terça-feira, 4 de março de 2014

Não deixem que eu me lembre


Uma das pedras basais da leitura psicanalítica de nossas vidas psíquicas é o papel da memória, e nossos esquecimentos nada casuais. Muito cedo Freud descobriu quão frequentemente precisávamos “apagar” ou “maquiar” certas vivências demasiadamente impactantes, porque na ocasião em que elas ocorriam, não dispúnhamos de recursos para “organiza-las” de forma a encaixa-las em nossa vida psíquica, sem um quantum excessivo de dor e sofrimento. Claro que isso não acontece sem custos. Em geral construímos defesas e proteções para que estas lembranças não nos importunem, mas pouco sabemos sobre todo este processo complicado. Freud chamou isso de neurose e convidou aos que quisessem e pudessem, a se submeter ao seu método de associação livre com o propósito de reescrever/encontrar novas narrativas sobre suas vidas, recuperando e colocando novos significados naqueles fatos difíceis de sua própria historia. Constatou, no entanto, que nem todos estavam dispostos a “remexer” em seus baús e suas incômodas lembranças. Em um texto da Ilustríssima deste domingo há um relato sobre um encontro em 2001 do então já conceituado artista plástico britânico Steve McQueen com uma turma de estudantes de artes plásticas da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) em que ele, negro, quer saber por que ali não há negros. Ao constatar o mal estar provocado por sua pergunta, e a falta de preparo de todos para um debate sobre a discriminação no país, deixou claro seu estranhamento. Em tom provocativo, afirmou que no Brasil certas questões pareciam ficar deliberadamente fora, como se não existissem. Não era o caso dele. Seu  mais recente filme, "12 Anos de Escravidão", baseado nas memórias do negro Solomon Northup publicadas em 1853, concorre a nove Oscars e está dando o que falar. Solomon nasceu livre e viveu em Nova York trabalhando como carpinteiro e violinista até ser sequestrado e vendido como escravo para uma fazenda no sul dos Estados Unidos, poucos anos antes da guerra civil. Sem conseguir provar ter nascido livre, é submetido a todos os tipos de violencia, crueldade e humilhaçoes. Vale notar que McQueen é o terceiro cineasta negro indicado ao Oscar em 86 anos de premiações. Nunca um diretor negro levou a estatueta. Mas se quisermos pinçar apenas uma das inúmeras diferenças quando o tema é racismo, ao menos nos USA o assunto (a história) é debatido e pode até ser premiado. Neste ano de 2014 o início da primeira guerra mundial faz cem anos. No Brasil, o golpe militar de 1964 faz 50 anos. Os 20 anos de ditadura militar são outro tema tabu para nós brasileiros. Não só não se comenta ou se reflete sobre estes acontecimentos como parece haver um repúdio aos que, tendo sido vítimas direta ou indiretamente deste período de exceção, insistem em trazer à tona fatos e versões enterrados. O “descaso” é generalizado. Ao contrário do que parece, no entanto, nossa indiferença moral diante de certas injustiças sociais, nossa franca preferencia pela negação da existência destas injustiças ou da responsabilidade social e politica que cabe/coube a cada um, nos joga em um processo de anestesia e de ignorância quanto a nossa história. Seríamos ainda uma sociedade tão frágil e tão infantil a ponto de não suportar debater nossos equívocos ou nosso passado?

 

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