua antiga vida, inclusive sem sua amada bicicleta. Ao tentar se desvencilhar da captura dos agentes de seu orfanato, esbarra em Samantha, uma cabelereira da cidade, e a abraça forte e desesperadamente como a impedir que o levem. Aos berros ele deixa claro sua crença de que o sumiço do pai é improvável e clama por uma história que o convença. Seu pedido de socorro desperta a compaixão e a curiosidade desta moça que acaba encontrando a tal bicicleta à venda e decide dá-la de presente a Cyril no orfanato. Mas ele ainda não pode crer que o pai tenha colocado a venda algo tão valioso sem consulta-lo. Faz mais sentido imaginar que isso teria sido obra de algum ladrão de bicicletas. O orfanato abre às famílias da cidade a chance de se oferecerem como guardiãs dos órfãos para os finais de semana. Samantha, a pedido do próprio Cyril, acolhe-o e o ajuda na busca do pai perdido. Deixando de lado o restante da trama (para não eliminar as surpresas de quem ainda não viu), em entrevistas a imprensa, os irmãos Dardene, diretores do filme, proclamaram ser este um conto sobre o amor cujas referencias seriam os contos de fada, no estilo de um conto de fadas moderno. Curiosamente, se os contos de fadas costumam assegurar um final feliz, eles também são a maneira que nós adultos inventamos para revelar aos nossos filhos as dificuldades das relações familiares, em que pais e filhos podem odiar aqueles que mais amam, em que invariavelmente há desencontros amorosos, e perdas de ilusões de perfeição. Nem descrença absoluta, nem ingenuidade ou julgamento moral na composição dos personagens, somos convidados a “escutar” os motivos e justificativas de atos humanos. Até mesmo o mito da infância feliz está sendo questionado, aquele em que um casal parental amoroso e presente seriam garantia para um filho se tornar um adulto com autoestima permanente, apto a enfrentar as dificuldades da vida. Cyril é um personagem contemporâneo, meio insuficiente, meio atrapalhado, às vezes agressivo, outras corajoso, aflito e terno que busca valentemente um lugar no mundo para si. E os diretores parecem apostar em nossa capacidade de nos aproximarmos dos personagens, não para repeli-los por aquilo que nos incomoda neles, mas para reconhecer neles possibilidades nossas, e quem sabe nos solidarizarmos com suas dores.



Para conferir:

O Garoto da bicicleta  (Le Gamin au Vélo). Bélgica, 2011.

Direção: Jean Pierre e Luc Dardenne.

Com Cécile de France, Thomas Doret, Jérémie Renier.


Nenhum comentário:

Postar um comentário