domingo, 4 de outubro de 2009

As razões humanas

Dizem que os romances costumam preencher os espaços desérticos ou conflituosos de nossa vida cotidiana e por isso continuariam a angariar um grande número de leitores (ou espectadores) espalhados por este mundo afora. Alguns porque oferecem histórias que se encaixam aos anseios e dores que vivemos naquele momento, outros porque promovem um sentimento de esperança ou de aventura ao colorir a vida e renovar as apostas que fazemos em nós mesmos ou no mundo. Quem sabe este adjetivo que tanto prezamos, o romântico, seja na verdade uma invenção humana que guardaria um lugar para nossa imaginação, para as fantasias e desejos que podem nos transportar a mundos e vidas fictícias, sem que nos fosse necessário buscar grandes razões para isso. Algo que cobriria as verdades nuas e cruas ou a realidade áspera de nossas vidas e de nossas infinitas responsabilidades. Pelo romance, podemos viver amores, grandes paixões em que somos finalmente pessoas especiais e reverenciadas, mas também imaginar nossa força destrutiva, vingando-nos dos que nos desprezam, nos molestam ou nos excluem. Na verdade, esta dimensão romântica de nossa humanidade insiste, também porque vivemos a era da razão, em que somos chamados a responder permanentemente à nossa capacidade de discernir nossas boas e más condutas, escolhas ou idéias. Mas desde que o mundo passou a ser uma vitrine em que todos os seus habitantes assistem os acontecimentos em tempo e imagem real, aconteceu o inevitável: não podemos mais acreditar que somos ou já fomos razoáveis e coerentes “naturalmente”. O bom uso da razão depende de um processo longo e de um complexo funcionamento de nossa psique, que precisa crer no valor desta razão, ou seja, aceitar o preço das renúncias e dos sacrifícios que ela nos impõe e o difícil empenho em viver com as diferenças e com as injustiças sem desistir de encontrar um destino possível e aceitável para tais conflitos. O recente bafafá em torno da censura de nossa imprensa imposta por certas estratégias políticas é um exemplo interessante e denunciador não só do panorama sócio-político em que vivemos mas dos comportamentos nada “razoáveis” dos políticos que nos representam, que sem se sentirem constrangidos e em plena era da livre informação, tentam impedir que as notícias sobre as suas falcatruas e militâncias em causa própria, cheguem a público. Já o presidente da Venezuela, que desde que surgiu na cena política anunciou seu desejo de ser imortalizado como Fidel II, concedeu a si próprio o direito de não ser razoável em suas medidas de imposição de silêncio à imprensa nacional e à liberdade de expressão de seu povo. Na Argentina, seu jornal de maior circulação foi invadido por “tropas” de fiscais do governo,em uma clara intenção de constranger a publicação das não tão boas notícias sobre o casal presidente. Se a razão impõe a todos um saber sobre o certo e o errado através dos valores que são compartilhados pela comunidade, ser razoável depende de um esforço e um investimento permanente na atribuição de valor ao nosso semelhante, seja ele quem for. As decisões e ações destes políticos contrariam o razoável e contribuem para mostrar que aqueles que elegemos para nos representar em nossos interesses (assim como nós) não estão imunes aos anseios humanos de poder ou aos de se evitar os tributos morais e a submissão às leis e aos códigos que deveriam regular, ainda que razoavelmente, nossas vidas em comum. Quem sabe fazem parte das “razões” que nossa própria razão desconhece.

coluna do dia 30 de setembro de 2009

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