É possível que um dos melhores lugares do mundo para
se fazer uma pesquisa sobre fé/crenças religiosas seja a Índia, país que
convive com um surpreendente pluralismo religioso. O hinduísmo, por exemplo, é
uma religião de muitos deuses e deusas, que em momentos especiais encarnaram o
Ser Supremo e Absoluto para se tornarem acessíveis à humanidade. Além disso, há
no país um grande número de muçulmanos, budistas, católicos, judeus, etc. Segundo
o escritor Yann Martel, foi durante uma
viagem a este país tão instigante em seus contrastes que ele decidiu escrever
seu livro, vencedor do Booker Prize de 2002, “As aventuras de Pi”. Antes de se
tornar um filme que está em cartaz atualmente e agradando a muitos, a história
sofreu uma denúncia de plágio, que de certa forma foi confirmada pelo autor,
que teria lido uma resenha no NY Times sobre o livro do escritor gaúcho Moacir
Scliar, “Max e os felinos”. Esclarecimentos feitos, passados dez anos, quem
está na direção deste roteiro é o taiwanês Ang Lee, que já revelou sua extrema
versatilidade, sensibilidade e ousadia em filmes tão díspares e importantes
como “ O Segredo de Brokeback Mountain” , “O Tigre e o Dragão” e “Razão e
Sensibilidade”. Neste filme o indiano Piscene (Pi) Patel já adulto, professor bem sucedido e residente
no Canadá, é procurado por um escritor que recebeu uma dica de um amigo em
comum para que se inteirasse da “boa” história de sua vida. Mais precisamente
sobre a grande aventura do jovem Pi, cuja família, dona de um zoológico em
Pondicherry, Índia, decide fechar o
empreendimento e se mudar para o Canadá, local em que pretendiam vender os
animais e reiniciar a vida. Durante a viagem, o cargueiro naufraga devido a uma
terrível tempestade, fazendo de Pi o único sobrevivente, que no entanto precisará
dividir o bote salva-vidas com uma zebra, um orangotango, uma hiena e um tigre
de bengala chamado Richard Parker. Mas para que o escritor entenda sua
história, Pi precisa narrá-la desde a sua infância, do significado de seu nome
(uma piscina de Paris que teria encantado seu pai, grande apreciador da
natação, e das lindas moças que ali desfilavam), de seu constrangimento na
escola pelo apelido Pi que lembrava o ato de fazer xixi e era motivo de gozação
permanente, e de sua curiosidade pelo sentido da vida e das relações entre as
pessoas, que o fazia um pesquisador fervoroso das religiões, mesmo contra o gosto
de seu pai ateu. Há muito mais fatos interessantes e ainda que o filme possa
ser resumido à grandeza de sua produção, de seus efeitos especiais, sua tecnologia
3D, e a viagem fantástica de Pi, talvez seu maior valor resida na articulação
que o protagonista faz de sua “aventura” com sua história pessoal, ao revelar suas
digressões, suas dúvidas, suas superações, as (boas) certezas de seu pai, a
doçura de sua mãe ao incentivar sua busca de sentidos para a vida, sua relação
mais fraternal que rival com o irmão mais velho. Sendo o único sobrevivente do
cargueiro japonês, porém, ao aportar no México, sua história não parece
verossímil aos ouvidos dos que investigam as causas do naufrágio. Pi constrói,
assim, uma outra versão em que ao invés de animais, ele teria feito este trajeto
no bote com mais quatro pessoas, que não teriam conseguido sobreviver. E diante
do olhar hesitante do escritor e interlocutor deixa a ele a escolha de qual
história relatar. Qual lhe parecia ser a mais interessante? Aquela em que são
acrescidos sentidos para que a tragédia que assolara sua vida pudesse ser
amenizada ou a realidade nua e crua, sem consolo ou feitos heroicos? O
semblante do escritor se modifica. Seus olhos brilham, quem sabe por serem os
escritores aqueles que escrevem as histórias que embalam nossa imaginação, que funcionam
como fonte e espaço de nossos sonhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário