Uma das pedras
basais da leitura psicanalítica de nossas vidas psíquicas é o papel da memória,
e nossos esquecimentos nada casuais. Muito cedo Freud descobriu quão
frequentemente precisávamos “apagar” ou “maquiar” certas vivências
demasiadamente impactantes, porque na ocasião em que elas ocorriam, não
dispúnhamos de recursos para “organiza-las” de forma a encaixa-las em nossa
vida psíquica, sem um quantum excessivo de dor e sofrimento. Claro que isso não
acontece sem custos. Em geral construímos defesas e proteções para que estas
lembranças não nos importunem, mas pouco sabemos sobre todo este processo
complicado. Freud chamou isso de neurose e convidou aos que quisessem e
pudessem, a se submeter ao seu método de associação livre com o propósito de
reescrever/encontrar novas narrativas sobre suas vidas, recuperando e colocando
novos significados naqueles fatos difíceis de sua própria historia. Constatou,
no entanto, que nem todos estavam dispostos a “remexer” em seus baús e suas
incômodas lembranças. Em um texto da Ilustríssima deste domingo há um relato
sobre um encontro em 2001 do então já conceituado artista plástico britânico Steve
McQueen com uma turma de estudantes de artes plásticas da FAAP (Fundação
Armando Alvares Penteado) em que ele, negro, quer saber por que ali não há
negros. Ao constatar o mal estar provocado por sua pergunta, e a falta de
preparo de todos para um debate sobre a discriminação no país, deixou claro seu
estranhamento. Em tom provocativo, afirmou que no Brasil certas questões pareciam
ficar deliberadamente fora, como se não existissem. Não era o caso dele.
Seu mais recente filme, "12 Anos de
Escravidão", baseado nas memórias do negro Solomon Northup publicadas em
1853, concorre a nove Oscars e está dando o que falar. Solomon nasceu livre e viveu
em Nova York trabalhando como carpinteiro e violinista até ser sequestrado e
vendido como escravo para uma fazenda no sul dos Estados Unidos, poucos anos
antes da guerra civil. Sem conseguir provar ter nascido livre, é submetido a
todos os tipos de violencia, crueldade e humilhaçoes. Vale notar que McQueen é o terceiro cineasta negro
indicado ao Oscar em 86 anos de
premiações. Nunca um
diretor negro levou a estatueta. Mas se
quisermos pinçar apenas uma das inúmeras diferenças quando o tema é racismo, ao
menos nos USA o assunto (a história) é debatido e pode até ser premiado. Neste
ano de 2014 o início da primeira guerra mundial faz cem anos. No Brasil, o
golpe militar de 1964 faz 50 anos. Os 20 anos de ditadura militar são outro
tema tabu para nós brasileiros. Não só não se comenta ou se reflete sobre estes
acontecimentos como parece haver um repúdio aos que, tendo sido vítimas direta
ou indiretamente deste período de exceção, insistem em trazer à tona fatos e
versões enterrados. O “descaso” é generalizado. Ao contrário do que parece, no
entanto, nossa indiferença moral diante de certas injustiças sociais, nossa
franca preferencia pela negação da existência destas injustiças ou da
responsabilidade social e politica que cabe/coube a cada um, nos joga em um
processo de anestesia e de ignorância quanto a nossa história. Seríamos ainda
uma sociedade tão frágil e tão infantil a ponto de não suportar debater nossos
equívocos ou nosso passado?
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