sexta-feira, 6 de março de 2020

A família como foco



A família como foco

Gisela Haddad

Falar sobre família é falar sobre um assunto que diz respeito à vida de todos nós. E, ao mesmo tempo em que nos torna parte de um comum - todos têm ou tiveram família – é um assunto de cada um, já que cada um  tem uma história particular sobre sua família. Mas é justamente por ser parte da cultura em que vivemos e ao mesmo tempo o berço da vida de cada um que falar de família não é tão simples.
A família pode ser vista como a unidade doméstica que deve proporcionar condições materiais necessárias à sobrevivência, como instituição que possibilita uma referência e um local de segurança, como formadora, divulgadora e contestadora de valores, imagens e representações, como um conjunto de laços de parentesco, como um grupo de afinidade, com variados graus de convivência e proximidade, etc. Existe uma multiplicidade de formas e sentidos da palavra família, construída com a contribuição das várias ciências sociais e podendo ser pensada sob os mais variados enfoques através dos diferentes referenciais acadêmicos. É vasta a literatura tanto das ciências sociais como das humanas que apontam a importância da família no desenvolvimento psíquico da criança. A proposta deste curso é que possamos pensar a família para além de suas representações clássicas, e refletir acerca de seu contexto histórico.
Não tem sido poucas às vezes em que se escutam declarações de que foi decretada a “morte da família”. Em geral a estas considerações são acrescidos a certa crise de valores ou à nostalgia do tempo em que a família oferecia amparo, segurança e bons padrões de moralidade às crianças.
Para abordarmos este tema, começaremos apontando os determinantes da constituição da família moderna e sua articulação com o aparecimento da psicanálise. Tentaremos mostrar como os conceitos teóricos e clínicos da psicanálise estavam no cerne da constituição da família nuclear, assim como de muitas de suas modificações.

Um pouco da historia da família, o final da Idade Média e os ruídos da modernidade.

Uma das diferenças mais importantes entre o homem medieval e o moderno está na maneira como cada um dava sentido a sua vida. Para os nascidos antes da Modernidade,  este sentido era prévio.Nascia-se em determinada classe social e lá se permanecia.O filho de um servo  já sabia qual seria seu destino, suas funções e seu modo de vida segui os passos do modelo de seus pais. Ou seja, as identidades e os papéis sociais eram atribuídos por herança, seguindo os laços de pertencimento já definidos ao nascer. Este esquema também funcionava para as famílias aristocráticas. Carlota Joaquina, por exemplo, tinha apenas 10 anos quando se mudou da Espanha para Portugal para ser esposa do então príncipe  João e assim cumprir os acordos de posses e poder que uniam as famílias reais. As princesas nesta época funcionavam como objeto de trocas entre os diferentes reinos, com o intuito de manter relações políticas e garantir o  poder e estavam desde seu nascimento ( ainda que à sua revelia) destinadas a casar com príncipes ou reis e  enfrentar outras culturas, costumes e línguas.
É no final da Idade Média que passam a acontecer as grandes navegações e com elas  as descobertas de novos continentes, o contato com novos povos, novas culturas, a urbanização das cidades e o surgimento de novos serviços. O homem vê seus horizontes se ampliarem, novas universidades se espalham pelo continente europeu e na Europa toda, começa um movimento chamado de Luzes ou Iluminismo, que pretendia se contrapor as Trevas da Idade Média, em que o conhecimento havia ficado enclausurado pela Igreja Católica.É bom que não confundamos a questão da fé religiosa com este período histórico após a queda do Império Romano em que a Igreja dominou politicamente toda a Europa, impondo de forma totalitária toda a sua ideologia, além de ditar as regras de convivência, o permitido e o proibido. A reforma da Igreja questionou o monopólio da verdade por parte das autoridades eclesiásticas e consolidou o individualismo cristão, segundo o qual cada um era responsável pelas condutas que atestassem sua fé. A livre circulação da palavra escrita possibilitada pela invenção da imprensa trouxe o desenvolvimento do hábito de leituras silenciosas que contribuiu para reforçar o individualismo e democratizar as possibilidades de reflexão solitária diante de uma diversidade de textos impressos contendo saberes e opiniões que a Igreja Católica já não conseguia mais guardar e controlar. Para Lutero, cada fiel, examinando honestamente sua consciência, deveria julgar o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, pois não existe uma verdade definitiva que possa orientar a fé de um cristão. Não existe uma palavra acima da palavra dos textos sagrados para esclarecer os mistérios contidos neles. Lutero foi um racionalista, mas não um cético. Ele apostou na busca da verdade através da razão. Seu pensamento inaugurou um novo tipo de sofrimento para o homem ocidental, responsabilizado por alcançar, sozinho e pela limpidez de sua mente, a verdade e o caminho da salvação
A crise teológica, em relação à regra da fé, aberta por Martinho Lutero, aprofundou-se com o pensamento de Montaigne. O máximo que ele propunha é que é preferível aceitar a regra católica já que é a mais próxima de nós, mas não temos como nos assegurar de que seja a melhor. “Escolher” ser um católico, ou sê-lo por tradição, já denuncia que a verdade da Igreja não é inquestionável.
Aprofundou também uma crise humanística, ao admitir a diversidade das culturas sem estabelecer entre elas uma hierarquia de valor. Com isto, instaurou o relativismo cultural e moral, que ao mesmo tempo enriqueceu e abalou o humanismo da renascença.
Por fim, colocou o dedo na crise do conhecimento científico: como posso conhecer o verdadeiro ser das coisas? As coisas não possuem uma essência fixa. Além do mais nós também estamos sujeitos a nos iludir: nossos desejos nos enganam, nossos sentidos são imperfeitos. Tudo isso impede de confiar na capacidade humana em estabelecer qualquer ciência segura.

 O anseio para que houvesse alguma maneira de produzir “verdades” mais objetivas, inaugura o racionalismo, movimento que irá privilegiar a razão humana em detrimento de suas paixões. É com Descartes filosofo Frances do século XVII que vemos nascer o projeto moderno. É ele quem escreve sobre o método racionalista, berço do que será a ciência moderna, na tentativa de produzir conhecimento e certezas, algo que o homem pudesse contar, e que lhe desse certezas sobre si e o mundo.Mas para objetivar o mundo era necessário que o homem deixasse de lado suas paixões e afetos, estas sempre alheias a ordem do objetivo (falar sobre a novela de Italo Calvino- o cavaleiro inexistente e do silêncio do corpo como ideal moderno  ler referência em texto de Luis Claudio Figueiredo) 
Em parte esta pretensão moderna foi abraçada pelos estudiosos da época, famintos que estavam em produzir conhecimentos confiáveis sobre a natureza e o mundo que os cercava. O preço deste empenho foi a divisão deste sujeito do conhecimento que se viu entre a razão e a paixão.
Mas como nós humanos não cessamos de produzir ruídos a partir de nossas paixões e afetos, surge no cenário moderno  um outro movimento, muito conhecido por todos vocês, o romantismo, que irá incorporar o que fica excluído do projeto racionalista: o corpo, os afetos e as paixões e  que se impõem como objetos de conhecimento a serem incorporadas pelo sujeito.
Será diante das perguntas que o homem se  faz para conhecer e conviver com esses ruídos do corpo que não se silenciam que nascerão as Ciências Humanas, a Sociologia , Antropologia.

O movimento romântico não tem uma data ou um país de origem e na verdade pode ser abordado de DIVERSOS ANGULOS e em vários PAÍSES DA EUROPA do século XVIII e XIX, mas é  na Alemanha que ele irá se configurar como um movimento cultural, do qual GOETE é  um dos seus expoentes. É fácil fazer uma busca pelos romances desta época, e perceber como estes tentam fazer uma conciliação entre a sensibilidade e a razão. Este novo modo de falar sobre o homem, privilegiando seus sentidos, trazem à cena uma nova dimensão humana, sua interioridade.
Freud tem  um pé em cada uma destas tradições modernas ,ou seja é médico   com uma formação acadêmico-científica na área de neurologia, fisiologia e anatomia , mas mantêm uma interlocução constante  com a produção literária e filosófica do movimento romântico, o que  será  fundamental para o nascimento da Psicanálise e sua original teoria do psiquismo. Uma pequena ilustração destas duas vertentes na sua obra são os textos  “Projeto de uma Psicologia científica” escrito em 1895 e “a Interpretação dos Sonhos” escrito em 1900.( praticamente simultâneos) No primeiro, onde Freud desejava construir uma teoria do aparelho psíquico em bases científicas, privilegia os neurônios, as quantidades, os investimentos e deslocamentos de energia, etc. Em seu texto sobre a interpretação dos sonhos traz o tema do cotidiano: afinal os sonhos eram os restos daquilo que interessava ao pensamento científico do final do século XIX. Se somos individuais, e é nossa consciência que deve decidir o bom e o verdadeiro, nosso desamparo intelectual fica evidente; nada nos fornece uma garantia final quanto à verdade e aos caminhos da salvação. Estamos no mundo sem uma bula confiável para dirigir nossos destinos. A subjetividade característica do individualismo moderno começou a se diferenciar aqui

Ao privilegiar o individuo, fazê-lo pensar sobre si,  a modernidade inaugura uma forma subjetiva particular, caracterizada pela interioridade psicológica e pela construção de identidades fundadas em atributos e sentimentos privados, em que ser alguém é tornar-se alguém, é conceber sua existência como uma realização pessoal ao longo da vida.

A família moderna é fruto do iluminismo e calcada em valores muito mais individualistas em uma época em que começa a haver o predomínio dos valores democráticos e igualitários que tornaram possível,pelo menos ao nível das aspirações, a idéia de igualdade e dos direitos individuais entre homens e mulheres.
O modelo familiar que conhecemos nasceu de um projeto iluminista que teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal projeto  pretendia transformar a família em um dos maiores ideais de felicidade humana que  seria conquistada pelo laço amoroso, sexual e exclusivo entre um homem e uma mulher e pela constituição de uma nova família, assentada pelo amor entre os cônjuges e destes em relação aos seus filhos. Esta composição de ideais do bem do amor, do sujeito amoroso e da felicidade amorosa se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos e também funcionava como  uma proposta política para a sociedade burguesa ao prever um arranjo conjugal em que a sexualidade ganhava legitimidade ao ser integrada  ao amor e ao casamento. Ainda que, ilusoriamente, a família burguesa tenha se pensado como independente do controle externo, posto que, na verdade, sua constituição foi historicamente determinada, tal ilusão de liberdade ofereceu as bases para a noção de que a família se estrutura a partir de três
coordenadas distintas:
-o caráter voluntário: as pessoas se unem por vontade própria, revelação plena do individualismo na medida em que as pessoas perdem sua inscrição social e passam a contar individualmente;
-o amor natural: fundamento da noção de que aquilo que mantém a união matrimonial é a natureza humana e seus aspectos subjetivos estruturados pelos laços fraternos da paternidade e maternidade sem interesses econômicos;
-a educação:a finalidade da família é interna e não externa.

A literatura romântica da época era pródiga em incentivar  o amor como norte para os excessos do sexo. Quem não conhece os destinos trágicos de Anna Karenina ou de Madame Bovary, dois exemplos clássicos de paixões que se afastavam dos moldes previstos pela família? Grande parte dos romances narravam histórias de amor em que  sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências amorosas cujas paixões e  desesperos passam a ser parte das fantasias humanas. Além disso, as  narrativas românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar  uma interioridade psicológica  com  identidades  fundadas em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência amorosa inédita. Um novo conhecimento nascia, uma ciência do homem, de suas particularidades e singularidades.
O amor romântico, por ser um  ideal reverenciado por toda a sociedade e base importante de um projeto político e social da família burguesa, passa a fazer parte  de um horizonte futuro da vida de cada um , tornando-se uma aspiração  poderosa ao acenar com a  possibilidade de uma felicidade humana terrena em contraposição aos  antigos ideais religiosos. Aos poucos estas famílias vão se transformando  em uma fortaleza afetiva restrita fundando a vida privada e íntima, característica da era burguesa.
Estes casamentos realizados por amor passam a apresentar, a longo prazo,  um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O  bem-estar familiar  passa a depender deste maravilhoso  ‘ninho’ e  a mulher, promovida ao papel de mãe, ganha as atenções e a reverência da sociedade.O amor materno passa a ocupar um espaço jamais conquistado anteriormente na história da humanidade. O corpo e o coração materno  passam a ser o paraíso originário transformando a mulher-mãe em fonte de cuidados da qual depende toda a educação e o futuro dos homens. Sendo condição de sobrevivência e indispensável à educação da criança, o amor materno concede às mulheres  um reconhecimento social importante. Mas se a influência materna passa a ser decisiva para a criança, os erros e falhas infantis passam a ser fracassos de sua função de mãe.
Estamos diante do momento histórico em que a infância é inventada em um compósito entre a idéia de um tempo feliz protegido pelo amor dos pais e pelos cuidados de uma mãe amorosa e a preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. No plano social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à criança, promovendo o desenvolvimento de leis e de uma infinidade de setores que de forma gradual, passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do futuro adulto. 
O ideal de amor romântico que continua a regular as relações entre os homens e as mulheres, começa a se articular a este estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança e inaugura um prolongamento deste ideal de felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização desta felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais sustenta-se nesta possibilidade de assistir a seus filhos transformarem-se na imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna sustentado por esta família.
Nascida neste caldo cultural, a psicanálise se põe a desvendar este particular contexto familiar  e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos  das relações entre mãe,pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar o bebê possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de  obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo,que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente  para dar lugar  às infinitas condições a que  ela terá que se submeter mas  que tentará evitar. É neste  jogo amoroso singular entre ela e seus cuidadores que se construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor incondicional  permanecerá na aspiração  de um reencontro amoroso futuro. O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um ideal para o eu.
A família assume um papel primário na transmissão da cultura e das gerações, mas  ao mesmo tempo em que é fonte de normalidade é palco das piores patologias. As  funções parentais passam a ser cada vez mais alvo de cuidados públicos. De um espaço totalmente privado, a parentalidade passa a ser praticamente  pública. Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família  se torna o centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas características e especificidades para criar todos os tipos de serviços, cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que auxiliem o desenvolvimento de seus membros.
À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções parentais  tornam-se  maiores e mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em que sua subjetividade se constitua e  cumprir  a função simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.
 A  invasão do olhar público revela o avesso e a fragilidade desta estrutura familiar burguesa. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam corretivos, a psicanálise entra pela porta dos fundos ao revelar seus vários descompassos. Um deles era  a falsa moral e as limitações que a cultura burguesa impunha à vida sexual de todos, mas principalmente das mulheres. Sendo uma sociedade centrada na autoridade patriarcal as leis de recato sexual pesavam principalmente para as mulheres, para quem qualquer exposição de  sensualidade era motivo de desconforto. Aos homens era permitido extravasarem seus excessos sexuais com mulheres moralmente depreciadas. 
Mas a própria inauguração da junção do amor e do sexo  como condição de escolha dos pares conjugais abria  perspectivas jamais imaginadas para se questionar as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar o tema da sexualidade humana  dos bastidores das vidas privadas ao mostrar que a falsa moral burguesa escondia o temor e a preocupação  da cultura com a incapacidade dos homens gerenciarem o controle sobre seus impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente começa a haver uma subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair por terra o instinto maternal e a raça feminina. Como todos os tabus, o tabu da virgindade feminina revelava o temor de ambos os sexos em relação  à passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. Fica possível compreender a  preocupação social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina para a procriação e para o casamento na tentativa de evitar um excesso sexual perturbador. Acresce-se a isso o fato de ser complicado para os homens a   imagem da mãe-mulher o que induz a uma separação entre a figura da mãe e a figura da mulher sexuada.
No plano do conhecimento humano instala-se  um embate entre o legado das tradições e as rupturas a estas que não cessam de se suceder. Reina o pensamento crítico, as idéias de progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e da ignorância pela  difusão da ciência e da cultura em geral. A conseqüência é a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos, políticos e religiosos que pretendem ora analisar ora criticar a convivência de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondam aos alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucedem às antigas.
Foi a Revolução Francesa, as reivindicações universais por igualdade e liberdade e a afirmação dos direitos iguais entre todos os humanos, homens e mulheres, que derrubou num primeiro momento a hierarquia fundada sobre os discursos tradicionais a respeito das diferenças de gênero. Em reação ao período de desordem revolucionária, a consolidação da ordem burguesa precisou produzir um pensamento que desse conta dos deslocamentos já realizados pelas mulheres no novo campo de forças sociais. O sexo, escreve Laqueur, “foi um importante campo de batalha da Revolução Francesa (...) a criação de uma esfera pública burguesa (...) levantou com violência a questão de qual sexo deveria ocupá-la. E em todo lugar a biologia entrava no discurso”.
Assim, no período em que uma parte da humanidade conheceu possibilidades de emancipação e progresso inusitadas, a ciência e a filosofia trabalharam por manter as mulheres atadas à natureza, enquanto os homens beneficiavam-se de seu novo estatuto de seres de razão. No final do século XIX, as ciências médicas e biológicas trabalham para atender a “demandas políticas imediatas para a criação de sexos biologicamente distintos”, aos quais corresponderiam, é claro, lugares e papeis diferentes “por natureza”. A mulher burguesa não só é mãe por vocação natural, como tem seus desejos sexuais orientados e limitados pelas vicissitudes desta função. Mulheres vocacionadas para o casamento e a fidelidade, pouco interessadas nos prazeres sensuais e capazes de grandes sacrifícios pessoais em favor das necessidades alheias, estas eram as mães de família que a natureza deveria produzir, se nenhum fator patológico viesse desviá-las do projeto original
o parentesco é histórico, contingente e não transcendente e não se distingue das redes de comunidade e de amizade na qual se insere: novas redes de parentesco acenam na cultura atual assim como um novo modelo  de filiação. O gênero pode ser pensado apenas como um devir que estende e subverte os limites do simbólico.O modelo tradicional de pensar a diferença entre os sexos é historicamente construído, e depende do modelo anterior em que a heterossexualidade e dominação masculina eram hegemônicas.

O aumento gradual de um saber sobre si  legitima a construção de uma interioridade e o personagem principal passa a ser a sexualidade.Não apenas a sexualidade genital, mas a que participa na construção do desejo humano, com destaque para seu papel na constituição psíquica da criança e dos conflitos vividos  nas tramas amorosas da infância. O amor dos pais, tão reverenciado, precisa ser na justa medida entre uma erotização do corpo infantil, fonte do  desejo de viver e de amar e  certas rupturas deste estado fusional e primitivo que o auxiliem a entrar na cultura. Na justa medida entre o permitido, o proibido e o prometido, cada um deve poder se desvencilhar das malhas do submetimento, da alienação e da fascinação e construir sua rede de relações  para buscar um novo lugar no mundo.
No  pensamento moderno cabe a cada indivíduo construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não depende mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em novos sentidos para a existência humana  que acenem com uma maior satisfação, prazer e conforto.  A conquista desta individualidade autônoma se reflete dentro do círculo doméstico fazendo com que o poder familiar vá se restringindo e os interesses pessoais de seus membros aumentando em consonância com  uma exigência de simetria e liberdade entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres  ganham espaço público e com o advento  dos métodos anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre, ao aborto e ao divórcio.
Cada um se  torna o único ou o principal  regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las. Sem as  amarras  das  regras de aliança,com a flexibilização das interdições religiosas e morais e o aumento da mobilidade espaço-temporal e social,  homens, mulheres, homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados apenas em escolhas afetivas  e mantidos por acordos e negociações.Esta liberdade incide tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das relações quando estas  se mostram impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados. 
Muda a  realidade social,despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas. A formação dos pares conjugais  fica independente do sexo ou da  orientação sexual de cada um. O  fim dos constrangimentos e das regras coercitivas sociais  mantém apenas o amor como  eixo central da constituição das novas parcerias conjugais e o preço desta aventura incerta é a redefinição de uma ética e uma estética do convívio amoroso. Com relações amorosas mais efêmeras  os indivíduos  passam a formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que altera de forma significativa a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos. A função da parentalidade  passa a questionar as normas sociais que a regulamentam voltando a ser objeto de análises e  busca de ajustes dos antigos saberes sobre o papel da família na vida da criança.
Os métodos anticoncepcionais e a biogenética rompem  a antiga junção casamento-sexo-procriação. A concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só tem o reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem uma função parental. Novos modelos conjugais  homoparentais ou monoparentais  assumem uma função de parentalidade.
A partir dos novos casamentos que cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os núcleos familiares precisam  receber os filhos de um ou ambos os integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma criança pode  pertencer simultaneamente a mais de um grupo familiar e sua  circulação  entre eles  pode ser constante e organizada ou irregular e informal. Alguns núcleos formam verdadeiras redes que agregam ex-cônjuges, antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.
 A filiação passa a não ser mais definida pelos laços sanguíneos, legais ou residenciais e sim  por uma filiação social ou sócio-afetiva, fundando um grupo doméstico cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro e de ambos. Um novo panorama familiar e seus múltiplos e inéditos arranjos é inaugurado.
 A escolha do par conjugal não depende mais de sexo ou gênero. Embora o critério seja o amor e a aposta seja de futuro, diminui o acento na promessa de amor eterno ou na indissolubilidade da relação. O vínculo amoroso permanece enquanto é possível manter os acordos e estes, mais do que nunca demandam contínuas  negociações e pactos de cumplicidade. Ao contrário da estabilidade formalizada à priori nos antigos casamentos, tais pactos dependem exclusivamente da lealdade e do comprometimento mútuo, o que permitirá ou não aos pares compartilhar uma busca de metas a longo prazo que implique um adiamento de satisfações em troca de um futuro.
Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de parentalidade também passa a depender apenas de um comprometimento. O lugar do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais legítimos nem por um homem e por uma mulher. A "função paterna" ou "função materna"  não implica na presença de um homem e de uma mulher. São funções de cuidados e responsabilidade com o desenvolvimento físico e psíquico do bebê e com sua inserção na cultura. Embora a família tenha  mudado sua  feição e desconstruído  seu antigo modelo, o exercício destas funções continua sendo essencial e necessário para a sobrevivência da criança.
A horizontalização das relações familiares faz com que o antigo poder patriarcal passe a ser compartilhado entre os diferentes membros. As gerações se aproximam nos modos de existir. Pais e filhos vestem roupas semelhantes, frequentam os mesmos lugares, consomem os mesmos objetos e fazem trocas antes pouco imaginadas, dando um novo colorido ao convívio familiar. O mundo contemporâneo ganha pais mais amorosos e mais preocupados em proporcionar um ambiente protegido aos seus filhos. O contraponto é que aumenta a tentativa de evitar quaisquer frustrações a estas crianças. A  responsabilidade e a autoridade  que o exercício das funções parentais exige muitas vezes é vista como um lugar pouco atrativo e constrangedor  pelos pais e muito combatido pelas crianças, embora seja essencial para que possa ser confirmada  a diferença geracional que permite legitimar e sustentar a existência de cada criança.
 Homens e mulheres, pais ou mães, biológicos ou adotivos se vêem diante do desafio de assumir uma função parental. Como se responsabilizar por este lugar de acolher, criar e educar as crianças que lhe cabem? Nas famílias  recompostas em que convivem filho(a)s de outros relacionamentos ou pais e mães adotivos o exercício da função de pais requer acertos, pactos e alianças que legitimem estas parentalidades  afim de que as crianças possam assumir suas  filiações.
Mesmo mantendo o amor como base, o  interior  de qualquer grupo famíliar não é  só paz e harmonia. A dinâmica entre os membros familiares é complexa  e depende de uma rede de sentimentos e fantasias que se cruzam.Os excessos são em geral patológicos, as justas medidas difíceis e a tarefa de construir um espaço que possa suportar os conflitos entre as expectativas e os fracassos, os sentimentos de amor e ódio, de acolhimento e autonomia, é infinita.
Apostamos que nossas crianças possam herdar nossos anseios  e insatisfações.Isto faz com que todos se esmerem em preparar cada vez mais e melhor seus infantes de olho no sucesso que eles podem vir a ter, satisfazendo  sonhos e aspirações.É nesta conjuntura  que surge a adolescência, formada por estas crianças depositárias de nossa esperança de felicidade e realização. Algo natural já que a adolescência é o ideal coletivo de todas as culturas que desprezam a tradição e cultuam a liberdade e a irreverência.
Mas a adolescência vista como um ideal pela cultura não resolve os conflitos e aspirações dos adolescentes, aumentando o seu desamparo e o tempo de espera para sua inserção na idade adulta. Eles passam a ser vitimas da contradição entre o ideal contemporâneo  de autonomia e a imposição da continuação de sua dependência.Sentem-se aptos a ter sexo, amor e trabalho, mas lhes é imposto uma espera para produzir, ganhar e amar.
Entre outras funções, o casal parental serve como porta-voz das crenças, ideais e proibições que fazem parte de um discurso social amplo, ao qual também estão assujeitados. A mãe e o pai serão os primeiros a veicular inconscientemente significações culturais introjetadas em um determinado contexto histórico; por exemplo, as modalidades de alimentação do recém-nascido, o período do desmame, o controle de esfíncteres e a permissividade ou controle diante do mundo. A libidinização corporal, a educação sexual e as expectativas identificatórias são significativamente marcadas pelos ideais e pelas proibições culturais, assim como a definição de determinados papéis paras meninas e meninos e da atividade ou passividade das atitudes em função do gênero. A criança tem por missão perpetuar a linha geracional, assegurando a continuidade da identidade familiar e o fortalecimento do espaço narcísico. Ela deve partilhar enunciados históricos familiares, por vezes às custas de sua integridade psíquica, já que esses enunciados eventualmente podem contradizer suas próprias  percepções internas e externas. Neste sentido, cada sujeito retoma o discurso do “mito fundador do grupo”, que inclui ideais e valores culturais, e é fundamental para a problemática do grupo familiar transculturado. Seria ingênuo afirmar que as novas configurações familiares provocam muitos males atuais, num moralismo simplista e redutor. É certo que a passagem de um modelo de referências mais rígidas e autoritárias para este em que reina absoluto o amor parental, deixou os pais desorientados em relação ao compromisso e a responsabilidade que lhes compete na tarefa de auxiliar seus filhos a se tornarem gente. As novas gerações de pais, seguindo a ideologia individualista e a alta oferta de auxílios para a infância , tentam evitar os erros das gerações anteriores, buscando modelos mais  perfeitos e às vezes  negando o legado de seus pais. Muitas vezes, segundo Khel, instala-se certa nostalgia dos modelos anteriores  e um sentimento de dívida para com a idealização deste modelo. Mas as  novas configurações podem ser enriquecedoras para todos, ampliando os leques identificatórios para as crianças e possibilitando aos adultos criarem novas formas de exercício da tarefa de transmitir aos mais novos sua experiência singular de humanidade.

O pai tinha a autoridade de senhor político e religioso, tinha o poder de fundar e garantir. O poder e a autoridade do pai eram hegemônicos tanto no espaço público como no espaço privado da família, reinando sobre a mulher e o destino dos filhos. Esse poder se exercia não apenas pelo exercício da força, seja física, seja militar. É claro que o mais forte tem o poder de submeter o mais fraco à sua vontade, mas essa forma de poder não lhe confere o poder da autoridade legítima, o poder de lei. A chamada “lei do mais forte” é uma distorção do conceito de lei simbólica. É a diferença que existe entre dizer “eu sou a lei” e ser representante da lei. Ser representante da lei é estar submetido à castração também.
Submeter o outro à própria vontade, seja homem, seja mulher, sempre foi
e sempre será o impulso intrínseco do ser humano. Dadas as condições, sem a perspectiva da proibição e de punição, a exigência pulsional é de submeter oudestruir a tudo e a qualquer um que se oponha à sua satisfação
A clínica com crianças nos mostra o quanto pode ser difícil constituir-se como sujeito sem contar com pais da realidade que dêem suporte a isso. Assim, podemos pensar que a forma como um pai da realidade se apresenta não é indiferente para o filho. O pai pode apresentar dificuldades de encarnar um pai imaginário tirânico, necessário num dado momento da constituição do sujeito.
Momento de passagem do estado soberano para o estado moderno, em que o poder que emana do rei dá lugar a uma forma de poder anônimo, incidindo sobre os corpos, que é o poder disciplinar,ao qual o rei, destituído de suas insígnias, é, ele também, submetido. A disseminação de dispositivos disciplinares faz ressaltar, da norma instituída,aquilo que é sua exceção, ou seja, os pontos de resistência ao poder disciplinar que dão origem à produção de anomalias, justificando a criação de novas disciplinas que, de forma especial, visam à normalização dessas anomalias.No contexto dessa relação de poder, ocorrem as condições para o surgimento da psicanálise, a partir de um processo que leva à implantação do modelo familiar na psiquiatria, já no final do séc. XIX. Na medida em que a família é ela própria psiquiatrizada, tornando-se sua soberania permeável ao discurso disciplinar, uma relação estreita é estabelecida entre o espaço familiar e os dispositivos disciplinares: de um lado, a família se encarrega de designar o indivíduo anormal no seu interior, aquele que não se submete ao regime disciplinar que passou a reger também a vida doméstica; de outro, a disciplina psiquiátrica acolhe os anormais apontados
pela família sob a promessa de refamiliarizá-los, de devolvê-los dóceis
à disciplina reinante no seio da família. É nesse ponto que se constitui o que Foucault chama de função-psi, descrita como um discurso que assinala o fracasso da soberania familiar, evidenciado no caráter indisciplinável do indivíduo. A psicanálise funda-se aí, nesse modelo da psiquiatria familiarizada. tanto aquela calcada na referência à soberania do pai quanto a que investe de poder a figura da mãe preservam a marca familiarista que reenvia à disciplina, reforçando o jogo estabelecido entre soberania familiar e funcionamento disciplinar.
A modernidade, ao proporcionar o advento de um sujeito centrado na razão individual , um sujeito soberano em relação a suas certezas e suas representações, não tutelado por Deus e suas instituições terrenas, estabeleceu uma configuração subjetiva muito particular no que diz respeito à relação entre o eu (identificado com a razão e a consciência) e o inconsciente. Meu interesse, como o de muitos psicanalistas hoje em dia e também historiadores e filósofos, é entender como é que, do sujeito solar, racional e auto centrado que a modernidade constituiu, surgiu o sujeito do poema de Ungaretti, que percebe seu eu como um mísero barquinho entregue às correntes e às tempestades do oceano libidinoso que ele não controla.
A modernidade contém tanto “civilização” quanto “barbárie”. Contém os sistemas de pensamento da certeza absoluta, que produzem fanatismo, intolerância e não comportam a alteridade, e os sistemas de pensamento que não buscam a totalização e suportam a falta de uma verdade absoluta: este é o pensamento que se abre para a alteridade. A modernidade contém os dois sistemas de pensamento, da dúvida e da certeza, que vou qualificar como a civilização e a barbárie, já que são as certezas absolutas que justificam a intolerância e a violência em relação ao diferente.

O ser masculino funcionava, por sua vez, como porta-voz de ideais e prescrições de uma sociedade e de uma cultura que punham ênfase nas instituições e nos grupos em detrimento dos indivíduos. Na verdade, os anseios individuais não eram contemplados. E os movimentos filosóficos, artísticos e científicos atestam a luta pelo ideal, inaugurado já no final do século anterior pela Revolução Francesa, de “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Atributos como “sangue”, casta, posição na ordem familiar, profissão transmitida de pai para filho através das gerações, etc, perdem consistência ontológica com a mobilidade de classes estabelecida pelo capitalismo; do mesmo modo as certezas conferidas pelo reconhecimento da comunidade em que as pessoas passavam suas vidas, as certezas morais e cognitivas transmitidas pela tradição, a segurança de um destino preestabelecido pelo projeto de um Deus onisciente, todas elas desmancham-se rapidamente no ar das sociedades industriais, laicas, urbanas – modernas, enfim.
Onde falta o ser, proliferam os discursos. O homem moderno é um pesquisador minucioso das coisas humanas e um autor compulsivo de sua própria biografia. Confessa-se, descreve-se, explica-se, tenta fixar em palavras faladas ou escritas a permanente incerteza sobre quem ele é. O ser não nos é dado; o ser se constrói, ao longo da vida. Construir o ser é constituir diferenças. A diferença entre homens e mulheres, objeto de investigações filosóficas desde a antiguidade, foi investida de uma enorme quantidade de saberes que procuravam encontrar na natureza dos gêneros alguma espécie de verdade sobre o ser.

O modelo idealizado de família voltada para a produção de bem-estar, em que deveria bastar ter seu   fundamento no amor entre os membros, demonstra quase sempre ser um terreno fértil na produção de violência psíquica. Sendo a razão de seu viver e fruto de um alto investimento dos pais, a criança passa a  carregar inúmeras e muitas vezes descabidas expectativas por parte destes. A dívida amorosa pode se converter  em sentimentos de culpa tanto pela incapacidade de cumprir com as expectativas quanto pela sensação de não amá-los tanto quanto esperam.
Paradoxalmente, apesar da imensidão de saberes que a ciência produziu e continua a produzir dirigido aos cuidados e às necessidades do bebê e de seu futuro, e a profusão de cartilhas variadas,  famílias, pais e crianças seguem meio órfãos  a buscar amparo em novas redes de sustentação. É certo que o imaginário cultural coloca a criança e a infância no centro de suas preocupações presentes e  futuras e cobra modelos idealizados das funções parentais.Também são  inúmeras as tentativas de instrumentalizar estas funções ou  oferecer suplência a elas.
Apesar de suas contribuições importantes, muitas já incorporadas ao imaginário social, um  século de psicanálise  e a revelação da existência de um  inconsciente humano, de motivações escusas e de difícil acesso, não conseguem impedir  que o psiquismo humano resista insistentemente à emergência deste inconsciente, nem que novos sintomas psíquicos sigam sendo produzidos diante do  que escapa a interpretação humana.
 Ao que parece, o projeto moderno da busca da felicidade e de um bem estar geral não encontra soluções  definitivas, mas segue construindo  novas e desafiadoras experiências. A despeito deste destino conturbado, o ideal de amor romântico mantém-se como norte na formação dos pares conjugais e na relação dos pais e seus filhos, mesmo ocupando um lugar  fetichizado ao não esconder suas promessas ilusórias.Também a família com suas novas facetas, permanece sendo o espaço que pode propiciar a cada rebento tornar-se gente grande, construir um futuro e um lugar no mundo para ser reconhecido por seus pares. Uma visão idealizada, mas necessária para que se possa imaginar um mundo futuro em que  indivíduos possuam um lugar de construção de si e de transmissão dos valores geracionais e culturais.
Usufruindo de um mundo novo tecnológico, com confortos e benesses jamais vistas,o novo sujeito e seus novos valores inauguram uma nova família. Novos tempos, novas mulheres novos homens.
Nasce uma nova subjetividade mais ancorada na exterioridade da imagem corporal e na fruição das sensações físicas. São novos ideais, novos modelos de pensamento, novos repertórios de condutas,novos jogos de linguagem, novos sentidos ou verdades que dão consistência ao imaginário social .Com a ciência como geradora de verdades e sentidos para o mundo e para o individuo e a explosão das tecnologias cognitivas que tem transformado e redesenhado a nossa visão do mundo, o modo como os indivíduos se subjetivam se modificou, inaugurando um discurso em que a dimensão biológica começa a sobrepujar a psicológica. Ao lado de tristezas, apatias , temores, surgem depressão, pânicos, distmia. A fronteira entre privado e publico fica tênue e o mal estar tende a se situar no campo da performance física ou mental, expressando muito mais as incompetências, as insuficiências e as disfunções.O bem estar é um dever e o mal estar sinal de incompetência.Por outro lado este quadro torna mais visível  que nos constituímos pelos laços sociais e que nossa autonomia é relativa e implica dependências importantes.A ação humana vai se livrando dos limites de sua biologia retirando cada vez mais a “naturalidade” das concepções sobre o humano. Mas a psicanálise continua interrogando a experiência humana. Todos setores que se cruzam na pretensão de estudar o humano necessitam refletir necessariamente sobre o individuo, a família, a fronteira entre privado e publico. Mas a despeito de todo o progresso do conhecimento algo de humano nos escapa: a natureza estorva a cultura, o gozo insiste sobre as leis.
Nossa ética é uma ética baseada na  individualidade e são nossos afetos que fundamentam hoje nossas ações morais.Uma cidadania emocional que convoca a cada um sentir o que o outro está sentindo. A ética viabiliza o convívio entre os indivíduos.

Curso ministrado em Sorocaba 2011


A potência da psicanálise como dispositivo para (o fazer) político. Gisela Haddad *


A potência da psicanálise como dispositivo para (o fazer) político.
 Gisela Haddad *

Um pouco da história do grupo
O Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância resultou da parceria entre o Departamento de Psicanálise e o Programa Einstein na Comunidade Paraisópolis (PECP) iniciada em 2012. Em atuação na comunidade desde o ano de 1998, o PECP foi idealizado pelo Departamento de Voluntários do Einstein para ser um Centro de Atenção Primária voltado para a prevenção e promoção de saúde, com programas de atendimentos voltados para a população de mães, bebês e gestantes da comunidade. Recentemente, porém o PECP passou a oferecer assistência médica em subespecialidades pediátricas para a Rede Básica de Campo Limpo e em seu ambulatório recebe crianças de 0 a 14 anos que são encaminhadas pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região para o serviço médico e multiprofissional (psicologia, assistência social, assistência materno-infantil, fisioterapia, fonoaudiologia, psicopedagogia, nutrição, terapia ocupacional). Apenas o PAG (Programa de Atenção à Gestante) e o PAB (Programa de Atenção ao Bebê) se mantiveram como grupos de atenção primária, sustentados pelo voluntariado do HIAE.
Deste grupo, que se reúne mensalmente no Sedes, algumas pessoas compõe o que chamamos de grupo de apoio e outras realizam os atendimentos de gestantes e mães de bebês no PECP. Praticar a clínica psicanalítica em uma instituição voltada ao atendimento da população de Paraisópolis nos coloca questões que guardam certas especificidades. A começar pelo fato de esta ser uma instituição idealizada e mantida pelo Departamento de Voluntários do Einstein, que segue um modelo de gestão que visa a eficiência de seus serviços, com foco em qualidade e segurança (em 2013 recebeu o certificado internacional de acreditação na área de saúde) e com isso oferece um plus em sua organização nem sempre possível em outras instituições. Por outro lado, nesta escolha de modelo de gestão, está implícita a expectativa de resultados que precisam ser transformados em estatísticas favoráveis aos critérios de avaliação destes certificados. Quando iniciamos nosso trabalho no PECP a equipe contratada de psicólogos, embora jovem, nos surpreendeu positivamente por sua atuação tanto pelo incansável trabalho de equipe como pela preocupação permanente em ajustar e debater entre si e com os outros profissionais os atendimentos realizados e seus impasses. Um trabalho sério e comprometido que, tendo como norte as premissas psicanalíticas, pretendia construir novos e mais promissores caminhos de atuação institucional e seus dispositivos clínicos. Na passagem de 2015 para 2016 mudanças radicais culminaram com a demissão de vários profissionais principalmente das áreas de psicologia, fonoaudiologia e enfermagem que apontavam para um novo modelo de gestão, em que as equipes perdiam grande parte de sua autonomia e presença em programas. Durante o ano de 2014, por exemplo, pudemos participar do grupo de atenção à gestante, uma experiência bastante rica, que nos incentivou a construir balizadores clínicos para gestação, mas que precisou ser interrompida.
No entanto, a instituição oferece recursos importantes para a realização dos atendimentos desta população, tanto no que se refere às equipes multiprofissionais quanto às oficinas e cursos para as mães, assim como alternativas de programas esportivos para as crianças. Seu serviço social auxilia na busca de creches, orienta a população na resolução de diferentes problemas e realiza visitas domiciliares quando necessário. A população local respeita o PECP, sabe que é um lugar em que se oferece um serviço de qualidade e os que ali chegam são os que apostam/desejam melhorar suas vidas e a de seus filhos.
Desde que iniciamos os atendimentos no PECP vimos definindo e redefinindo nosso escopo de trabalho entre nós e junto à equipe de psicólogos contratados, e temos buscado pensar as particularidades da clínica psicanalítica que se pratica com uma população em vulnerabilidade social e situações-limite. Isto significa refletir sobre questões amplas como as relações entre subjetividade/ pobreza ou subjetividade/violência, o lugar social da maternidade, as configurações de conjugalidade e de famílias. Mas também sobre a frequente ausência de cuidados básicos enfrentados com arranjos muitas vezes precários tanto físicos quanto psíquicos (embora às vezes criativos) ou sobre os relatos de histórias de abandono, maus-tratos e indiferença. Todo este cenário nos impõe permanentemente uma cuidadosa análise desta realidade, despidos de preconceitos, o que para muitos de nós significa fazer um longo trabalho de luto das idealizações que cercam não só a maternidade e a gestação, mas toda a diversidade dos arranjos de vida, para que possamos alcançar a escuta necessária para acompanhá-las.
Estamos, portanto diante de um trabalho delicado, que ao mesmo tempo exige um comprometimento com itens fundamentais como ajudar a conquistar a autonomia e a responsabilidade na condução da própria vida, visando um tornar-se agente da própria história. Para isso tem sido fundamental a compreensão do espaço urbano da periferia, das possíveis relações entre os sujeitos e a comunidade, com as escolas e a cultura local, com as ofertas de trabalho, ou seja, com seus recursos e obstáculos. Nossa intervenção vai muito além do modelo individualizado, ao fazer a palavra circular em conjunto, ao lado da criação de estratégias e alternativas possíveis que viabilizem saídas ao desamparo ou à violência. Convite permanente para o abandono da lógica racional e a abertura de um espaço para uma terceira via, que preenchida por fantasias, sonhos, romances e tudo o que nos faz suportar melhor a perda das ilusões de perfeição e os infortúnios da vida, nos permita conviver com a dureza de nos saber imperfeitos, sem respostas certas para viver, e com muitos limites e insuficiências.
Um pouco da história da comunidade
Em 2012, ano em que iniciamos nossos atendimentos na comunidade de Paraisópolis, tivemos a oportunidade de visitar, no Sesc Pompeia, a mostra Paraisópolis, Uma Cidade Dentro da Outra, um trabalho denso e tocante da fotógrafa Renata Castello Branco, que durante dois anos,  com a ajuda do guia Negro San - morador desta comunidade -“mergulhou” em pelo menos 400 casas cujos moradores aceitaram seu convite, e produziu 95 registros fotográficos do interior destas casas , além de imagens e vídeos com depoimentos sobre suas vidas. Na ocasião tivemos o privilégio de conversar com a artista que, ainda sob o impacto deste trabalho, contou-nos como este a fizera construir um novo olhar sobre a vida destes moradores, sua particular e tão colorida estética com as combinações de objetos, a organização de seus espaços muitas vezes mínimos, quase sempre a ostentar enormes televisões de plasma ou sofisticados equipamentos de som. Cada casa um universo e uma história, com seus caprichos, ideais e valores, que acabam compondo uma narrativa sobre a comunidade.
A favela de Paraisópolis, a segunda maior de São Paulo existe desde 1921 com a instalação de famílias em um terreno particular que daria lugar a um loteamento para casas de classe alta, mas foi a partir de 1947, com as obras do Estádio do Morumbi e do Hospital Israelita Albert Einstein, que um grande número de trabalhadores, nordestinos em sua maioria, passaram a ocupar os lotes vazios do lugar, construindo seus barracos e dando vida ao que hoje é considerado um bairro. Dividido em cinco regiões - Centro, Antonico, Brejo, Grotão e Grotinho – enquanto o Centro é urbanizado e asfaltado, nas regiões mais pobres como o Brejo, o Grotão e o Grotinho predominam as vielas estreitas e os barracos de madeira, às vezes de papelão, muitos construídos encima do esgoto.
“Vizinha de porta” do Morumbi, Paraisópolis que hoje possui quase 90 mil habitantes, sempre esteve rodeada de condomínios luxuosos, o que de certa maneira contribuiu para que os moradores da comunidade tivessem oportunidades de empregos, ao oferecer serviços de babás, empregadas domésticas, motoristas, seguranças, jardineiros, etc. No pacote das particularidades desta comunidade existem ainda 45 projetos sociais entre associações, ONGs e instituições filantrópicas. Além do PECP, a ONG Meninos do Morumbi, um curso preparatório para vestibulares da Universidade Mackenzie, um Espaço Esportivo e Cultural Bovespa, uma Escola da Comunidade mantida pelo Colégio Porto Seguro, entre outros com áreas de atuação em saúde, educação, cultura, esporte e serviços assistenciais como doação de enxovais e entrega de alimentos. Uma favela atípica seja por ser a única de São Paulo instalada em uma área que não pertence ao poder público ou a um pequeno número de proprietários, ou ainda por possuir desde 1988 uma importante União de Moradores com eleições para presidente a cada dois anos, que funciona como uma prefeitura local e foi responsável pela criação em 1994 do Fórum Multientidades que realiza uma reunião mensal com representantes de todas as organizações sociais do bairro com o objetivo de estabelecer uma comunicação entre estas, seus serviços e a população. Em 2009, com um projeto do arquiteto Franklin Lee para uma nova sede (ainda não realizado), idealizado em conjunto com a população da comunidade, a União dos Moradores ficou entre os 12 finalistas do Deutsche Bank Urban Age Award, prêmio que seleciona projetos que beneficiam comunidades e sua população local, com o objetivo de aprimorar seus ambientes urbanos. Existe ainda, desde 2013 um roteiro oficial chamado “Paraisópolis das Artes” que leva as pessoas a um passeio pelos principais pontos de referência locais, um contato com a cultura do bairro, destacando artistas e lugares que contribuem para o que eles chamam de Nova Paraisópolis. Com duração de 3 horas, é possível visitar a Oficina do Berbela, artista que constrói obras de arte a partir de sucatas e ferros descartáveis, a Casa de Pedra do escultor Estevão, conhecido como o Gaudí brasileiro, o Ballet e a Orquestra local e o incrível mural da bailarina de Eduardo Kobra, a Rádio Comunitária e o campo de futebol do projeto Craques do Amanhã. Sabemos ainda que em 2015, Paraisópolis foi alçada a um inédito protagonismo quando a rede Globo colocou no ar a novela I love Paraisópolis. Uma verdadeira cidade, cheia de contrastes, mas também cheia de vida. Tem sido através destas inúmeras possibilidades de se olhar Paraisópolis, que nossa equipe constrói continuamente uma história do lugar pela escuta das histórias das vidas das pessoas com as quais cruzamos em nosso trabalho, e que em geral nos surpreende seja pelo impacto das faltas, seja pelo colorido e força do pulsar da vida. Um encontro que nos faz confrontar com nossa individualidade por nos forçar a fazer uma passagem de um mundo ordenado conforme certa lógica, para um diferente, com sua lógica particular. Pensamos ser neste espaço “indeterminado” que podemos experienciar novas formas de intersubjetividade.  
O fazer político
São inúmeros os psicanalistas, brasileiros inclusive, muitos de nossa comunidade Sedes, que não se furtam em articular psicanálise e política ao refletirem permanentemente sobre o mundo “interno” articulando-o ao que acontece em torno de si e do resto do mundo. Se chamarmos de política toda a ação humana que produza algum efeito sobre a organização, o funcionamento e os objetivos de uma sociedade, o psicanalista tem como função princeps a de agente de transformação social, e a clínica psicanalítica pode ser considerada um modo de ação e relação que pretende transformar a condição das pessoas. Podemos destacar pelo menos dois vetores que fazem da clínica uma prática política: o seu compromisso com o desejo,  uma vez que este é sempre um espaço social e político a conquistar, e o fato de que a clínica psicanalítica visa mudanças. Além disso, um tratamento não pode ser realizado de modo desinteressado ou neutro, e ao escutar o sofrimento de alguém não visamos somente suas dores, mas principalmente as estratégias de existência associadas a essas dores, os jogos de poder e as regras que os sustentam. Associar a prática clínica com a prática política significa dizer que ela é necessariamente comprometida.
A equipe Sedes, junto à equipe multidisciplinar que realiza os atendimentos na comunidade Paraisópolis, busca escutar os sujeitos e os modos como são afetados, mas também elucidar o discurso e as práticas sociais para problematizar os modos como estes afetam a subjetividade. Na prática isto significa conhecer o espaço urbano e compreendê-lo nas relações sociais e familiares que o permeiam assim como pensar as situações críticas mais recorrentes em que os sujeitos ficam expostos e criar dispositivos para trabalhá-las.
Como nestes espaços é mais frequente a ausência de redes sociais e familiares, que às vezes nem chegam a ser construídas ou sofrem pelo excesso de violência e/ou desamparo, as alternativas de entrada para o mundo do tráfico e do crime ou para as inúmeras opções de igrejas evangélicas acabam se tornando comuns. Além disso, a ausência do trabalho formal associado à penetração do tráfico de drogas e outras atividades ilícitas criam uma porosidade entre o mundo formal e informal, entre o lícito e o ilícito.
Uma breve pesquisa em trabalhos publicados sobre atendimento institucional ou com populações em situação de risco, realizados por psicanalistas em conjunto com profissionais de outras áreas, nos mostra que nas últimas décadas tal prática não só aumentou como foi responsável pela preocupação em construir dispositivos clínicos pautados pela escuta do inconsciente que se configurem em uma contribuição da psicanálise às situações sociais críticas. Podemos afirmar que este tem sido nosso norte.
Em nossos atendimentos somos confrontados frequentemente com fatores como a vulnerabilidade social, a dificuldade econômica, a falta de alternativa, a delinquência, as drogas, o risco de morte, o que nos leva a refletir sobre as possibilidades e limites da escuta analítica, diante deste cenário de violência e precariedade.
Por isso ao lermos alguns trabalhos publicados, identificamos em nossa clínica esta preocupação em construir um projeto terapêutico para cada atendimento, fosse ele um atendimento individual ou familiar, a partir de certas “ancoragens” destes sujeitos com a vida, mas principalmente na possibilidade de auxilia-los a se apropriar de seus recursos, ainda que parcos ou frágeis, viabilizando sua inserção e visibilidade social ao encontrar saídas novas de como construir uma vida verdadeiramente autônoma. Um trabalho coletivo e compartilhado em que o inédito pode ser bem-vindo no modo como cada profissional encontra alternativas de percurso ou meios de ajudar os sujeitos a criarem soluções próprias.
Estamos falando de pequenas conquistas, como poder se reconhecer como uma mãe cuidadosa que pode oferecer novos horizontes/perspectivas para o filho por vir ou para aqueles que já existem, como alguém que possui uma inteligência acima da média e pode por isso fazer o curso técnico de contabilidade desejado, escolher um trabalho ou um curso que sempre fez parte de seus sonhos, se “separar” de seu passado violento ou de sua família de origem, quando esta é promotora de crueldades ou pertence ao mundo do crime, enfim de contribuir para que cada um possa cuidar de sua própria vida e buscar um futuro para si. Nesse sentido sabemos que quando se abre um espaço de escuta para o sujeito é possível para ele falar das dores do seu viver, passo importante para a promoção de novas significações.
O trabalho com populações que vivem mais próximas da precariedade, da violência e do desamparo nos convoca a encarar a vida destas pessoas ou de suas famílias sem julgamentos morais ou normativos o que exige que enterremos muitas das idealizações que construímos em torno de uma vida considerada normal. Fica claro também que para ajudarmos a alguém a se emancipar e ganhar autonomia, é de suma importância discriminar o que deve ser incentivado, o que precisa de parâmetros e limites claros e o que necessita ser vetado. Para nós isto seria um fazer político, uma tarefa civilizatória, humanizadora e amorosa que exige menos competências intelectuais e mais conhecimento sobre si, sobre o outro, sobre o sentido/valor da vida de cada um, sobre a importância de se deixar afetar e de suportar /respeitar o estranho ou desconhecido. Algo que permita uma abertura ao negativo para escutar as dores que não podem ser sofridas, ou suportar o que não consegue ser dito, apenas atuado, e a intolerância/estranhamento a este excesso. Um processo que torne possível que estas pessoas passem a enunciar uma leitura própria de si mesmo e conquistem um lugar no mundo, ao invés do silenciamento que as mantém excluída.
Neste sentido quando o trabalho em instituição permite a constituição de projetos que possam ter a medida das possibilidades de cada um, projetos estes que visem possibilitar uma ampliação das chances de uma vida mais autônoma e integrada socialmente, este trabalho, de certa forma, assegura e/ou ajuda a estruturar a continuidade do social. Seus atores (equipe multidisciplinar e pacientes) ajudam a construir uma rede ao mesmo tempo subjetiva e social em um espaço de construção coletiva em que possam ser discutidos os impasses vivenciados, os limites do trabalho, o esgotamento dos recursos disponíveis, bem como as experiências de potência e os avanços realizados.
Referências Bibliográficas
Anuário A Rede de Inclusão Digital 2010/2011- http://www.revista.arede.inf.br/site/images/anuario2011/Anuario_ARede_2011.pdf
BROIDE, J. & BROIDE, E. A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções, São Paulo: Editora Escuta, 2005
CASTRO, L.O. Uma análise dos sentidos da não-participação para os moradores de uma favela em São Paulo nos serviços prestados por organizações do terceiro setor. Tese de mestrado em Psicologia Social PUC-SP 2009
GONDAR, J.  A clínica como prática política. Lugar Comum No19, pp. 125-134

* Este texto foi construído com a colaboração dos membros do Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância: Anna Maria Alcântara do Amaral, Anna Mehoudar (coordenadora), Daniela de Andrade Athuil Galvão de Sousa, Eva Wongtschowski, Gisele Senne de Moraes, Lucia Helena Navarro, Mira Wajntal, Rubia Zecchin e Yone Maria Rafaeli

Gisela Haddad é membro do Departamento de Psicanálise, integrante do Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância, do Grupo Generidades, da Revista Percurso e do Blog do Departamento. É mestre em Psicologia Clinica e autora do livro Amor e Fidelidade, Coleção Clínica Psicanalítica da Casa do Psicólogo (2009) Amor (Coleção Emoções, Editora Duetto – 2010).









Encontros Amorosos: amor, paixão e desejo na cultura moderna
                                                                                     
                                                                                      Gisela Haddad

Resumo: O texto tenta refletir sobre as implicações das mudanças nas questões que giram em torno do amor e do sexo na constituição das uniões amorosas. Resgata de forma resumida as coordenadas históricas e culturais que organizaram a vida amorosa desde a modernidade e sua articulação com os mecanismos de construção de uma particular subjetividade. A literatura romântica oferece um retrato tanto da exaltação do amor e dos destinos trágicos das paixões como do debate inédito sobre o sexual humano, além de promover a construção de cenários de encontros, desencontros e experiências amorosas cujas sensações especiais e dores pungentes passam a colorir as fantasias humanas.
Palavras chave: amor, sexualidade, psicanálise, modernidade

                                                 O mais singular livro dos livros
                             É o Livro do Amor;
                                     Li-o com toda a atenção:
                                      Poucas folhas de alegrias,
                                        De dores cadernos inteiros...
                                  ...O insolúvel, quem o resolve?
                                                         Os amantes que tornam a encontrar-se
                                                                               Livro de Leitura, Goethe

Utilizada originalmente pelas ciências naturais para designar a atração entre dois elementos químicos diferentes, mas afins, a expressão afinidades eletivas foi o título escolhido por Goethe para coroar seu romance de 1809 - escrito quando já era um sexagenário- quiçá para tentar compreender por qual imperioso impulso dois seres buscam-se um ao outro, atraem-se, ligam-se e a seguir ressurgem dessa união íntima numa forma renovada e imprevista.
Goethe é considerado um ícone do romantismo, movimento que trazia como novidade o acolhimento das contradições e antíteses, e o fato de que nossas vidas não seriam ditadas somente pela razão, mas também pelo nosso estado d’alma. Na Alemanha em especial ganhava força uma vertente denominada Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) que rompia violentamente com conceitos e esquemas que regulavam as relações individuais e sociais, políticas e morais e repercutia profundamente na arte e na literatura ao proclamar a liberdade absoluta do artista.
Nesta Europa da era burguesa, final do século XVIII e início do século XIX, vivia-se um momento cultural turbulento, pleno de debates sobre as paixões terrenas (amor erótico) e elevadas (amor sublime). Juntamente com os valores modernos pós-revolução francesa, que pretendiam transpor as barreiras das diferenças de direitos entre homens e mulheres, das diferenças culturais, de raça e de religião e dos preconceitos sociais, o mito do amor romântico prometia atender às demandas de prazer e de felicidade humanas ao acenar com a possibilidade da junção casamento/amor/sexo e apostar que em algum lugar do futuro cada um viveria sua história de amor com alguém especial. Ao realizar uma síntese das paixões sexuais e amorosas e oferecer uma medida mista de enaltecimento do sentimento (amor) levado às alturas com a melhor das emoções (sexo) dentro do casamento, este amor verdadeiro passa a ser um destino pessoal almejado por homens e mulheres, que podem escolher seus parceiros por amor e construir roteiros, sensibilidades e aspirações amorosas inéditos. Surge um imaginário sociocultural diferenciado, uma dimensão humana de interioridade e uma subjetividade amorosa que tanto na sua dimensão trágica (impossibilidade) quanto dramática (ambivalência) toma um espaço central na vida dos dois sexos.  O estilo romântico da literatura oitocentista privilegia de forma inaugural estes anseios amorosos, inspirando uma nova maneira de existir humana, voltada para o conhecimento de si.  As historias de amor alimentam-se e são alimentadas em um circuito permanente por um repertório sempre renovável distribuído entre os romances. Verdadeiras ou fictícias, tais historias fascinam a todos e se perpetuam ao serem lidas e relidas, lembradas ou citadas.
Em Afinidades Eletivas, Goethe, no entanto, expunha a contingencia e a ambigüidade da moderna sina humana amor-desejo, responsável pelo pêndulo entre o imperativo de nossa natureza que solicita e deseja, o imperativo moral, que tanto pode nos constranger quanto nos dignificar e nossa ânsia de reconhecimento amoroso. Neste terreno arenoso, a razão sucumbia, como viria a constatar Freud, aos desígnios mais crus de nossas tendências pulsionais. Por questionar repetidamente a tão esperada fidelidade, o idealizado casamento e o significado do amor, as paixões inesperadas desconstruíam as expectativas de uma vida amorosa tranqüila e pacífica e revelavam a complexidade de nossos desejos.
Parte integrante deste mito amoroso, a sexualidade humana, por seu caráter disruptivo, havia se mantido durante grande parte da história ocidental como uma dimensão da vida que deveria ser acobertada, tendo como aval a ideologia judaico-cristã, que condenava a carne e silenciava suas paixões em proveito das coisas do espírito. Se a cultura de então incentivava certas condutas para o convívio amoroso entre os sujeitos, as paixões despertadas pelo desejo rompiam com a moral da época de Goethe, e tornavam trágica a busca pela realização amorosa romântica, que não podia suportar a invasão das forças da natureza responsáveis pela atração irrefreável entre as pessoas.
Na medida em que o tema da sexualidade se impunha interferindo nos modos como os indivíduos davam sentido e valor às suas condutas, aos seus deveres, prazeres e sentimentos, a moral sexual burguesa tentava abater a importância da ligação do sexo com o prazer. Os casamentos de então pretendiam civilizar as relações sexuais, restringindo-as à sua vigência e impondo limites à vida sexual de homens e mulheres (principalmente destas). Sabemos quão o ethos freudiano irá revelar o avesso da moral burguesa. Por ser via de acesso à vida do corpo e da espécie, o sexo adquiria um lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos, no intuito não só de focalizar a saúde dos indivíduos, mas de criar dispositivos e normas para o prazer sexual. Parte da literatura da época se ocupava em revelar tais disparidades através de narrativas que ora condenavam a sexualidade ao vício e à insanidade, ora exaltavam suas possibilidades de êxtases prazerosos. As histórias amorosas mantinham seu papel de fornecer pistas sobre o percurso do amor na cultura e as idiossincrasias da complexa ligação amor-sexo.
Grande parte da inquietação em torno da sexualidade dirigia-se às matizes do erotismo feminino que habitavam o imaginário masculino, considerado transbordante, excessivo e incontrolável. Se a literatura (quase que exclusivamente escrita por homens) denunciava esse misto de fascínio e medo, os discursos sociais se apressavam em adestrar o corpo e a sexualidade da mulher à procriação e ao casamento; qualquer desejo ou comportamento sexual que extravasasse esses limites era tratado como excesso, degeneração ou patologia. O amor romântico, embora acenasse com uma solução de controle da sexualidade feminina por meio do casamento, incitava a junção de duas figuras míticas, a santa e a prostituta, divisão que a cultura se ocupava em caucionar, diante da dificuldade masculina de enfrentar a figura da mulher-mãe assexuada (protótipo do primeiro amor de todos), e a figura da mulher sensual. Sexo e amor confirmavam sua difícil convivência pelo fascínio-medo da mulher sensual e da mãe cuidadora, cuja junção seria inadmissível em tal contexto histórico. Pode-se entender por que havia grande tolerância social aos homens infiéis, que, de certa forma, possibilitava a eles resguardar-se dessa atração proibida e inconsciente, vivendo o sexo de um lado e o amor de outro. Essa prática serviu para que a infidelidade masculina pudesse ser naturalizada e o adultério feminino condenado (chegando a ser considerado crime até algumas décadas atrás). Ao contrário do par de modelos opostos, a mulher sensual e mal vista ou a maternal bem aceita, aos homens a cultura reservava uma moral mais branda. Ainda assim, como revelava Goethe, as paixões inesperadas podiam surpreender a todos.
A ânsia pelo momento de êxtase máximo do ser humano – em que duas pessoas seriam bastante uma para a outra, não necessitando de mais nada no mundo, em uma espécie de consumação máxima da realização dos desejos – desencadeou um debate questionador sobre as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise inaugurou uma forma de decifração desse tumulto interior, percorreu seus caminhos e por meio de uma análise especial de suas mazelas, lançou novas questões, procurando elucidá-las. Para isso, empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente, sublinhou o papel do recalcamento, o lugar de fantasia do “sexual” e revelou um sujeito ao mesmo tempo livre e coagido por ela. Neste último século foram principalmente as mudanças em torno da sexualidade que se impuseram e afirmaram de forma inédita o direito de cada um ao prazer sexual. Estas mudanças interferiram sobremaneira na paisagem social e admitiram uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados, ainda que possam compor várias melodias. O enigmático se deslocou de nossa sexualidade para nossos desejos. O ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes e que hoje permeia as relações de todas as idades, abriu um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo entre os pares e por isso prevêem uma confluência de interesses e desejos continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou ambas as partes ou quando os pactos que as asseguravam se desfazem. O casamento deixou de ser uma instituição, tornando- se apenas uma formalidade, um modo de administrar as expectativas de laços conjugais mais duráveis. Os novos parceiros se formam em regime de simetria e, como cada um é o único legislador de sua relação amorosa, precisa negociar constantemente com o par, investindo nele, se o objetivo de ambos for prolongar o relacionamento.
Na época de Goethe, a tarefa de encontrar uma acomodação feliz entre as reivindicações individuais e culturais indicava a necessidade de internalizar a repressão social dos sentimentos destrutivos e dos desejos sexuais temidos, que deveriam se transformar em uma consciência moral vinculada à culpa. Hoje a pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos conflitos a serem administrados para que possamos validar a diversidade de nossas opções. Mantém-se a procura por realizações sentimentais e satisfações sensoriais, mas a liberdade sexual que hoje se usufrui, impensável mesmo há três ou quatro décadas atrás, incentiva a  busca e não condena mais o prazer físico. Estamos, sob este ponto de vista, mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos, sensual e eroticamente emancipados.
O remanejamento dos antigos códigos de convivência amorosa também assegurou uma liberdade maior a cada indivíduo, que hoje pode escolher, entre um leque amplo de opções, aquilo que mais se afina com seus gostos ou estilo de viver; mas não tem sido fácil para a grande maioria fazer o luto do ideal de amor romântico, habitante velado ou declarado do íntimo de cada um. Talvez porque as dores provocadas pela luta entre a manutenção deste anseio romântico e todos os sentimentos que o acompanham - como o medo da perda, do abandono ou da traição - sejam reminiscências do romance infantil vivido por cada um em seu seio familiar. A psicanálise, que no ultimo século ajudou a desvendar esse modelo de contexto familiar e a complexidade das subjetividades de seus membros, revelou não só os bastidores conflituosos das relações entre mãe, pai, filhos e filhas, mas o lugar privilegiado das funções (amorosas) parentais na constituição do psiquismo humano. O amor incondicional imaginado durante os cuidados e acolhimento dos primeiros anos de vida transformaria cada um em Narciso e marcaria um destino de busca para ser amado e admirado. Recuperar esta imagem de centro do mundo e de todas as atenções confunde-se com a promessa do romantismo amoroso, que assim parece legitimar a expectativa de  satisfação sexual e sentimental e a busca de  um parceiro (a) que devolva este olhar que se espera poder amparar e confortar.  Vivemos em um circuito amoroso que se repete indefinidamente. O amor que esperamos ter recebido de nossos pais na infância moldará aquele que nutrimos por nós mesmos. Este, por sua vez, fará com que busquemos, no outro que iremos eleger, o mesmo reconhecimento e valor do amor. Espera-se que possamos encontrar maneiras de nos amar mesmo quando não fomos tão amados quanto gostaríamos, e quem sabe buscar por meio de nossas escolhas o amor que queríamos ter recebido.
Não por acaso são inúmeras as produções culturais que alimentam a ideia de que a vida não tem sentido se não encontrarmos nosso par amoroso, o que torna as escolhas amorosas o centro nervoso da relação que temos com nossos eleitos. De certa maneira, repetimos indefinidamente esta busca e tentamos responder aos enigmas das afinidades eletivas. Como nos apaixonamos? O que faz com que nos sintamos atraídos amorosa e sexualmente por alguém? Porque experimentamos uma aceleração de nossos batimentos cardíacos, um suar frio, às vezes um rubor ou uma inesperada inibição diante de alguém?  
Na visão psicanalítica, estamos sempre buscando as condições infantis de amar, tentando reconhecer no outro os traços de nossas relações com nossos pais, seguindo nossos registros inconscientes de prazer. Escolhemos nossos parceiros em função das experiências de vida, marcas de prazer e de desprazer, modos de sentir o outro ou de interpretar a busca de satisfação. A biografia amorosa contém a memória do corpo erotizado, assim como as maneiras singulares de desejar reconhecimento e amor do outro. Pode ser um traço particular – ou um conjunto deles – que para cada um terá uma função determinante nesta escolha. Algo próprio, que se relacione com sua história singular e íntima, sempre atravessada por fantasias e pelos ideais que o eleito representa como veículo de satisfação.
Em geral, quando o amor bate à porta sem avisar, e a sua presença se impõe prescindindo de definições ou apresentações prévias, estamos diante da paixão. Considerada o auge do sentimento de amor, a fronteira entre nós e o outro ameaça desaparecer e contra todas as provas de nossos sentidos, declaramos que somos praticamente um só, fazendo disso um fato. A experiência da paixão é a de um amor ideal: colocamos o eleito no lugar do nosso próprio eu idealizado e não podemos mais distingui-lo de nós mesmos. Apagam-se as diferenças e tem-se a sensação de nada faltar, uma captura narcísica inconsciente em que vemos no outro o que somos, o que fomos ou o que gostaríamos de ser ou possuir. Não só temos a convicção de que o outro pode sanar a nossa falta como também a de que nós temos aquilo que lhe falta. Imaginamo-nos capazes de oferecer-lhe todo o prazer sem jamais sermos fonte de sofrimento. Um é necessário e vital para a sobrevivência do outro, não havendo possibilidade de pensar ou desejar algo que não lhe seja voltado; as divergências são ameaçadoras e a exigência de exclusividade é exorbitante. Vivemos tal e qual uma relação aditiva e alienada. O amor-paixão busca essa complementaridade; amamos para ser amados.
Mas nossas parcerias românticas, construídas na promessa da incondicionalidade, exclusividade e felicidade, não possuem garantias. Quando amamos, ficamos desprotegidos contra o sofrimento, mais à mercê do outro e expostos a dores extremas se rejeitados, traídos ou abandonados. Território-limite entre nós e um outro, a experiência amorosa é fonte dos conflitos mais humanos, que gravitam entre o amor e o ódio, o domínio e a subjugação, o desejo e a indiferença, a rivalidade e a generosidade. Na medida em que se ama, é impossível não correr os riscos da perda e seus desdobramentos em termos de sofrimento.
As mudanças na cultura atual em torno de uma sexualidade mais livre não nos isentam das dores do amor, ao contrário, apenas nos fazem construir novas defesas contra elas. Transgressiva, ela mantém seus traços infantis de perversa, por explorar, exagerar e exceder os diferentes modos de satisfação, e polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis. Cada par tenta fazer acordos que possam regular o prazer, o gozo e o sofrimento que suas relações amorosas e sexuais demandam, tendo como pano de fundo, o anseio de que o eleito possa significar o fim desta busca incessante e o conforto do amor incondicional. A despeito desta aposta, as infidelidades rondam as dissoluções e questionam repetidamente a contabilidade conjugal. Na exclusividade pretendida por ambos os parceiros e caucionada pelo imaginário cultural, ressoa a imposição infantil poderosa a qual a maioria dos sujeitos resiste a renunciar, independente de sexos ou gêneros. Nada é mais gratificante do que a ilusão de possuir a fonte do amor incondicional; nada é mais terrível do que perdê-la.
Sabemos que, no terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a ambigüidade e a dúvida. Resta-nos construir caminhos em que o jogo narcísico que nos constitui e reúne, também possa  inventar uma ética amorosa para nossas condutas. Pode-se dizer que as afinidades eletivas nestes dois séculos que nos separam de Goethe, mantêm este dilema entre nosso ideal subjetivo e os ideais sociais, mas nossas dores e temores estão mais ligados à confiança que conseguimos ou não obter sobre nossas potencialidades.
Ao que parece, as inúmeras opções que nosso mundo contemporâneo produz no intuito de nos oferecer felicidade continuam ganhando mais sentido se vividas junto a um  parceiro amoroso. O amor mostra como precisamos desse lugar, ainda que imaginário, em que solicitamos do outro que nos responda sobre nossa importância. Mais do que tudo, almejamos ser especiais.
   
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Gisela Haddad é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É autora do livro Amor e Fidelidade (Coleção Psicanalítica, Casa do Psicólogo - 2009)  e Amor (Coleção Emoções, Editora Duetto – 2010).