sexta-feira, 18 de maio de 2012

Virada cultural


O Brasil (assim como outros países emergentes) vem se tornando foco de interesse dos que buscam visualizar “tendências” do futuro da vida humana, ou seja, dos que, diante da “certeza” de tantas incertezas, tentam antecipar um roteiro ou mapa para os variados setores de nossas vidas: finanças, saúde, felicidade, trabalho, cultura, relacionamentos, etc. de olho no que imaginam ser uma espécie de laboratório do planeta. De país periférico, passamos a objeto de reflexão e curiosidade dos que apostam que, sem o peso de uma “tradição” civilizatória/intelectual/científica/ ideológica, nossas soluções para as rápidas mudanças que o mundo contemporâneo impõe podem ser diferenciadas, quiçá inovadoras. Será? Talvez, se tomamos o Brasil em um estágio de adolescência, curtindo a ferveção/pulsação incessante deste período e/ou impelido a inventar uma disponibilidade infinita para o novo, mas sem muitos compromissos para com seu mal ajambrado passado. Uma visão romântica? De certa maneira sim. O romantismo guarda em certo grau uma visão idealizada da condição humana, ou dos estágios da vida. Viver em um patamar quase sempre provisório para as soluções dos problemas (leves ou escabrosos) pode desembocar na invenção de modos criativos de existência, ou ser um desastre. As possibilidades de vida humana sem direitos e obrigações civilizatórios mais ou menos encarnados costumam ser injustas ou confusas. Mas certamente vivemos em uma era em que a cultura global pede muita flexibilidade. E se há um setor efervescente, que tem sido pensado e ocupado por jovens inspirados, cheios de ideias e orgulhosos do acervo hiperdiversificado do Brasil, é nossa cultura. Um bom exemplo são as edições da virada cultural paulistana, um evento que completou oito anos no último dia 5/6 de maio e que aos poucos foi arregimentando diferentes camadas da população. Pensemos em seu duplo sentido. Virada tanto significa o novo, algo que implica em uma ruptura com o velho quanto alude ao fato de ser um evento que “vira” a noite /dia e oferece espetáculos para todos os gostos e idades ininterruptamente. Fui conferir. Depois de estudar o mapa dos quase cem locais espalhados pela cidade, elegi o centro de São Paulo (onde se concentravam mais da metade dos palcos) para apreciar uma das apresentações da programação do “Piano na praça” no sábado à noite. Para aqueles que não conhecem, o palco fica na Praça Dom Gaspar, atrás da Biblioteca Mario de Andrade, em um lugar arborizado e muito apropriado para um solo de piano. Tudo trabalhava a favor: a noite de lua cheia iluminava as belas e antigas construções do centrão, o clima era de um outono agradável, muita gente transitava para lá e para cá e policiais espalhados em duplas pelas esquinas estavam a postos para orientar os transeuntes sobre os melhores trajetos dos destinos escolhidos. Impossível não sentir certa satisfação ao cruzar com alguns grupos de senhorinhas que estudavam seu “mapa da virada” para tentar eleger com algum consenso as próximas atrações. Quanto a mim, já estava decidido, a próxima parada seria o coreto da Praça da República. Que boa escolha! Depois de ouvir um excelente solo ao piano, sentada embaixo de árvores centenárias, nada melhor do que balançar mansamente o esqueleto junto aos que já se encontravam ao redor do antigo coreto. No “ar”? O Projeto Coisa Fina, uma banda composta de feras da música instrumental brasileira que promove uma fusão do jazz ao baião, maracatu e samba. Na pauta, muitas músicas do genial maestro Moacir Santos. Com muito orgulho, tudo coisa nossa!


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Danos morais

Dias destes testemunhei um acidente que não só me tirou o fôlego por alguns instantes, como me doeu a alma por um bom tempo. Prestes a passar por um cruzamento importante e antecipando a troca do sinal verde pelo vermelho através da visão do amarelo, fui diminuindo a velocidade quando à minha esquerda um carro atravessou apressadamente já no vermelho. Nada de novo - apesar de transgressivo - não fosse o fato do motorista não ter visto a travessia de duas bicicletas e não ter conseguido evitar a colisão com uma delas. Pior, apesar de ter sido obrigado a frear, o carro logo engatou nova marcha e sumiu avenida afora, sem titubear. Não parou para se informar sobre os estragos de sua imprudência ou para socorrer a vítima se fosse o caso. Fui tomada por um mal estar insuportável que só foi mediamente amenizado ao perceber que o rapaz atropelado se levantava e tirava às pressas sua bicicleta toda torta do meio da rua. Imaginei que, como eu, ele estaria tomado por um misto de alívio por sair incólume e muita raiva pela imprudência, covardia e indiferença do motorista. Seu companheiro de bicicleta saiu em disparada para tentar alcançar o carro, enquanto algumas pessoas na calçada se movimentaram em sua direção para acolhê-lo. Invadiu-me a certeza de que todos ali partilhavam do mesmo sentimento de aversão contra o malfadado motorista, seu ato antissocial, sua falta de respeito para com os outros. Graças ao incentivo de construções de ciclovias e à pronta adesão de milhares de jovens, o número de ciclistas que transitam no dia a dia da cidade de São Paulo aumentou consideravelmente nestes últimos dois anos, assim como os acidentes. Sem muitas leis, os protestos que reúnem os usuários de bikes nestas ocasiões tem pressionado o setor público a construir uma “visibilidade” para o ciclista através de implantação de novas normas principalmente para os veículos. Com o rádio ligado quase sempre na Eldorado FM, venho acompanhando esta evolução por uma de suas mais famosas “bike reporter”, Renata Falzoni, que informara recentemente sobre campanhas públicas e novas leis de transito que passam a proteger a vida do ciclista e garantir-lhe o uso das ruas. Segui com meus pensamentos e me pus a “inventar” um diálogo com um outro fictício em que eu pudesse discorrer sobre minha repulsa ao ato “violento” daquele motorista. Um tipo de violência que nos deixa impotente diante da constatação de que fica a cargo de cada um decidir sobre o “uso” e o “abuso” que faz das pessoas. Resta-nos a aposta em um espaço comum de constrangimento compartilhado, como o que imaginei em relação aos que assistiram o acidente. Saber que a maioria poderia se indignar me alentava. Uma amiga me relatara sobre este mesmo constrangimento compartilhado quando, em um grande magazine, assistira a uma explosão violenta de um pai diante do filho que derrubara uma peça do mostruário. Todos pararam e olharam assustados como a esperar que aquele pai pudesse pedir desculpas por seu “excesso”. Ficaríamos listando um número sem fim de exemplos de tais violações e talvez um dos mais escabrosos pudesse ser o que a mídia tem chamado de “cachoeiragate” em que um homem consegue construir e manter uma rede de influencia e troca de favores, posicionando-se tal e qual um “padrinho” em todas as esferas de poder da sociedade, arrastando partidos, corporações, empresas, prefeitos, governadores, polícia, etc. É por desconfiar que a fronteira entre o “civilizado” e o “bárbaro”, entre o digno e o indigno habita permanente em cada um de nós que precisamos desta zona de conforto que imaginamos existir, uma zona moral que seria partilhada pela maioria de “nós”, que não nos deixaria sozinhos diante de certas violações desastrosas das normas de convivência e que nos ajudasse a reafirmar certos valores preciosos na manutenção dos laços sociais

Ouvir, cuidar, refletir...


“Cartas a uma jovem psicanalista” é um livro (mais ou menos recente) escrito por um psicanalista brasileiro que há anos reside na França, Heitor O´Dwyer de Macedo, este título sendo uma homenagem àquele utilizado por Rainer Maria Rilke  no inicio do século XX em que o poeta francês se dirige a um jovem admirador e tenta “desidealizar” o percurso rumo à  consagração do poeta ao revelar-lhe quão inseparável a poesia seria da sua própria vida. Pode-se dizer que ambos os autores alertam para a impossibilidade de se prever estas trajetórias, e optam por discorrer sobre a suas paixões ao apresentar suas marcas pessoais na expectativa de contribuir com alguma luz para  seus respectivos iniciantes. A maioria dos textos gestados nas instituições psicanalíticas  e dirigidos aos que desejam iniciar sua formação reiteram que este processo acontece no próprio percurso da formação em que, além da aquisição e apropriação das conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel central. Que esta análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é preciso analisar outros e submeter a sua clínica à escuta apurada de um supervisor.   E embora todos concordem que viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não há um saber a priori. O que a psicanálise insiste em revelar ao sujeito à sua revelia é parte integrante do saber e da intervenção psicanalítica, seu paradoxo e sua razão de ser, e só podemos nos considerar psicanalistas se pudermos nos submeter a uma análise com alguém que também se submeteu, etc. Tal e qual um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via inconsciente,  está articulada de forma complexa ao modo de apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos analistas. E isto é apenas uma ponta do iceberg. É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um se aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise e ao mesmo tempo é quando podemos conhecer o trabalho de um outro analista. Também é como analisando que podemos verificar a realidade psíquica, reconhecer sua existência, experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas, sem testemunhas, que não se ensina, e que é transmitida na medida em que são oferecidos sentidos possíveis aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, à medida que somos defrontados com nossas dores e resistências na viagem em direção ao reconhecimento de nossos conflitos e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se vive na carne, visceral e pessoal. Por outro lado, é na clínica que a teoria se recria. Deitados (ou não) no divã daquele que elegemos como nosso analista, vamos nos familiarizando com o método psicanalítico, reconstruindo nossa historia psíquica, e nos incumbindo de refazê-la (ou ressignifica-la) continuamente. Estes passos iniciais da prática clínica não são nada fáceis, pois paralelo ao mergulho em nosso inconsciente, o contato com nossos pacientes nos lança as mesmas questões, e nos convoca a revisitá-las por outros ângulos. Além disso, não é nada fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos teoricamente nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses que ela promove. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da profissão de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e despreparo pessoal, conceitual e técnico. Muitas vezes  caímos em uma certa rigidez técnica e alguma confusão teórica, ou sacralizamos os textos, em uma tentativa de antecipação teórica que nos auxilie a suportar nossa aflição diante do não saber.  E a história não acaba aí. Como qualquer escolha de profissão, ser um psicanalista nos coloca diante de questões de identidade, reconhecimento e pertinência. Temos que eleger a instituição, os analistas, os supervisores. Precisamos inicialmente de Mestres, a quem possamos atribuir todo o saber, o que muitas vezes  transforma  nosso discurso teórico em dogma. Mais, o árduo percurso rumo a este oficio parece ser atenuado quando o idealizamos e apostamos na possibilidade de vir a alcançar no seu saber, uma espécie de completude, de respostas a todas as perguntas (nossas e dos outros). Um grande paradoxo, já que tal expectativa desloca a Psicanálise de seu papel de investigadora da condição humana para coloca-la em um lugar de Verdade absoluta. Se  a psicanalise nos convida a compartilhar de sua pretensão permanente na desconstrução da majestade do eu e dos ideais absolutos de seu tempo, não estamos isentos, como indivíduos-psicanalistas, de no exercício da tarefa de cuidar/ouvir do sofrimento e da dor humana escorregarmos para o lugar dos que imaginam saber como “deveria ser ”.