Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha
de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares
pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias,
visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua
infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após
alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma
garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza
que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao
acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos
impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua
infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus
dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais
de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e
articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A
imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo
para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova
chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de
sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua
língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a
dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade.
Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das
famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um
“apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o
“estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao
convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para se integrarem às novas normas. Outras, ao
contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros,
fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes
de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos
filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova
identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais
tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços,
e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma
posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o
diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu
amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era
digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos
conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer
valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais
subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar
na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe
exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado
residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos
de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira
trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o
fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe mergulhar no passado, assim como a viagem aos
lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas
raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.
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