segunda-feira, 3 de junho de 2024

 


  Divagando sobre amor, fidelidade, cultura e psicanálise

 

Gisela Haddad 2006

Mesmo testemunhando as inúmeras mudanças que rondam as relações amorosas na era atual, não é difícil detectar na cultura indícios de um “credo amoroso”: continuamos a considerar o amor universal, incontrolável e condição inquestionável de felicidade. Em seu livro Sem fraude nem favor (1998) Freire Costa tenta desmistificar o ideal do amor romântico apontando todas as incongruências da manutenção ainda atual de sua aura transcendente propondo que se pense em alternativas e lembrando que “a emoção amorosa não nasceu pronta e acabada em algum lugar da mente, podendo ser aperfeiçoada por outros sentimentos, razões e ações”. Segundo ele, deveríamos inventar um “neo-romantismo” mais comprometido com as demandas do mundo e do sujeito atual.

A argumentação empregada por Freire Costa (1998), pode ser comparada a utilizada por Freud (1927) em seu texto O futuro de uma ilusão, em que este propõe uma desmistificação da religião por ser esta um recurso ilusório a serviço da dificuldade humana em viver na orfandade, sem garantias transcendentes e idealizadas de onisciência e onipresença. Nesta crítica à visão totalitária e empobrecedora de mundo característica das religiões, Freud buscava questionar a necessidade da manutenção de um Deus todo-poderoso em um mundo  “desencantado”, assim como Freire Costa se surpreende com a continuidade do mito de fusão e  perfeição ansiado no amor romântico que coloca os sujeitos entre a culpa ou a impotência  pelo fracasso e a condenação da paixão como um desvario. Ambos defendem novos roteiros sociais para a felicidade, que não precisem conter a promessa de preencher faltas, soldar frestas ou realizar a sonhada e inalcançável completude.

É certo que no final de sua obra podemos ver um Freud mais preocupado com as criações humanas destinadas a encobrir de alguma maneira, a verdade sobre a fragilidade e a efemeridade de sua condição, embora o combate às ilusões fosse uma constante em sua obra, junto às idealizações do passado e do futuro.

O conceito central da obra freudiana, a castração, está diretamente relacionado a possibilidade de aceitar o ônus de sofrimento que é imposto à condição humana, ou melhor à necessidade de se renunciar aos ideais de perfeição, totalidade e infinitude e de se admitir a imperfeição e a incompletude humanas.

Mas, a despeito da insistência de Freud na necessidade de se assumir a castração, em direção a aceitação das vicissitudes da vida, com os prazeres e as dores que os outros podem oferecer aos nossos sentidos, não se consegue eliminar as insistências e as permanências das ilusões humanas.

Entre estas ilusões, certamente incluem-se as religiões, mas também o amor, seja associado à felicidade, a eternidade ou a liberdade, o que explicaria em parte a permanência do mito do amor romântico.

Ao ocupar um lugar sagrado na cultura, com direito a ser desejado sem questionamentos, o amor é visto como uma contingência das biografias individuais, sem uma história própria, sem narrativas datadas. Esquece-se que seus repertórios são construídos e contados em versos, prosas, filmes e novelas.

A psicanálise freudiana é, em sua essência, um discurso sobre o conflito entre tendências e uma tentativa de desconstruir a crença em qualquer referente absoluto. Em sua obra Freud tentou construir uma metapsicologia amorosa, em busca de um fundamento objetivo para seus fenômenos. Para ele a dinâmica amorosa se dá em torno de processos de idealização, na tentativa de restaurar um estado fictício de completude. Apaixonar-se seria ter acesso ao ideal e à completude narcísica e nesse sentido teria um caráter ilusório (1914)

No contexto cultural de sua época, a imagem do amor romântico era indissociável da fusão paixão, idealização sentimental, ternura e desejo erótico. Mas Freud quase chega a afirmar a impossibilidade de um amor “normal” ao postular que a escolha amorosa é devedora de um tempo anterior e a busca incessante que se faz, jamais será realizada satisfatoriamente.

O modelo da paixão amorosa em Freud segue o modelo do narcisismo primário infantil (1914) tramado numa rede intersubjetiva, na qual a supervalorização dos pais gera uma visão supervalorizada de si mesmo. A paixão amorosa seria uma maneira de se manter a crença na possibilidade de perpetuação deste tempo feliz, resgatando a completude narcísica, ao preço de uma experiência efêmera e repetitiva de regressão a um estado infantil de indiferenciação. Por conter essa ilusão de plenitude, seu caráter alienante afastaria o sujeito da realidade e da verdade.

Entretanto as experiências de êxtase proporcionadas pelo apaixonamento romântico, embora ilusórias e construídas sobre fantasias e desejos, parecem ter um sentido de “verdade psíquica”, ainda que temporário.  “Verdade fugaz” que alimenta a crença na universalidade do amor romântico como ideal de felicidade, que mesmo sendo datado, resiste bravamente à mudanças, reivindicando o direito à eternidade e ignorando sua própria contingência no mundo.

A história do amor romântico no Ocidente vem de mãos dadas com a história do individualismo e é no ápice desta história que, em finais do século XIX, surge a psicanálise, todos tributários do pensamento moderno.

É a partir da criação da idéia de individuo como entidade independente, com uma dimensão interior e capacidade reflexiva, que foi possível a construção do conceito de sujeito, tão cara a psicanálise. Segundo Garcia e Coutinho (2004) hoje seria impossível pensar-se a concepção de sujeito sem a idéia do indivíduo e,  desde a modernidade, as novas configurações do individualismo costumam provocar efeitos subjetivos.

A instauração da cultura individualista no Ocidente como uma manifestação da ideologia moderna, em seus aspectos econômicos, políticos e religiosos teve como marco inaugural a Revolução Francesa (Dumont,1985). Esta seria a vertente iluminista do individualismo que privilegia a idéia do homem como centro do universo, uno, livre e responsável por seus próprios atos. Mas o individualismo tem também uma herança romântica, na qual as idéias de privacidade, singularidade e de uma biografia pessoal única para cada individuo foram intensamente cultivadas.

A evolução do individualismo nas sociedades ocidentais culminou com a figura do individuo moderno, como uma entidade econômica e psicológica, e uma interiorização que privilegia a esfera privada.

Pode-se detectar duas revoluções individualistas, uma mais antiga que enfatiza o discurso dos valores centrais de igualdade e liberdade, e outra (século XIX e XX) que privilegia a singularidade; ambas coexistiriam na cultura contemporânea sob a forma de duas tendências em constante tensão.A indicação de que o amor romântico conhece um desenvolvimento sem precedentes no século XIX está em estreita harmonia com esta segunda tonalidade de que se reveste o individualismo a partir de então.

Dos primórdios da psicanálise, quando Freud se deparava com uma cultura que cerceava o individuo, impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), passamos a uma sociedade que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e que estimula a busca do prazer constante.

Vale a pena examinarmos outras dimensões do individualismo que foram se configurando na época atual, privilegiando o ideário de liberação presente nas diversas formas da relação do individuo com o social. Este ideário, segundo Garcia e Coutinho (2004) questiona todo e qualquer constrangimento social, particularmente sobre as questões da sexualidade, e promove o corpo a um status antes inimaginável de construção de identidades pessoais.

Para Lipovetzky (1998) a vertente do individualismo moderno que dispensou as ideologias de solidariedade e consciência de classe elegeu o singular com especial acento aos valores privados de liberdade e autonomia individuais, fugindo de dispositivos religiosos de submissão humana à princípios superiores fora de alcance. Neste sentido, o ethos moral atual seria mais sensível às liberdades democráticas do que o burguês tradicional.

Não parece arriscado dizer que estas mudanças socioculturais vêm provocando impactos nas subjetividades. O século XX assistiu a uma transformação acelerada dos ideais sociais, dos valores morais e dos laços sociais. As novas formas de subjetivação produzidas pelo mundo contemporâneo mostram novos olhares sobre o universo das mulheres e dos homens, com novas configurações amorosas, novos desdobramentos éticos e estéticos.

“Há quase três décadas somos testemunhas de transformações importantes na ordem da divisão social dos papéis sexuais, dos lugares e dos atributos do feminino em particular” diz Lipovetzky (2005).

Soler (2005) também destaca a grande contribuição da ciência para a  mudança da realidade social das mulheres que conquistaram o direito a escolhas  antes impensadas, produzindo desdobramentos importantes no campo profissional, social,  pessoal e amoroso.Com a dissociação entre casamento, sexo e maternidade é grande o número de possibilidades de arranjos  que estão disponíveis para os indivíduos.A liberdade sexual tão desejada e conquistada também aponta mudanças em valores importantes como, por exemplo, a fidelidade,  antes   um valor cultural compartilhado e hoje  uma exigência subjetiva,uma reivindicação ou uma predisposição pessoal pactuada entre os indivíduos.

Soler ainda aponta para o fato dos antigos modelos de identidade de gênero, que ordenavam as relações entre os sexos, terem  sofrido importantes modificações.Não só o ideal da mulher no lar sofreu uma erosão rápida e profunda, como os homens já não consideram indigno participar das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos. A satisfação sexual é hoje uma exigência justificada para todos, um fim em si mesma, independente das finalidades da procriação e dos pactos de amor, além de merecer a atenção e cuidados de terapeutas e sexólogos.

Segundo Costa (1998), é a cultura quem assinala as novas imagens do amor apontando seu lugar entre os ideais aprovados e fazendo com que estes sejam desejáveis. Neste sentido as formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade fazem parte, num conluio nem sempre explícito, dos valores morais de cada época.

Sabemos que o amor romântico já foi responsável pela conversão dos homens e mulheres em pais e mães, favoreceu a formação da família nuclear e os cuidados amorosos com os filhos, dividiu os indivíduos em heterossexuais e homossexuais e, principalmente, ofereceu uma opção de “êxtase” físico e sentimental que se tornou hegemônico na modernidade, em contraposição aos êxtases religiosos ou revolucionários.

Por outro lado, se o amor romântico burguês habitou a cultura da contenção de uma época em que reinavam valores tais como família, pudor, vergonha, repressão sexual, casamentos que visavam a procriação e a dessimetria de liberdade sexual entre homens e mulheres, hoje estes valores perderam em importância, cedendo seu espaço a novos. Mas quais?

Como é amar hoje? O que é certo ou errado no amor? Como se apaixonar sem sofrer? Pode-se viver sem o amor? Sem sexo? O que fazer quando se ama e não se é amado? O que fazer quando se trai ou se é traído? A infidelidade deve ser aceita, repudiada, discutida? Ainda cabe sonhar com a tríade casamento-filhos-família? Estas são algumas das questões que povoam os consultórios de psicanálise, mas também a literatura, o cinema, as novelas e músicas cujos temas privilegiam as vicissitudes do amor, em suas fronteiras com o desejo erótico, fazendo parte do imaginário popular.

Apesar da união permanente entre os casais ter sofrido grandes transformações, o ideal romântico permanece existindo para os dois de forma majoritária. Tanto homens quanto mulheres vivem problemas diretamente associados às dificuldades para a realização do amor romântico, revelando uma contradição, em relação ao desejo de casar ou viver um relacionamento afetivo estável, duradouro e monogâmico. Dentre estes problemas os mais citados teriam sido os ciúmes e a infidelidade, sendo que esta última estaria muitas vezes referida ao rompimento de um pacto de confiança mútua entre os parceiros.Por outro lado, revelaria a permanência de uma aspiração de exclusividade sexual para ambos.

 Hoje convivem de maneira conflituosa os valores “tradicionais” e “modernos” dos modelos de conjugalidade e os homens e mulheres procuram conciliar desejos, comportamentos e valores hierárquicos e igualitários e individuais, num processo de ressignificação dos arranjos conjugais que rompe com a dualidade tradicional versus moderno.

Se os  valores morais são tributários de sua época histórica e se, o amor romântico, esteve presente na história da Modernidade, assumindo as feições tanto políticas e econômicas quanto sócio-culturais de cada época, pergunta-se  o que, na cartografia emocional contemporânea, cabe o nome de transformação, redescrição ou aquisição de novos valores para o amor romântico.O tema da fidelidade representa sem duvida os paradoxos da manutenção do mito do amor romântico na atualidade, por encerrar ao mesmo tempo um anseio a um ideal de exclusividade, mas  produzir grandes sofrimentos diante dos impasses da realização deste desejo.

Como os pares conjugais da atualidade, cuja união tem como base o amor romântico, se relacionam com a promessa de fidelidade sexual no mundo contemporânea?

A fidelidade tem um papel histórico importante, seja no cumprimento de uma qualidade valorizada coletivamente como um domínio de si, seja na pontuação divina que transforma a desonra em pecado ou ainda nos dramas íntimos do sujeito moderno.

A história da fidelidade sexual revista em seus aspectos sociais  políticos e jurídicos de preservação da família,  descendência e  patrimônio,  permeados pela moral sexual de cada época da história ocidental põe em foco a hegemonia do pensamento masculino no Ocidente.Neste sentido, o tabu da virgindade e outros mitos teriam ajudado a encarcerar o feminino como enigmático e perigoso, mantendo uma longa dessimetria entre os gêneros quanto à aceitação social da infidelidade sexual.Por outro lado, Gay (1998) nos mostra em seu trabalho sobre o século burguês, como a enigmática sexualidade feminina despertava reações as mais diversas no sexo masculino.Por este motivo, tentaremos mapear estas diferenças entre os gêneros à luz da fidelidade sexual.

Se hoje os amores e prazeres são contratuais e dependem exclusivamente dos parceiros, os casamentos do início da era moderna seguiam uma série de regras sociais, políticas e jurídicas, o que aponta também para diferentes contornos da questão da fidelidade sexual.

Por outro lado a “sexualidade”, como uma ciência do sexual, surgiu na modernidade pretendendo focalizar a saúde dos indivíduos, criando dispositivos e normas para o prazer sexual, um biopoder e uma bioética. Como lembra Foucault, sendo o sexo acesso à vida do corpo e à vida da espécie, ele passa a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos.

A psicanálise certamente se alimentou destes discursos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente. Ao apontar o recalcamento da sexualidade das histéricas no final do século XIX, ela também salientou o lugar de fantasia deste sexual, produzindo uma teoria singular sobre a sexualidade humana onde o sujeito é, ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela.

Freud, em suas descobertas sobre o amor erótico e terno, suas análises sobre o casamento monogâmico e a constituição da família  nuclear como um ideal de desenvolvimento emocional, seu engajamento contra as imposições de uma moral  sexual civilizada que constrangia a vida sexual de homens e mulheres e sua perspicácia quanto à impossibilidade de se manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas da infidelidade, produto de fantasias infantis que remetem aos primórdios das relações narcísicas e edipianas. Veremos como Freud, já no final de sua obra (1930), mesmo diante dos limites do real da pulsão de morte e da insistência do imaginário narcísico, mantêm a constituição da família como uma saída possível para a realização sexual e psíquica dos sujeitos. Família esta, restrita hoje ao par conjugal identificado como uma   “unidade social” que, mesmo diante da ambição igualitária entre os gêneros propagada  pelo individualismo moderno, mantêm-se às custas do ideal de completude prometido pelo mito do amor romântico, enfrentando assim as agruras de uma convivência que requer permanentemente uma “contabilidade conjugal”.

É neste panorama que a fidelidade fica reduzida a um elemento de “impasse”, sempre a rondar as uniões conjugais e a lembrá-las de sua finitude eminente ou de sua existência efêmera.

Quem sabe por se constituir como impossibilidade real na manutenção do mito da completude amorosa prometida pelo amor romântico, a fidelidade sexual atravessou os séculos modernos sendo tema recorrente de filmes, novelas, músicas e romances. Alimentando de forma inigualável o repertório do imaginário cultural amoroso, não se cansa de contar em verso e prosa as dores e o sofrimento provocados pelas experiências de perdas que rondam as expectativas de fidelidade sexual.

 

 

 

 

 

 

 


 

Sobre La Luna, de Bertolucci

Gisela Haddad

 

Poucos negariam a ousadia deste filme, e como toda ousadia tem seu preço, ao buscar pelos blogs os comentários de pessoas que o assistiram conta-se nos dedos os que conseguem algum distanciamento das cenas de incesto. Se de um lado elas provocam um enorme desconforto e suscitam críticas desfavoráveis, por outro são apontadas como corajosas pela quebra de tabus ou pelas tentativas de desmistificar o tema da sexualidade humana. Reconhecido nas locadoras como o filme que tem cenas de incesto entre uma mãe e seu filho, fato é que, após muitos anos de sua estreia, o filme La Luna continua controverso e atual ao provocar as mesmas celeumas.  Bertolucci costuma ser generoso ao falar sobre seus filmes, sobre as razões da escolha de seus temas, e sobre o papel do cinema em sua vida, praticamente uma continuação de sua poesia, ele mesmo filho de um poeta. Em entrevista, ele conta que um disparador para a realização deste filme foi uma recordação pessoal reproduzida no filme, numa das imagens do prólogo, em que ele, aos dois ou três anos, está sentado numa cesta presa ao guidão da bicicleta a olhar o rosto de sua mãe, cujo fundo é o céu e uma linda lua. Foi a partir desta lembrança “viva” que ele pretendeu ao desenrolar o roteiro, que este pudesse trazer associações entre o rosto da mãe e a lua. Na mitologia, Luna é o nome da deusa romana, equivalente a deusa grega Selene, irmã de Helios, o Sol e de Eros, a Alvorada. Protetora dos feiticeiros e magos, ela dirigia no céu um carro puxado por dois cavalos e exercia uma poderosa influência sobre os encantamentos de amor. 

Na poesia de Bertolucci, a lua, a mãe e a voz serão os representantes do inconsciente, do feminino e do primitivo. A escolha da cantora de ópera para interpretar a mãe incestuosa e a lua, serão “guia” para permear a tragédia do labirinto edípico através da voz. Ainda no prólogo, o bebê está à mercê dos cuidados da mãe, e é bastante expressiva a sua reação de desconforto quando ela coloca mel em sua boca. Nas palavras do diretor, “o mel, como o amor materno, é doce demais, um doce que pode ser excessivo e fazer engasgar a criança”. Ainda no prólogo, a cena dos três, Giusepe (o pai), Caterina (a mãe) e Joe (o bebê) têm tudo para ser edílica, com a paisagem mediterrânea, o sol, a música, mas Bertolucci privilegia o rosto da criança e sua aflição e para nós espectadores, sobra violência ao invés prazer. Pode-se dizer o mesmo quando Caterina ignora a sogra, que estava tocando piano, põe um disco na vitrola e convida Giuseppe para dançar twist. A força desta cena será recuperada por Caterina quando ela puder reconhecer seus ciúmes ao imaginar que Giuseppe amava mais a mãe do que a ela. É esse reconhecimento que abrirá espaço para o reencontro do pai e do filho, e de novas vias de vida para Joe.

Se para Bertolucci seu filme versa sobre os laços que movem, puxam e torturam os personagens, há que se acrescentar que ele privilegia a ambivalência destes laços, dando força maior aos seus enganos. Douglas (o padrasto) protege e afasta Joe. Por seu lado Joe tenta separar o casal ao atrair um ou outro para si e conseguir a exclusividade. Já Caterina, totalmente absorta em seus interesses profissionais, movimenta-se entre os dois homens. Será a partir de sua descoberta do vício do filho, que ela poderá revisar os infernos de sua maternidade, a errância de suas escolhas, e percorrer assim o lento caminho do reconhecimento de sua responsabilidade na relação com seu filho, mas principalmente de suas possibilidades em auxiliá-lo a construir algum futuro possível, ao devolver a ele, parte de sua história.

As cenas incestuosas entre mãe e filho não ficam sem um lugar. Apesar do desconforto de quem as assiste, são parte do “inferno” que ambos viveram. Sabemos que a maternidade, a paternidade e a filiação são determinadas por critérios múltiplos, entre os quais predomina a dimensão simbólica sobre os critério biogenéticos. Se o tabu do incesto está na base da constituição da cultura por sua economia de troca de bens e de mulheres que funda a vida simbólica e social, para a psicanálise a interdição do incesto barra o excesso da pulsão que, de outra forma, tornaria insustentável a manutenção da cultura. Em Freud tal proibição se origina menos pelo horror inspirado pelo incesto, e mais pelo desejo que ele suscita, destacando-se aqui o poder de coerção que a sexualidade humana tem sobre a vida psíquica. O incesto é de fato mobilizador de fantasias e atos e sua força tem uma origem para todos.

Tomemos o fato inequívoco de que em uma gravidez, a voz e a palavra materna são “ouvidas” pelo feto e o que se passa entre os corpos faz da mãe uma estrutura afetiva antes de ser uma estrutura de parentesco. Será sobre esta tentação incestuosa que nasce a lei que a interdita, ou seja, embora a fusão mãe-bebê seja necessária, é tarefa da mãe renunciar a ela, ao admitir a introdução de um outro significativo. A problemática do incesto sob o ponto de vista psicanalítico, é esta relação entre o corpo pulsional e a linguagem, o simbólico e o ato de nomear o que está além do orgânico. A nomeação do ato incestuoso é que vai concretizá-lo como transgressivo e sua incidência depende de inúmeros fatores, tais como o significado que o filho toma em cada caso, a possibilidade de ele ocupar o lugar de filiação na família e as condições psíquicas dos genitores em acolherem um destino ainda a ser criado. Quando isso não pode ocorrer a criança pode sofrer múltiplas impossibilidades.

É, portanto, no processo de humanização que a proibição do incesto atua, estabelecendo lugares hierárquicos nos agrupamentos e nas gerações, permitindo o pertencimento familiar e o consequente processo de narcisização da criança pelos pais, na criação de possibilidades de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos genitores e de se constituir como sujeito.

No filme há cenas de ternura entre os pais, a mãe e o filho. Mas quando sobra mãe e filho há uma mistura de amor-paixão-ódio. As paixões parricidas e incestuosas próprias da infância e da pré-adolescência são em geral esquecidas na idade adulta. Várias cenas trazem este sentimento de nojo de Joe em relação aos modos da mãe, comendo, bebendo ou se divertindo. A vontade de ser autônomo livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado. No filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada. Se Caterina não performa o modelo ideal de mãe, ou mesmo se nem quisesse muito sê-lo, ela tenta se virar com isso.

Debate sobre o filme La Luna de Bertolucci realizado em junho de 2017 no CEP a convite de Karin de Paula

 

 

 


quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A vida Sexual dos casais na atualidade

 

A vida sexual dos casais na atualidade

Boa noite a todos, estou bastante feliz e grata por ter sido convidada pela minha colega e querida amiga Lisete Weismann para esse debate tão interessante. Também quero agradecer ao CEP por essa oportunidade. Gostaria de me apresentar, sou psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, instituição na qual faço parte da equipe editorial da Revista Percurso, do Blog do Departamento, do Grupo Generidades e do Grupo Intervenção e pesquisa clínica da Gestação e da primeira infância. Imagino que minha amiga Lisete tenha me convidado para ser uma das debatedoras, porque em 2006 defendi minha tese de mestrado com o tema Reflexões sobre a manutenção do ideal de amor romântico na atualidade: um estudo sobre a fidelidade conjugal, tema que em 2009 foi transformado no livro Amor e fidelidade. Na ocasião em que o tema foi pensado para minha pesquisa, um livro em especial, lançado em 1998 pelo psicanalista Jurandir Freire Costa e intitulado Nem fraude nem favor: reflexões sobre o amor romântico, foi decisivo para que eu me lançasse nesse universo cultural ao mesmo tempo banal, como o amor, o sexo, o casamento, mas tão fundamental e complexo, como fui percebendo à medida em que minhas leituras mostravam o caráter histórico das crenças e costumes que os sustentam. Havia lido uma entrevista em que Jurandir, por ocasião do lançamento de seu livro, relatava que sua pesquisa sobre a história do amor romântico teria sido pensada a partir do resultado de uma pesquisa feita sob sua supervisão no Instituto Social da UERJ, sobre a opinião de adolescentes a respeito de questões que rondavam suas vidas sexuais. Para sua surpresa, embora a sexualidade apresentasse mudanças principalmente de ordem morais, ela parecia não ser um impasse para a satisfação amorosa daqueles jovens. Já o amor estava no topo das expectativas de ambos os sexos produzindo um discurso de descrença e desilusão. Minha tese buscava as razões pelas quais ainda perseguíamos o amor romântico e apontava as consequências desta insistência. Éramos reféns desta aposta no amor ao buscarmos sermos únicos, amados e especiais para alguém. Se houvera um tempo em que a criação de deuses e mitos ofereceu alguma proteção à nossa fragilidade diante de nossa finitude ou respondeu aos enigmas de nossa existência, agora era o amor que nos proporcionava um significado às nossas vidas, e nos oferecia um lugar em que solicitávamos do outro que nos respondesse sobre nossa importância. Passados quase 20 anos, fica mais evidente constatar o caráter histórico das balizas que sustentam nossas vidas, principalmente de nossas relações psicossociossexoafetivas.  Nossa subjetividade não é universal nem prévia, o que nos convida como psicanalistas, a ter que analisar os mecanismos de sua construção dentro de cada época, se quisermos saber sobre a constituição dos estilos de existência, das transformações dos nossos modos de viver juntos, das estruturas sociais que nos sustentam e das relações de poder que nos dominam. Assim, ao ser convidada a falar sobre a sexualidade dos casais, pensei que poderíamos questionar de que sexualidade e de que casais falamos. Acho que estamos vivendo um momento cultural diverso, talvez uma mudança civilizatória importante. Fica mais fácil hoje para nós, reavaliarmos o amor romântico como uma ficção necessária, historicamente construída, que se por um lado embelezava e dignificava a experiência amorosa, justificando-a por sua dimensão passional, por outro alimentava expectativas e idealizações sobre os vínculos amorosos, em um projeto tão elevado, que nos tornava presa fácil das decepções. Sua proposta de que um laço amoroso intenso, com um único parceiro e foco central e exclusivo de todo o desejo, pudesse sustentar uma ligação conjugal eterna com funções afetivas tão diversas como: a satisfação erótica; o sentimento de amar e ser amado ternamente; estabilidade, parceria, cumplicidade e fidelidade; constituição de um ambiente saudável para o cuidado e a educação dos filhos etc., não tardou a se mostrar um terreno propício para as frustações e decepções. Além disso, havia o fato inequívoco de que nossa sexualidade questiona e ultrapassa o campo do amor, da ternura e da satisfação, seja esta a dois ou não.

De algumas décadas para cá, os reposicionamentos sociais e a redefinições dos papéis sexuais, repercutiram de forma decisiva nas relações humanas, que hoje não se restringem mais ao binômio homem/mulher, ao contrário, se ampliam para gêneros diversos. Também assistimos uma mudança importante nas relações amorosas entre os jovens, que começaram a ver e a viver sua sexualidade de forma mais aberta. A liberdade sexual que hoje usufruímos, incentiva a busca e não condena o prazer físico. Estamos mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos. Essa nova ética da sexualidade muda a paisagem social. Amor e sexo estão separados, ainda que possam compor várias melodias. O enigmático se desloca de nossa sexualidade para nossos desejos. O ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes, permeia as relações de todas as idades, e abre um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que predomina a sensorialidade. Alguns casais admitem um relacionamento aberto, arriscando-se a gerenciar suas consequências para suas vidas amorosas e sexuais. É certo que ao radicalizar nossa autonomia e nossa liberdade para escolher e viver nossa vida amorosa, desconstruindo antigos códigos e referências, aumentamos nossas incertezas e desconfortos. A pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos conflitos a serem administrados para que possamos validar a diversidade de nossas opções. No terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a ambiguidade e a dúvida. São custos a serem incluídos. O sucesso que ansiamos de nossa vida amorosa depende necessariamente de um investimento infinito das partes envolvidas, mas principalmente da possibilidade de cada uma destas partes atribuir ao outro uma individualidade (ou alteridade) a ser respeitada. O que mantém este anseio é o fato de se considerar a vida amorosa ou conjugal como um dos poucos espaços que empresta a cada um o sentimento de pertencimento, de não se estar só, de poder dar um sentido para a vida e para a morte. Através deste contrato, sempre em aberto para os infinitos ajustes, é possível temperar a existência com pitadas de fantasias e transformar a banalidade do cotidiano em um teatro de magias. Estamos no plano das trocas sexuais. A vida a dois também pode incentivar a invenção de novas maneiras de ser, mais próximas do que imaginamos do que queremos ou do que o outro quer que sejamos, ou ainda nos fazer apostar que podemos ser melhores, mais amáveis, mais leves. Nossas dores e temores ficam na pendência da confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades. (Costumo brincar que trocamos a culpa pela responsabilidade) São tempos de individualidades e cabe a cada um tomar conta de seu destino.

Ao relativizar a diferença biológica dos sexos e focalizar as identidades sexuais ou gêneros, multiplicamos as diferenças sociais e identitárias. Os movimentos sociais que ganharam espaço social e aumentaram sua visibilidade através da internet não só questionam o modelo binário (feminino/masculino, hetero/homossexualidade, sexo/ gênero) e seu discurso de poder, como dão visibilidade às transexualidades e a violência e segregação a que estão sempre submetidas. Quer queiramos ou não, vivemos em uma época pós-identitária e essas novas identidades aguardam seu reconhecimento.

A nós psicanalistas, é pedido que no lugar da diferença dos sexos, concentremo-nos no sexual como potência intensiva, perverso-polimorfa, fora de qualquer estruturação prévia pelo dispositivo diferença sexual e aberto a todo tipo de identidade erótica, do qual o sexuado procede, e não o contrário.

A instigante proposta deste debate em questionar a vida sexual dos casais me levou a revisitar minha clínica. Em geral, a sexualidade dos casais comparece na clínica seguindo alguns padrões, seja na frequência em que o sexo é realizado, na disparidade dos desejos, da importância do sexo na vida de cada um, na ausência total de vida sexual, ou em alguma mudança significativa na disponibilidade de um dos cônjuges para a vida sexual do casal. Ou seja, como a clínica psicanalítica é a escuta privilegiada dos tropeços, lapsos, associações, silenciamentos, ou dos sofrimentos que se repetem na tristeza, culpa, violência, medo, vergonha, a vida sexual dos casais comparece ou não, na pendência destas frestas. No entanto, de maneira geral, embora a sexualidade na atualidade mantenha sua relação com o erotismo e as fantasias sempre singulares, ela ganhou publicidade há décadas. Na ponta dos dedos de qualquer um está o acesso a todos os seus produtos, história e cenários. De certa forma, assim como o resultado da pesquisa da UERJ sobre a vida sexual dos jovens, não pareceu ser algo que lhes impedissem de vive-la, ao contrário da possibilidade de manter uma relação amorosa, penso que o grande desafio da cultura atual é a convivência e todas as decorrências e custos que cada um tem que assumir para possibilitá-la.

Enquanto eu escrevia essas linhas, tentando me lembrar de cenas de atendimentos de casais, não pude deixar de pensar neste grande capítulo de nossa história recente, a pandemia. O confinamento de todos nós produziu um enorme campo de aflições humanas. Muitos casais precisaram rever seus contratos de convivência, nas áreas mais diversas, e com certeza também em suas vidas sexuais.

Muito obrigada pela atenção

 

Texto apresentado no Debate realizado no Centro de Estudos de Psicanálise (CEP) em julho de 2022

quinta-feira, 2 de junho de 2022

A família entre a cultura e a subjetividade atual: o papel do amor [1]

 


O trabalho de Foucault é hoje uma referência para pensarmos a contextualização histórica e social da experiência humana e das verdades e crenças que dão sentido as relações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo. Não sendo a subjetividade nem universal nem prévia, torna-se necessário analisar os mecanismos de sua construção dentro de determinada época para saber sobre a constituição dos estilos de existência, das estruturas sociais que sustentam os sujeitos e das relações de poder que os dominam. Para Foucault (1998)[2], é sobre estas formas de poder que se produzem campos de resistência, que na modernidade concentram-se na esfera subjetiva. A psicanálise freudiana protagonizou uma leitura inédita e subversiva das experiências subjetivas de seu tempo ao dar sentido à sintomas psíquicos perturbadores, revelando um cenário de fantasias humanas nem sempre sensatas ou coerentes e desvendando um sujeito dividido entre seus desejos e as exigências e proibições de sua cultura.

Nas últimas décadas, a cultura ocidental foi palco de intensas mudanças e invadiu quase todos os setores da vida humana. Seus ícones passaram a ser temas de pesquisas de diferentes áreas de conhecimento, que não só reconhecem sua importância e sua permanente transformação, como buscam refletir sobre seus novos paradigmas. Tema privilegiado pela sociedade ocidental, a família, ícone cultural por excelência, tem sido alvo de estudos interdisciplinares que buscam constituir um saber a respeito de seu sentido e função na era contemporânea. Lugar especial no qual o bebê humano nasce, é cuidado, satisfaz suas primeiras necessidades, efetua seus primeiros intercâmbios afetivos, e é objeto de investimento amoroso, a família reúne um sistema de relações simbólicas e emocionais que lhe asseguram o lugar de importante núcleo de produção de subjetividade. No último século, este núcleo familiar viu-se atropelado por mudanças culturais importantes e por novas possibilidades que a ciência produziu.

Os avanços da biotecnociências foram responsáveis por uma reviravolta no processo da reprodução humana, provocando uma revolução no próprio conceito que designava até pouco tempo a união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os filhos. Mudanças nos papéis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, na gestão da autoridade, na educação e transmissão dos valores e normas para as novas gerações, produzem discursos às vezes alarmantes às vezes nostálgicos diante de um futuro que se apresenta incerto. Este texto pretende refletir sobre estas mudanças através da articulação entre a cultura e a produção de subjetividade na atualidade e analisar as regras e normas que hoje orientam e regulamentam a vida familiar ocidental e sua absorção de tais mudanças. Para isso partiremos de uma breve revisão da história da família moderna, ressaltando o valor do amor na constituição de um novo modelo familiar e de uma particular subjetividade que passa a existir a partir da Modernidade.

Após as revoluções burguesas do século XVIII o espírito moderno apostou que a razão soberana igual para todos pudesse assumir o exercício de organizar as condutas e os consensos necessários ao convívio humano. Mas a tarefa de nos livrarmos das hierarquias pré-estabelecidas e exaltar o indivíduo como membro de uma humanidade comum se mostrou lenta e árdua, além de produzir inúmeros restos. O modelo familiar que conhecemos surge em meio à euforia do projeto civilizatório iluminista e teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal projeto englobava uma proposta filosófica e política para a sociedade burguesa que pretendia fazer do amor apaixonado a base da construção da família, o que significava integrar a sexualidade ao amor e ao casamento. Bem recebida na época pelos literatos em geral, tal composição não só se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos como previa um arranjo conjugal em que a sexualidade ganhava legitimidade. Mas a pesquisa realizada por Gay (2000 p. 47) sobre o século burguês denuncia como a imaginação da época vai ficar capturada pelo componente físico da vida erótica e das estratégias de conquista sexual, com suas promessas de êxtase. Para a sociedade burguesa de então, era necessário que a bandeira do amor servisse de norte para os excessos do sexo e não faltava literatura cuja finalidade era a de mostrar os destinos trágicos do apaixonamento quando este não se enquadrava na construção da família. O amor poderia incluir os suspiros do sexo, mas deveria seguir um percurso de sensatez e atender os compromissos de criação dos filhos, reprodução da família e formação do cidadão. Era este o cenário em que a dupla moral burguesa denunciada por Freud (1908 p.180), expunha as limitações impostas pela cultura à satisfação sexual principalmente das mulheres, chamadas a privilegiar seu papel de mãe. A literatura romântica da época era pródiga em incentivar o amor como remédio aos excessos do sexo, prescrevendo destinos trágicos às paixões que se afastavam dos moldes previstos pela família burguesa. Grande parte dos romances narravam histórias de amor em que os sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências amorosas cujas paixões e desesperos passam a colorir as fantasias humanas. As narrativas românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar uma interioridade psicológica com identidades fundadas em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência amorosa inédita. Nascia um novo conhecimento, uma ciência do homem, de suas particularidades e singularidades, expressa por uma nova linguagem, auto-referente, com sujeitos capazes de falar de si.

O amor romântico se consolida em um ideal reverenciado pela sociedade, suporte deste modelo de família e parte de um horizonte futuro da vida de cada um, uma aspiração poderosa que acenava com a possibilidade de uma felicidade humana terrena em contraposição aos antigos ideais religiosos. Também inaugura uma convivência familiar mais centrada em seu núcleo pai-mãe-filhos, transformando-se em uma fortaleza afetiva restrita, o que funda a vida privada e íntima, característica da era burguesa.

Como bem aponta Roudinesco (2002 p.106), os casamentos realizados por amor começam a apresentar, a longo prazo, um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar gira em torno deste ninho e  à mulher resta o papel de mãe que ganha as atenções e a reverência da sociedade. O amor materno passa a ocupar um espaço jamais conquistado anteriormente na história da humanidade e seu corpo é alçado ao lugar de um paraíso originário. O ocidente passa a cultuar a imagem da Virgem Maria e seu filho como símbolos da maternidade. Tal reverência à maternidade ajuda a incrementar a figura mitológica da sagrada família moderna e de mãe para filha, o modelo materno adquire uma áurea própria: ao se casar e ter filhos a mulher se despoja de sua humanidade, recebe o cetro e a coroa e desfruta de seus poderes maternos. Aos poucos a mulher-mãe se torna condição de sobrevivência, indispensável ao desenvolvimento e à educação dos futuros homens. Mas se a influência materna passa a ser decisiva para a criança, os desvios e falhas infantis passam a ser fracassos de sua função de mãe.

Estamos diante do momento histórico (Ariès, 1978) em que a infância moderna se instala em um compósito entre a idéia de um tempo feliz protegido pelo amor dos pais, mas principalmente pelos cuidados de uma mãe amorosa, e a preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. É assim que no plano social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à criança, promovendo o desenvolvimento de uma infinidade de setores que de forma gradual, passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do futuro adulto.

Seguindo Foucault (1988), a organização patriarcal da sociedade, herança do poder soberano, que mantinha a hierarquia entre os gêneros, passa a conviver com uma nova maneira de poder, um poder disciplinar, mais coerente com a ideologia de liberdade, igualdade e autonomia do individualismo social em andamento. Tal poder se dispersa pelos múltiplos setores da cultura (mídia, publicidade, escola, empresa, etc.) e subverte o permitido e o proibido, estimula o sexo e os prazeres e funda novas regras e normas de controle sobre a vida dos indivíduos. É este biopoder que vai lentamente invadir a vida privada familiar, oferecendo alternativas de cuidados mais adequados e saudáveis para seus membros. As normas e valores patriarcais perdem sua potência na medida em que o indivíduo passa a ser o objeto de novas estratégias políticas que visam proteger e melhorar as condições da vida de cada um. Novas normas e parâmetros são fixados, novas verdades e estilos de viver aos quais os indivíduos precisam se ajustar para serem reconhecidos, aceitos e desejados.

Na intimidade da família nuclear, o amor se mantém como item importante na constituição e na regulação das relações entre os homens e as mulheres, mas também se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança e inaugura um prolongamento do ideal de amor e felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização da felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais à seus filhos sustenta-se nesta possibilidade de assisti-los transformarem-se na imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna.

Além da infância, o casamento entre o amor parental narcísico e o individualismo moderno produz outro fenômeno social importante, a adolescência, que surge no pós-guerra como depositária idealizada dos atributos de coragem, alegria e esperança e inaugura um tempo em que a felicidade, o prazer e a boa vida serão admitidos e depois incentivados, entre a infância e a idade adulta. (Calligaris, 2003)

Nascida no caldo cultural moderno, a psicanálise passa a desvendar este particular contexto familiar e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos das relações entre mãe, pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar ele possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo, que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente para dar lugar  às infinitas condições a que  ela terá que se submeter mas  que tentará evitar. É neste jogo amoroso singular que ela construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor incondicional imaginado permanecerá na aspiração de um reencontro amoroso futuro. O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um ideal para o eu (Haddad, 2006). Sabemos o quanto ao longo do último século, a sociedade ocidental tornar-se-á militante do amor, cujo argumento revolverá normas, valores e leis.

À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções parentais tornam-se maiores e mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em que sua subjetividade se constitua e cumprir a função simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.

Embora esta célula familiar moderna assuma um papel primário na transmissão da cultura e das gerações, ela é ao mesmo tempo fonte de normalidade e das piores patologias, o que faz com que as funções parentais se tornem cada vez mais alvo de cuidados públicos. Do ponto de vista social e ao longo do tempo, tais funções migram gradualmente do espaço privado ao público. Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família se torna um centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas características e especificidades para criar todos os tipos de serviços, cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que auxiliem o desenvolvimento de seus membros.

Esta passagem da função da parentalidade ao espaço público acontece em concomitância ao desenvolvimento das ciências e outros saberes que passam a assumir parte das funções de cuidados dos infantes e de leis que garantem à criança esta tutela ou cobram dos pais seus deveres e obrigações. Ao ser invadida pelo olhar público, a estrutura familiar burguesa revela seu avesso e sua fragilidade. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam corretivos, a psicanálise segue revelando seus descompassos. Por ser uma sociedade centrada na autoridade patriarcal, as leis de recato sexual tinham o objetivo de regulamentar principalmente a vida erótica das mulheres já que qualquer exposição de sua sensualidade era motivo de desconforto. Além de serem mães por vocação natural, seus desejos sexuais deveriam ser limitados pelas vicissitudes desta função. Ao escutar as histéricas, Freud desvenda uma subjetividade que não confirma tal natureza feminina.

O ideal de amor e sexo não cessa de alimentar o imaginário cultural e se mantém ansiado por homens e mulheres. Tal fato contribui para o surgimento de novas perspectivas para se questionar as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar o tema da sexualidade dos bastidores da vida humana. Entre outras coisas, a falsa moral burguesa escondia o medo e a preocupação cultural com a incapacidade de os homens gerenciarem o controle sobre seus impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente, começa a haver uma subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair por terra o instinto maternal e a raça feminina. O tabu da virgindade feminina (Freud, 1917) revela o temor de ambos os sexos em relação à passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. A preocupação social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina para a procriação e para o casamento, abrigava uma tentativa de evitar um excesso sexual perturbador e temido.  Acresce-se a isso que a complexidade da relação dos homens com a figura da mãe-mulher,  no melhor dos casos, produzia uma separação entre a  mãe virgem e pura de um lado e a mulher sensual e sexuada de outro ( Freud,1912 p. 185).

No plano do conhecimento humano, o século XIX vivia um embate entre o legado das tradições e as rupturas a estas que não cessavam de se suceder. Reinava o pensamento crítico, as idéias de progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e da ignorância pela difusão da ciência e da cultura em geral. Tal efervescência gerava a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos, políticos e religiosos que pretendiam ora analisar ora criticar a convivência de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondessem aos alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucediam às antigas.

Por seu lado, a psicanálise ampliava seus saberes sobre a construção de uma interioridade psíquica cujo personagem principal era a complexa e enigmática sexualidade  humana, com destaque para seu papel no interior da família, na constituição psíquica da criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O amor dos pais, tão reverenciado, precisava existir na justa medida entre os cuidados e a erotização do corpo infantil responsável pelo anseio de viver e ser amado, e  certas rupturas de um estado fusional e primitivo com a mãe, que o auxiliassem a entrar no mundo simbólico e partilhado da cultura, carregando o legado das aspirações parentais e das crenças, ideais e proibições vigentes no discurso social. Nasce o sujeito dividido entre o que ele quer, o que ele teme e o que a cultura lhe permite e oferece. O conflito entre a necessidade de amparo e amor e o anseio de separação e independência ocupa o centro da constituição desta subjetividade moderna, uma subjetividade amorosa.

No pensamento moderno deveria caber a cada indivíduo construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não dependeria mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em novos sentidos para a existência humana que acenem com uma maior satisfação, prazer e conforto.  A conquista desta individualidade autônoma dentro do círculo doméstico começa a se dar à medida que o poder familiar vai se restringindo e os interesses pessoais aumentando em consonância com uma exigência de simetria entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres vão ganhando espaço público e com o advento dos métodos anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre, ao aborto e ao divórcio. Homens ou mulheres, cada um se torna o único ou o principal regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las. Sem as amarras das regras de aliança, homens, mulheres, homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados somente em escolhas amorosas e mantidos por acordos e negociações. Tal liberdade incide tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das relações quando estas se mostram impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados.  

Muda a realidade social, despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas. A formação dos pares conjugais torna-se independente do sexo ou da orientação sexual de cada um. Resultado de um movimento de desvencilhamento da tradição e das regras coercitivas sociais, ao manterem apenas o amor como eixo central de suas escolhas, estas novas parcerias inauguram uma nova ética e estética do convívio amoroso e embarcam em uma aventura incerta. Com relações amorosas mais efêmeras os indivíduos passam a formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que altera a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos.

Os métodos anticoncepcionais e a biogenética rompem a antiga junção casamento-sexo-procriação. A concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só têm o reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem uma função parental.

A partir dos novos casamentos que cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os núcleos familiares precisam receber os filhos de um ou ambos os integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma criança pode pertencer simultaneamente a mais de um grupo familiar e sua circulação entre eles pode ser constante e organizada ou irregular e informal. Alguns núcleos formam redes em que convivem ex-cônjuges, antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.

A filiação passa a não ser mais definida pelos laços sanguíneos, legais ou residenciais e sim por uma filiação social ou socioafetiva, fundando um grupo doméstico cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro ou de ambos. Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de parentalidade depende apenas de um comprometimento. O lugar do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais legítimos nem por um homem e por uma mulher assim como a função paterna ou função materna não implicam a presença de um homem e de uma mulher.

As relações familiares se horizontalizam e provocam uma maior proximidade entre as gerações nos modos de existir, desconstruindo as antigas atribuições de poder e autoridade. Ao se tornar preferencialmente uma tarefa amorosa, o exercício da função parental impõe uma nova forma de convivência entre pais e filhos. O bem-estar dos filhos se torna um ideal importante para seus pais. Mais atenciosos, disponíveis e compreensíveis, o imperativo de amá-las que decorre da necessidade narcísica de vê-las felizes, provoca não só angústia e culpa se o sentimento de seu amor for insuficiente, como os enche de incertezas em relação ao seu papel de transmissor de valores e normas, quando este exercício significa frustrá-los. Qualquer obstáculo real ou imaginário que se oponha ao ideal de felicidade imaginado para os rebentos causa desconforto quanto às direções das tarefas educativas ou a assunção da dessimetria da função parental. Por outro lado, o alto valor narcísico atribuído aos filhos cobra seu preço nas expectativas de que estes sejam perfeitos e sem falhas. Muitas vezes por ocupar este lugar de espelho narcísico e de produção de satisfação para os pais, os filhos ficam sem um lugar de verdade, aquele que cada uma precisa buscar para si no mundo adulto, das leis e normas da sociedade em que vive.

O individualismo social promove indivíduos autônomos necessariamente narcísicos, diz Calligaris (1996). Sua consistência subjetiva, mais livre das obrigações simbólicas e sem o peso da herança dos valores e tradições da família e da cultura, é fruto de contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros. O momento narcisista de sua constituição subjetiva, definido como a condição em que toma a si mesmo como objeto de amor fica vinculado a uma superestima parental. É ela que o faz especial, inteligente e desprovido de defeitos. Este amor do narcisismo parental, produto de suas aspirações não realizadas (ideal do eu) será o responsável pela idealização que cada um fará de si mesmo- seu eu ideal. Instala-se um circuito amoroso em que o ideal de eu, enquanto instância narcisicamente investida e voltada para os futuros interesses no mundo e na cultura, contém em sua origem o desejo de ser dos pais. É assim que o ideal de eu torna-se o meio pelo qual os indivíduos se relacionam mutuamente em busca de aceitação, reconhecimento e proteção. A tarefa amorosa da subjetividade atual se confunde com o esforço de cada um em coincidir com a imagem que possa satisfazer primeiramente aos pais e depois aos outros. Esta maneira de existir, ansiando ser amado e admirado pelos outros, cria demandas para que a cultura favoreça dispositivos que auxiliem a enfrentar a precariedade e a centralidade da presença deste amor. Diante das dores de amor, será necessário buscar saídas alternativas ao submetimento, à alienação ou à adição.

Na cultura atual o amor se tornou o eixo central da vida e das escolhas dos indivíduos e o ideal de amor romântico ganhou novas roupagens. Se no tempo de Freud a cultura cerceava o indivíduo impedindo a satisfação de suas pulsões sexuais e agressivas (1908), a sociedade atual cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e estimula a busca do prazer. As formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade, fazem parte dos valores morais que na modernidade mantêm uma parceria exitosa com a literatura, o cinema e a música, os quais refletem e produzem repertórios amorosos (conjugais ou familiares) e ajudam a compor o imaginário popular. Se a literatura romântica da era burguesa exaltava o amor a fim de evitar os excessos de uma sexualidade enigmática e temida, a incorporação do saber sobre o sexual, inclusive os difundidos pela psicanálise, permitiu à cultura contemporânea separar amor e sexo e despojar o amor de sua idealização anterior, ainda que apostando no seu valor de felicidade. O conflito entre pulsões sexuais e repressão cultural que produzia sujeitos inibidos e recalcados dá lugar a sujeitos que buscam o prazer sem culpa, mas oscilam entre potência e impotência diante dos múltiplos mandatos culturais a que se deparam e que anseiam cumprir para serem reconhecidos.

A fabricação do sujeito moderno está intimamente ligada à sua singularização, base e convicção do individualismo como ideologia. As muitas dimensões do individualismo que se configuraram na época atual questionaram todo e qualquer constrangimento social, com destaque especial para as questões sobre a sexualidade e a autoridade patriarcal. Na contemporaneidade a formação de pares conjugais e o exercício da tarefa parental elegem o amor como principal e às vezes único critério. É o amor dos pais que produz uma confirmação narcísica, promove a erotização do corpo e inventa a criança perfeita, a qual por identificação constrói seu eu ideal. É este eu que ela vai amar que dará uma representação de quem ela é e de quem é o outro. A organização dos arranjos familiares e a relação entre seus membros incorporou grande parte das descobertas feitas pela psicanálise neste século. Se como diz Foucault (1988), é a subjetividade que se encarrega de interrogar os limites, os ideais e os restos que organizam as relações entre os indivíduos, talvez coubesse à psicanálise, que analisou regiamente a subjetividade moderna do século anterior, se desvencilhar de sua nostalgia e se autorizar a encarar as mudanças, não como escombros irremediáveis de um  modelo familiar idealizado, mas como novas possibilidades do viver humano.

 

Referências  Bibliográficas

 

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio Janeiro: Ed.Guanabara, 1978.

BEZERRA JUNIOR, B. C.  A retomada do futuro: tempo e utopia na subjetividade contemporânea. In: Solange Jobim. (Org.). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro, 2000, p. 81-95.

_________________ O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica. In: Plastino, Carlos Alberto. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro, 2002.

BIBLIOTECA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. Laço conjugal. In Cadernos (publicação interna). Porto Alegre, março de 1991.

CALLIGARIS, C. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996

_______________ Adolescência, São Paulo: Publifolha, 2003

______________ Terra de Ninguém: 101 crônicas. São Paulo: Publifolha,2004

______________ Quinta Coluna: 101 crônicas. São Paulo: Publifolha, 2008

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de janeiro: Graal,1988

FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira Rio de Janeiro: Imago, 1996.

__________. Moral Sexual “Civilizada” e Doença nervosa Moderna (1908).

__________. Sobre a tendência Universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições a psicologia do amor) (1912).

__________. O tabu da virgindade (Contribuições a Psicologia do Amor) (1917).

GAY, P. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: A educação dos sentidos, São Paulo: Cia das Letras, 1999.

__________. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: A paixão terna São Paulo: Cia das Letras, 2000.

HADDAD, G. Reflexões sobre a manutenção do ideal de amor romântico na atualidade: um estudo sobre a fidelidade conjugal. Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós‑Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, 2006.

JULIAN, P. A feminilidade velada. Rio de Jan.: Cia de Freud ,1997

KAMERS, M. As novas configurações da família e o estatuto simbólico das funções parentais Estilos clin., dez. 2006, vol.11, no.21, p.108-125.

KEHL, M. R. Em defesa da família tentacular, In: Direito de Família e Psicanálise: Rumo a uma Nova Epistemologia Cunha Pereira e Groeninga (Org.),   Rio de Janeiro: Imago, 2003

_____ Lugares do masculino e do feminino na família. In M.C. Comparato & D.S.F. Monteiro (Orgs.), A criança na contemporaneidade e a psicanálise. (Vol. 1, pp. 29-38). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

ROUDINESCO, E.   A família em desordem, Rio de Janeiro :Jorge Zahar, 2002.

RUFO, M. Me larga! Separar-se para crescer, São Paulo WMF Martins Fontes, 2007

 

 

 


 



[1] Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional sobre o Bebê  Nascimento-

Antes e Depois - Cuidados em Rede, realizado no Rio de Janeiro em maio de 2008

 

[2] Além dos textos  originais de Foucault, História da Sexualidade I, recomenda-se o texto de Bezerra Júnior, A retomada do futuro: tempo e utopia na subjetividade contemporânea (2000)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Cenas de um próximo filme (ou Os sons da dor)


Cenas de um próximo filme (ou Os sons da dor)

Gisela Haddad

Mel não conseguia suportar aquela sensação de vazio. Estaria condenada ao fracasso? Há dois anos sua produção artística zerara. Incomodava lhe o fato de suas lembranças surgirem fragmentadas e de imediato culpava sua fraca memória, embora este argumento não se sustentasse. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, evitava trazer à tona as passagens tristes que lhe arrancaram a alma. Ainda assim, não se decidia a levar adiante esta inquietante constatação. Parecia-lhe doída demais.
Acabara de ler o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, contava o quão se debatia com os entrecortes de sua memória, dificuldade que lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, fossem cartas, bilhetes ou cadernos, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças, infelizmente uma sensação efêmera. Seguia aflito como se vivesse em mundos paralelos, ora sendo um, ora outro, o que lhe causava uma estranheza exasperadora. Seu primeiro e até então único livro, no entanto, fizera muito sucesso, mas com ele as aflitivas entrevistas, em que era invariavelmente questionado sobre os caminhos de sua inspiração. O mal estar era tal que se viu obrigado a vasculhar o motor que movia sua necessidade de escrever. Sabia ser-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade, escrever, que agora (oh céus) se tornara ferramenta de trabalho, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. A escrita era este outro ele mesmo que como um interlocutor silencioso, lhe possibilitava “falar” qualquer coisa sem censura e assim, de tempos em tempos, quando se permitia (e conseguia) voltar a ler seus textos, por vezes tinha a oportunidade de traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. E se esta leitura podia ser motivo de júbilo, em geral causava-lhe dores n’alma, às vezes ressoando pelo corpo. E se fossem elas, as dores, as responsáveis pelos seus inúmeros momentos de paralização que lhe transportavam para o vazio?
Mel ficara impactada com este depoimento. Parecia-lhe familiar, pensava em suas dores e o ar parecia lhe faltar. Demorara a se considerar uma artista com algum valor. Temia que sua arte vagasse em um espaço sem sentidos definidos. Criava seus roteiros aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-los em seguida como a poderem ser guardados em algum arquivo imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se esta simples tarefa outrora lhe trouxera conforto, no momento só havia espaço para as dúvidas. Precisava, tal como aquele escritor, achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse este fio que a costurasse à sua história. Estes pensamentos a perturbavam já que o contrário, ou seja, construir a história de sua arte parecia-lhe o caminho para entender a sua própria. À medida que seu pensamento seguia livre, sentia sua respiração ficar mais ofegante. E se sua arte sempre fora uma espécie de imposição dos vãos de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na linha do tempo? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma?
Foi socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores/críticos que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolheriam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas (pré) visões. Sim, respirou aliviada, sua arte era parte importante de sua história, mas a transcendia.
Mel pressentia, no entanto, que mordera a isca e não havia mais volta. Precisava tornar compreensível a si mesma (e quiçá aos admiradores de sua arte) seus modos de sofrer, suas dores e amores. Quantas e tantas vezes ouvira elogios de seus amigos a certos livros que falavam ao ponto mais íntimo de nós, auxiliando-nos na construção de nosso imaginário ao inserir palavras, histórias ou situações que não se poderia formular sozinho. Livros que deixam suas marcas. Não lhe era muito claro o papel da literatura para a sua vida, mas era certo que algumas leituras teriam aberto horizontes, despertando-a para universos desconhecidos e inimagináveis. Se alguns podiam reconhecer seus próprios desejos desde muito cedo, nomeando-os e perseguindo-os, ela não pertencia a este grupo. Porém esses livros haviam lhe mostrado que o “mundo” (aquele composto pelo acervo cultural humano) deveria ser muito maior do que o que lhe era dado conhecer. Podia reconhecer em si esse longínquo desejo de conhecer o máximo que pudesse sobre ele. Como isso a acalmava! Dava-lhe uma sensação de destino. De vida vivida.
Mas durava pouco. Bastava uma noite de insônia e o vazio a invadia novamente, como se o dia seguinte não existisse mais. O cérebro pensante e o coração pulsante ficavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angústia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças.
Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar, e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 12 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narrassem este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores das perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo.
Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois destes anos juntos, a vida a dois ficara quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre grudados ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou lhes causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se ficariam parecidos com aquela senhorinha gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.
Desconfiava que quase todos fossem reféns do amor nessa incessante (e impossível) viagem para ser único e especial para alguém. Essa possibilidade imaginária funcionaria legal ao proporcionar uma visão de vida, ao oferecer alguma remissão e um significado à existência. Seriam poucos os que não se declarariam dependentes de um olhar amoroso, de poder contar com um outro que respondesse sobre sua importância. Uma aposta alta e por isso sempre acompanhada do medo do não, do abandono ou da traição. Terrível paradoxo! Habitar esta terra do romance que permite que se construam pontes e acessos imaginários para a “posse” completa do outro. Ao contrário, ela sabia que era às duras penas que se conseguia ajustar o olhar às cores pastéis do amor para poder trocar o verbo “precisar” do amor do outro, e inventar tantos outros verbos em que se corre o risco de não ser amado ou de ser amado de forma diferente do que se quer. Só assim é possível localizá-lo nos pequenos detalhes, nas trocas de olhares, nos pactos, nos sorrisos, na antecipação de certos desejos, na cumplicidade com as fragilidades, enfim, na responsabilidade com os cuidados e afetos que cada um (por sua conta e risco) se compromete a assumir. Nem um mar de alegrias sem fim, nem um lago escuro e gelado em que só habitem feras hostis. Para ela uma razão para viver. “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?” – Mel gostava de cantarolar esta frase do Renato Russo. Perfeita!
Agora se sentia refém da dor. A vida estaria lhe dando uma chance ou lhe punindo? Ora se entregava à dor insuportável da perda desta experiência tão rica, ora Pedro parecia lhe acenar para que ela voltasse à superfície. Sua “presença” ainda lhe salvava.
Lembrou-se quando mudara para o Rio de Janeiro atrás de seus sonhos e sim... Podia dizer sem titubear que muitos deles se realizaram. Conseguira cavar um lugar no mundo incerto do jornalismo. Depois o cinema – sua grande paixão – com a carreira de roteirista, algo que imaginara desde a sua infância, quando “dirigia” a turma da rua improvisando cenários e vestimentas. Que sensação gostosa se lembrar dos roteiros que escrevera ainda menina, das reuniões sempre tumultuadas para a escolha dos atores principais. Tivera que criar uma estratégia para evitar os conflitos advindos dos ciúmes e das rivalidades, e assim proporcionar maior legitimidade aos eleitos. Os “estúdios” de seu Cinemoção ficavam no enorme quintal de sua casa e seus pais jamais se opuseram, ao contrário, até palpitavam e algumas vezes ajudavam na composição dos cenários e nos figurinos. Sua mãe, ah... Que saudades daquele olhar interessado, investido de energia. Sua paixão pela vida a alimentara e a movera o tempo todo. Um legado.
Pensou em Pedro e de como ele admirava nela esta mesma ligação apaixonada com a vida, uma estrada aberta para acolher as possibilidades de prazeres diversos. Mas agora que ele se fora, anoitecera. O dia não amanhecia. Perdera para sempre seu olhar devoto, amoroso, que tanto alimentara sua coragem, seus projetos, sua vida.
Não encontrava palavras para descrever sua dor. Ainda não. Ela lhe ultrapassava. As cenas evocadas pela memória ora traziam Pedro ora sua mãe, que se fora lentamente antes de morrer, durante o calvário do Alzeimer, aquele que rompe os fios da memória deixando todos atônitos. Consultas ao Google, aos neurocientistas, aos familiares de outros atingidos por esta doença não puderam responder a pergunta que insistia: por quê? Como é possível que ainda saudável, resultados de exames conferindo-lhe saúde de uma jovem, sua mãe houvesse abandonado sua bem instalada identidade, sua mais valiosa moradia, para aos poucos ficar sem lugar, sem história, em um caminho sem volta até perder-se de si mesma? Tinha sido dramático estar ao seu lado, ao lado daquele corpo tão conhecido e tão querido e perceber que em algum lugar dele havia um “ralo” sugador de histórias recentes e passadas, das quais ela se sentia parte. História de uma mulher e mãe tão sabida, centro nervoso da casa, daquelas que levavam a palavra aonde ainda não existia. Que sabia tecer devagarinho as asas de seus filhos e separar-se deles na hora certa. Todos puderam voar, talvez porque supunham que ela estaria sempre ali para recebê-los, atender seus telefonemas a qualquer hora e dia (oh céus, como isso fazia diferença). Era óbvio que não havia se preparado para perder sua mãe. E agora Pedro.
Pensou nos inúmeros filmes baseados nas memórias de dores, mas de descobertas de alguém, histórias que fazem chorar, arrepiar e acelerar os corações! Ali, em silêncio, Mel imaginou a cena de um filme futuro, em que as duas, mãe e filha, conversariam sobre a dor da morte dela e de Pedro. E sua mãe a lhe garantir a possibilidade de inventar novos laços para ocupar o lugar dos perdidos. A impedir que sua memória-história se perdesse e com ela a sua paixão pela vida e seus roteiros.



Gisela Haddad é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância, do Grupo Generidades, da equipe editorial da Revista Percurso e do Blog do Departamento. É mestre em Psicologia Clínica e autora do livro Amor e Fidelidade, Coleção Clínica Psicanalítica da Casa do Psicólogo (2009).

Gisela Haddad foi irmã-mãe de seis, é mãe sortuda de duas pérolas e avó de um pedacinho de diamante. Faz muitas viagens pelas letras, pelas comidas e pelas estradas, sempre atenta às novas possibilidades de se articular o belo ao amoroso e ao genial. É aflita e agita-se muito, mas às vezes adormece e sonha.

Texto originalmente publicado no livro "Perche mi piace - a vida com elas" organizado por Maria Leticia Oliveira Reis ( Calligraphie Editora 2018)