domingo, 13 de outubro de 2013

As teclas pretas das teclas brancas


Em minha família, pianos abertos, prontos para serem tocados por quem quisesse era (e ainda é) uma cena comum. Tínhamos um em nossa casa, em cada uma das casas de nossos avós e de muitas de nossas tias. Quando éramos pequenos, minha mãe, que havia se formado no Conservatório Dramático e Musical de Araraquara, costumava tocar as músicas de um maravilhoso álbum de Chopin lançado por ocasião do filme sobre sua vida - À noite sonhamos (1945)- com a seleção da trilha sonora. Por conter muitas fotos de cenas do filme, adorávamos folheá-lo, e embora tivéssemos nossas preferencias – Noturno n 2, o Estudo Revolucionário ou o Estudo das teclas pretas, por exemplo - era impossível decifrar aquelas bolinhas pretas, cheias, vazias, com hastes, junto com muitas ou separadas que seguiam por espaços de linhas pelo álbum todo. Não me lembro de quem me ensinou a tocar o “bife”, uma espécie de introdução ao teclado de um piano, mas lembro-me bem de meu orgulho quando me punha a toca-lo sempre que tivesse alguma plateia. Sentia-me muito sabida por poder arrancar um som agradável e conhecido daquelas teclas brancas, mas principalmente das pretas. Parecia natural, portanto que aos cinco anos eu começasse a ter aulas de piano com Dona Eda, uma jovem mulher muito alta, que morava com sua irmã e sua mãe bem enfrente ao comércio de meu pai. Não conheci nenhuma professora tão doce e tão preparada para ensinar crianças pequenas a ler aqueles hieróglifos musicais e sei hoje que devo à sua imensa paciência o fato de eu ter me formado em piano. Como naquela época eram necessários 9 anos de estudos para se obter o diploma, depois de alguns anos tive que me despedir de minhas aulas particulares com Dona Eda para ingressar no Conservatório Musical da cidade. Um marco que sublinhava minha passagem à pré-adolescência com novos e mais difíceis destinos. Deixava para trás com muita dor na alma, não apenas minha querida professora, mas alguém especial, que sabia exercer com maestria a difícil tarefa/arte de ensinar, em uma combinação de delicadeza, reconhecimento pontual de minhas aquisições e muito jogo de cintura para com a pesada disciplina exigida para este aprendizado. Uma de suas estratégias era colocar balas deliciosas encima das mãos enquanto eu tocava e se eu conseguisse não derruba-las poderia levar para casa em dobro. Nem tudo eram flores. Muitas vezes “emburrei” nos degraus da varanda exigindo que ela, no devido tempo, fosse me convencer a voltar e tentar novamente. Assim como a máxima que diz que governo bom é governo invisível, que não nos impõe sua presença, Dona Eda trabalhava nos bastidores. Tudo o que me lembro dela passa por este canal amoroso de sua aptidão para transmitir seu conhecimento sem fazer alarde. Uma das questões que mais se debate nos dias de hoje é como e quais valores deveriam ser transmitidos de geração a geração, que possam servir de ferramentas para uma vida “bem vivida”, um convívio entre pessoas minimamente  respeitoso. É natural que muitos se lembrem de como a educação tradicional privilegiava a transmissão de comportamentos virtuosos geralmente baseados em alguns ideais já estabelecidos e coletivamente cultuados. Mas as rupturas com estes ideais foram de tal ordem que temos dificuldades para dimensionar a nova realidade que nos circunda e entender seus múltiplos aspectos. Desconfiamos que ficou muito mais complexa a tarefa da transmissão entre gerações e que não será o contato com os objetos ou ferramentas que farão crianças melhores, mais inteligentes ou felizes, mas como estes objetos/ferramentas  serão mediados por adultos capazes de fornecer significados e ajustes importantes ao que ainda não sabem. Em qualquer piano aberto pode-se dedilhar o bife. Alguns sabem toca-lo, ou a temas musicais de seu gosto. Muitos não se atrevem. Outros tantos sabem TUDO de música e podem tocar não só piano como qualquer instrumento. No inicio do aprendizado utilizamos muito mais as teclas brancas e à medida que a harmonia aumenta em complexidade é que as pretas passam a ser utilizadas. As teclas pretas são os meios tons entre uma tecla branca e outra, ou seja, podemos inclui-las para aumentar as opções de modulações do som ou tocar apenas as notas básicas que todos conhecem. Não sei se eu teria continuado a estudar piano se não tivesse tido meu pré-primário com Dona Eda. Foi ela quem me “revelou” não a música, mas a beleza da música e me transformou em alguém apaixonada por ritmos, sons especiais, inaugurando um espaço novo e importante no meu conjunto. Talvez a tarefa desafiadora de qualquer adulto contemporâneo seja a de se preparar para ser este decifrador para os pequenos, mas sabendo que é preciso começar pelas teclas brancas para quem sabe chegar às pretas.

 

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