quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Quem são os clássicos?

Formávamos uma roda de amigos em volta de uma mesa em cuja superfície descansava pratos e copos usados, ali deixados para dar lugar à prosa e ao riso das falas e das memórias de cada um. A certa altura invocávamos as mudanças ocorridas na maneira como no Brasil atual a figura do negro, que em nossa infância sofria claramente uma discriminação “natural”, hoje começava a tomar um lugar especial, de importância na composição de nossa identidade cultural, o que aos poucos abatia as cores vivas do racismo. No tom das lembranças, uma amiga confessava o quanto ela e o irmão ansiavam a presença de tia Nastácia em sua cozinha, já que descendente de alemães e nada talentosa para a gastronomia (mesmo a trivial), em algumas ocasiões sua mãe não só ameaçava nunca mais cozinhar para eles, mas deixá-los a cargo da cozinheira “preta” do Sítio do Picapau Amarelo. “Quantas vezes torcemos para que isto acontecesse!” - disse ela. Estavam abertas as portas de nossa memória para as leituras deste mundo mágico e brasileiro das histórias infantis escritas por Monteiro Lobato. Vi-me invadida pelo clima especial de seus personagens, habitantes de um recanto de magia de minha infância. Ora era Narizinho e suas mediações consistentes, ora a espevitada e incansável Emilia com suas invenções inesperadas. Ambas as meninas eram minhas inspirações infantis e isso graças à minha amiga Tereza, que na mesma rua, algumas casas depois da minha, mantinha imponente na estante de sua sala, esta coleção que de certa maneira me introduziu no fantástico mundo da leitura. Um após outro, fui devorando as Reinações da Narizinho, Emilia no país da Gramática, A Reforma da Natureza, Historias de Tia Nastácia, Os Doze trabalhos de Hércules, satisfeita de saber que havia outros livros ali na estante, com os mesmos habitantes deste universo tipicamente infantil. Refiro-me ao fato de que nada seja mais parecido com o mundo infantil do que a “naturalidade” do espaço do faz de conta, em que uma boneca de pano fala, um boneco de sabugo de milho- o Visconde de Sabugosa- é um sábio e conhecedor das ciências, em que há um burro falante filósofo, um rinoceronte (Quindim) conhecedor de gramática, etc. Também não há nada mais próximo às fantasias infantis do que a “supressão” das figuras do pai e da mãe, sempre responsáveis pelo chamado à realidade, informando incansavelmente aos filhos suas obrigações e deveres, seus limites, interrompendo assim o mundo do “faz de conta”. No Sitio, os adultos embora figuras protetoras, estão representados por Dona Benta, a avó que tenta aconselhar e transmitir alguns conhecimentos mas está longe de exercer as funções coercitivas dos pais e Tia Nastácia, a quituteira “preta” que encarna a cultura popular, com suas crendices e superstições. Nas últimas décadas as prateleiras das livrarias abriram um espaço especial à literatura infantil diante dos números cada vez maiores de títulos, nacionais e estrangeiros. Mas nos anos 50 e 60 é provável que Monteiro Lobato fosse imbatível na composição de uma realidade próxima à nossa, habitada por jabuticabas, saci-pererê, boneca de pano, leitões,besouros, borboletas, ao mesmo tempo em que invocava clássicos gregos ou fazia incursões à lua, marte e saturno. A recente nota distribuída pelo Conselho Nacional de Educação classificando o livro “Caçadas de Pedrinho” de “racista” talvez não esteja levando em consideração o fato da obra de Monteiro Lobato já fazer parte de um acervo clássico de nossa literatura. Só assim pode fazer parte das rodas de conversas sobre a infância de uma geração que se nutriu destes livros e sabe bem que eles foram escritos em tempos diferentes, capturando os valores e costumes da época e, portanto servindo de pesquisa destes traços que atravessam nossa cultura geral.

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