segunda-feira, 2 de junho de 2014

Raízes

Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias, visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade. Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um “apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o “estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para  se integrarem às novas normas. Outras, ao contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros, fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços, e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe  mergulhar no passado, assim como a viagem aos lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.  

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