sexta-feira, 11 de junho de 2010

O si mesmo

Fala-se muito no sentimento de si, no amor a si mesmo, na badalada auto estima e parece haver um certo consenso sobre o fato de em nosso mundo atual haver mais espaço para uma exaltação do eu. Para quem aprecia literatura, por exemplo, a estética das narrativas da época áurea do romantismo privilegiava o recato em relação a uma exposição vaidosa de si, o que fazia com que os personagens fossem discretos quando se descreviam aos outros, evitando valorizar em demasia seus talentos, atos ou renúncias. Eram tempos em que a etiqueta social carregava normas bastante específicas e a elegância implicava em uma reserva da intimidade de todos. Se pudéssemos ser simplórios com um tema tão complexo quanto as práticas sociais e culturais de cada época, era só fazer o jogo do “contrário”. Tornou-se prática comum o falar de si, o que inclui livros, blogs, entrevistas em que o personagem é o próprio sujeito, sua história, seu passado, suas idiossincrasias, suas receitas, sua maneira de estar e pensar a vida. E não há restrições de verbos e adjetivos enaltecedores. Transformamo-nos em narcisistas. Mas é bom que se saiba que o mito de Narciso não cabe apenas na frase do amor a si mesmo. Desde seu nascimento o belo Narciso estava condenado a não se olhar, pois isto implicaria em sua morte. Apaixonada por ele, Eco não consegue mais do que sua indiferença e acaba por morrer, deixando “ecoar” para sempre seu lamento. Responsabilizado pela morte dela, Narciso é conduzido à lagoa em que Eco morrera e ao contemplar sua imagem refletida nas águas, apaixona-se por si mesmo e morre. Estamos diante da característica principal do narcisismo, esta etapa a qual todas as crianças precisam passar como parte importante da formação de uma imagem de si mesmos, quando o olhar dos pais devolvem a elas sua adorável imagem e os outros são apenas reflexos deste si mesmo, não sendo possível enxergá-los como diferentes porque sua fragilidade não lhes permite saber que desde o começo de sua história, estes “outros”estão à sua volta para amar, cuidar, punir, frustrar, trair. Por isso Narciso oscila constantemente entre a euforia pelo reconhecimento de uma imagem engrandecedora e adorada e a agressividade contra o espelho que muitas vezes (e no decorrer da vida cada vez mais) lhe nega esta imagem idealizada de si. Mas Narciso é também um mito lembrado na era atual porque encarna nosso anseio de ser alguém que ao ficar fechado em um grande amor por si mesmo, não precisa de mais ninguém. Quem de nós já não teve seus sonhos de autonomia total, longe de todos e tudo, somente em “paz” consigo mesmo, sem a necessidade de ter que “responder” a todas as demandas de seu meio e mais, a todas as demandas de sua consciência crítica, aquela que mede de modo permanente e infernal a imagem que achamos que temos de nós, a imagem que achamos que os outros tem e aquela que queríamos ter? Ao contrário do que imaginamos, no entanto, para se ter uma boa “auto estima” é necessário reconhecer de alguma forma não só que o controle sobre esta “imagem de si” não está em nossas mãos mas que ela é altamente instável e precária. Portanto, um sentimento de si que possa compensar esta fragilidade é sempre uma conquista, pois implica “suportar” que os outros tenham uma imagem de si mesmos diferentes, assim como refletem nossa imagem de maneiras as mais inesperadas. Se esta descoberta nos expõe ao curso da vida, ela introduz ao nosso antes pobre vocabulário, uma infinidade de verbos e adjetivos novos. (Claro, nem todos prazerosos)

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