segunda-feira, 26 de setembro de 2011

De mãos dadas

Não conseguia pegar no sono. Aquele vazio insuportável lhe imobilizava a alma. Ninguém pode dormir se o “dia seguinte” não existe mais, não há nada agendado, nem as obrigações de praxe, nem algo novo ou prazeroso. Nada. O cérebro pensante e o coração pulsante estavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angustia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças. Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 42 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narravam este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores de perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo. Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão longeva e rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois de tantos anos juntos, a vida a dois fica quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre juntos ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se pareceriam com aquela senhora gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível  passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.

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