O Brasil (assim como outros
países emergentes) vem se tornando foco de interesse dos que buscam visualizar
“tendências” do futuro da vida humana, ou seja, dos que, diante da “certeza” de
tantas incertezas, tentam antecipar um roteiro ou mapa para os variados setores
de nossas vidas: finanças, saúde, felicidade, trabalho, cultura, relacionamentos,
etc. de olho no que imaginam ser uma espécie de laboratório do planeta. De país
periférico, passamos a objeto de reflexão e curiosidade dos que apostam que,
sem o peso de uma “tradição” civilizatória/intelectual/científica/ ideológica,
nossas soluções para as rápidas mudanças que o mundo contemporâneo impõe podem
ser diferenciadas, quiçá inovadoras. Será? Talvez, se tomamos o Brasil em um
estágio de adolescência, curtindo a ferveção/pulsação incessante deste período e/ou
impelido a inventar uma disponibilidade infinita para o novo, mas sem muitos
compromissos para com seu mal ajambrado passado. Uma visão romântica? De certa
maneira sim. O romantismo guarda em certo grau uma visão idealizada da condição
humana, ou dos estágios da vida. Viver em um patamar quase sempre provisório
para as soluções dos problemas (leves ou escabrosos) pode desembocar na
invenção de modos criativos de existência, ou ser um desastre. As possibilidades
de vida humana sem direitos e obrigações civilizatórios mais ou menos
encarnados costumam ser injustas ou confusas. Mas certamente vivemos em uma era
em que a cultura global pede muita flexibilidade. E se há um setor efervescente,
que tem sido pensado e ocupado por jovens inspirados, cheios de ideias e
orgulhosos do acervo hiperdiversificado do Brasil, é nossa cultura. Um bom
exemplo são as edições da virada cultural paulistana, um evento que completou
oito anos no último dia 5/6 de maio e que aos poucos foi arregimentando
diferentes camadas da população. Pensemos em seu duplo sentido. Virada tanto significa
o novo, algo que implica em uma ruptura com o velho quanto alude ao fato de ser
um evento que “vira” a noite /dia e oferece espetáculos para todos os gostos e
idades ininterruptamente. Fui conferir. Depois de estudar o mapa dos quase cem
locais espalhados pela cidade, elegi o centro de São Paulo (onde se
concentravam mais da metade dos palcos) para apreciar uma das apresentações da
programação do “Piano na praça” no sábado à noite. Para aqueles que não
conhecem, o palco fica na Praça Dom Gaspar, atrás da Biblioteca Mario de
Andrade, em um lugar arborizado e muito apropriado para um solo de piano. Tudo
trabalhava a favor: a noite de lua cheia iluminava as belas e antigas construções
do centrão, o clima era de um outono agradável, muita gente transitava para lá
e para cá e policiais espalhados em duplas pelas esquinas estavam a postos para
orientar os transeuntes sobre os melhores trajetos dos destinos escolhidos. Impossível
não sentir certa satisfação ao cruzar com alguns grupos de senhorinhas que estudavam
seu “mapa da virada” para tentar eleger com algum consenso as próximas
atrações. Quanto a mim, já estava decidido, a próxima parada seria o coreto da Praça
da República. Que boa escolha! Depois de ouvir um excelente solo ao piano,
sentada embaixo de árvores centenárias, nada melhor do que balançar mansamente
o esqueleto junto aos que já se encontravam ao redor do antigo coreto. No “ar”?
O Projeto Coisa Fina, uma banda composta de feras da música instrumental
brasileira que promove uma fusão do jazz ao baião, maracatu e samba. Na pauta,
muitas músicas do genial maestro Moacir Santos. Com muito orgulho, tudo coisa
nossa!
sexta-feira, 18 de maio de 2012
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Danos morais
Dias destes testemunhei um acidente que não só
me tirou o fôlego por alguns instantes, como me doeu a alma por um bom tempo.
Prestes a passar por um cruzamento importante e antecipando a troca do sinal
verde pelo vermelho através da visão do amarelo, fui diminuindo a velocidade
quando à minha esquerda um carro atravessou apressadamente já no vermelho. Nada
de novo - apesar de transgressivo - não fosse o fato do motorista não ter visto
a travessia de duas bicicletas e não ter conseguido evitar a colisão com uma
delas. Pior, apesar de ter sido obrigado a frear, o carro logo engatou nova
marcha e sumiu avenida afora, sem titubear. Não parou para se informar sobre os
estragos de sua imprudência ou para socorrer a vítima se fosse o caso. Fui
tomada por um mal estar insuportável que só foi mediamente amenizado ao
perceber que o rapaz atropelado se levantava e tirava às pressas sua bicicleta toda
torta do meio da rua. Imaginei que, como eu, ele estaria tomado por um misto de
alívio por sair incólume e muita raiva pela imprudência, covardia e indiferença
do motorista. Seu companheiro de bicicleta saiu em disparada para tentar
alcançar o carro, enquanto algumas pessoas na calçada se movimentaram em sua
direção para acolhê-lo. Invadiu-me a certeza de que todos ali partilhavam do
mesmo sentimento de aversão contra o malfadado motorista, seu ato antissocial,
sua falta de respeito para com os outros. Graças ao incentivo de construções de
ciclovias e à pronta adesão de milhares de jovens, o número de ciclistas que
transitam no dia a dia da cidade de São Paulo aumentou consideravelmente nestes
últimos dois anos, assim como os acidentes. Sem muitas leis, os protestos que
reúnem os usuários de bikes nestas ocasiões tem pressionado o setor público a
construir uma “visibilidade” para o ciclista através de implantação de novas normas
principalmente para os veículos. Com o rádio ligado quase sempre na Eldorado
FM, venho acompanhando esta evolução por uma de suas mais famosas “bike
reporter”, Renata Falzoni, que informara recentemente sobre campanhas públicas
e novas leis de transito que passam a proteger a vida do ciclista e
garantir-lhe o uso das ruas. Segui com meus pensamentos e me pus a “inventar”
um diálogo com um outro fictício em que eu pudesse discorrer sobre minha
repulsa ao ato “violento” daquele motorista. Um tipo de violência que nos deixa
impotente diante da constatação de que fica a cargo de cada um decidir sobre o
“uso” e o “abuso” que faz das pessoas. Resta-nos a aposta em um espaço comum de
constrangimento compartilhado, como o que imaginei em relação aos que
assistiram o acidente. Saber que a maioria poderia se indignar me alentava. Uma
amiga me relatara sobre este mesmo constrangimento compartilhado quando, em um
grande magazine, assistira a uma explosão violenta de um pai diante do filho
que derrubara uma peça do mostruário. Todos pararam e olharam assustados como a
esperar que aquele pai pudesse pedir desculpas por seu “excesso”. Ficaríamos
listando um número sem fim de exemplos de tais violações e talvez um dos mais
escabrosos pudesse ser o que a mídia tem chamado de “cachoeiragate” em que um
homem consegue construir e manter uma rede de influencia e troca de favores,
posicionando-se tal e qual um “padrinho” em todas as esferas de poder da
sociedade, arrastando partidos, corporações, empresas, prefeitos, governadores,
polícia, etc. É por desconfiar que a fronteira entre o “civilizado” e o
“bárbaro”, entre o digno e o indigno habita permanente em cada um de nós que
precisamos desta zona de conforto que imaginamos existir, uma zona moral que
seria partilhada pela maioria de “nós”, que não nos deixaria sozinhos diante de
certas violações desastrosas das normas de convivência e que nos ajudasse a
reafirmar certos valores preciosos na manutenção dos laços sociais
Ouvir, cuidar, refletir...
“Cartas a uma jovem psicanalista”
é um livro (mais ou menos recente) escrito por um psicanalista brasileiro que há
anos reside na França, Heitor O´Dwyer de Macedo, este título sendo uma
homenagem àquele utilizado por Rainer Maria Rilke no inicio do século XX em que o poeta francês
se dirige a um jovem admirador e tenta “desidealizar” o percurso rumo à consagração do poeta ao revelar-lhe quão
inseparável a poesia seria da sua própria vida. Pode-se dizer que ambos os
autores alertam para a impossibilidade de se prever estas trajetórias, e optam
por discorrer sobre a suas paixões ao apresentar suas marcas pessoais na
expectativa de contribuir com alguma luz para seus respectivos iniciantes. A maioria dos textos
gestados nas instituições psicanalíticas
e dirigidos aos que desejam iniciar sua formação reiteram que este
processo acontece no próprio percurso da formação em que, além da aquisição e
apropriação das conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel
central. Que esta análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é
preciso analisar outros e submeter a sua clínica à escuta apurada de um
supervisor. E embora todos concordem
que viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de
analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados
procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não
há um saber a priori. O que a psicanálise insiste em revelar ao sujeito à sua
revelia é parte integrante do saber e da intervenção psicanalítica, seu
paradoxo e sua razão de ser, e só podemos nos considerar psicanalistas se pudermos
nos submeter a uma análise com alguém que também se submeteu, etc. Tal e qual
um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via inconsciente, está articulada de forma complexa ao modo de
apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos analistas. E isto é apenas
uma ponta do iceberg. É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um se
aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise e ao mesmo tempo é
quando podemos conhecer o trabalho de um outro analista. Também é como
analisando que podemos verificar a realidade psíquica, reconhecer sua existência,
experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas, sem testemunhas, que não se
ensina, e que é transmitida na medida em que são oferecidos sentidos possíveis
aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, à medida que somos defrontados com nossas
dores e resistências na viagem em direção ao reconhecimento de nossos conflitos
e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se vive na
carne, visceral e pessoal. Por outro lado, é na clínica que a teoria se recria.
Deitados (ou não) no divã daquele que elegemos como nosso analista, vamos nos
familiarizando com o método psicanalítico, reconstruindo nossa historia
psíquica, e nos incumbindo de refazê-la (ou ressignifica-la) continuamente. Estes
passos iniciais da prática clínica não são nada fáceis, pois paralelo ao
mergulho em nosso inconsciente, o contato com nossos pacientes nos lança as
mesmas questões, e nos convoca a revisitá-las por outros ângulos. Além disso, não
é nada fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos
teoricamente nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses que
ela promove. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da profissão
de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e despreparo
pessoal, conceitual e técnico. Muitas vezes caímos em uma certa rigidez técnica e alguma
confusão teórica, ou sacralizamos os textos, em uma tentativa de antecipação
teórica que nos auxilie a suportar nossa aflição diante do não saber. E a história não acaba aí. Como qualquer
escolha de profissão, ser um psicanalista nos coloca diante de questões de
identidade, reconhecimento e pertinência. Temos que eleger a instituição, os
analistas, os supervisores. Precisamos inicialmente de Mestres, a quem possamos
atribuir todo o saber, o que muitas vezes
transforma nosso discurso teórico
em dogma. Mais, o árduo percurso rumo a este oficio parece ser atenuado quando
o idealizamos e apostamos na possibilidade de vir a alcançar no seu saber, uma
espécie de completude, de respostas a todas as perguntas (nossas e dos outros).
Um grande paradoxo, já que tal expectativa desloca a Psicanálise de seu papel
de investigadora da condição humana para coloca-la em um lugar de Verdade
absoluta. Se a psicanalise nos convida a
compartilhar de sua pretensão permanente na desconstrução da majestade do eu e
dos ideais absolutos de seu tempo, não estamos isentos, como indivíduos-psicanalistas,
de no exercício da
tarefa de cuidar/ouvir do sofrimento e da dor humana escorregarmos para o lugar
dos que imaginam saber como “deveria ser ”.
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