sexta-feira, 4 de março de 2011

Amores e suas dores - parte I

Seus olhos ficavam marejados sempre que a imagem daquela pequerrucha vinha à sua mente. Sentia o ar faltar ao repassar os momentos em que brincavam juntas. Na verdade as lembranças permaneciam vivas durante toda a semana: cada detalhe, cada gesto, mas principalmente a força daquele olhar, um misto de desespero e pedido de atenção incondicional. Começava ao tocar a campainha. Do outro lado podia ouvi-la gritando – é a vovó, a vovó chegou. De imediato uma exuberância de sentimento lhe invadia o corpo todo! Ninguém mais estava autorizado a recebê-la. Quem abria a porta era aquele serzinho de apenas dois anos, que vinha já de braços abertos esperando o aconchego de seu colo. Mas o que mais lhe impressionava era o seu empenho em monopolizar sua atenção, que fazia não sem custos: gastava um tanto considerável de energia para fiscalizar o destino de suas palavras, gestos e olhares. Era tão forte que ela se sentia culpada se por ventura o netinho de sete meses lhe sorrisse, balbuciasse qualquer som ou jogasse os bracinhos em sua direção. Como era possível que sem palavras que pudessem definir seus sentimentos, ela conseguisse deixar tão claro o quanto os ciúmes estavam dilacerando seu coraçãozinho? E quem não sabia o que isto significava? Poucos, muito poucos. Ela mesma, já que ao invés de um, sua mãe tinha lhe dado dois irmãos ao mesmo tempo, até hoje conhecidos como “os gêmeos”. Dores inesquecíveis diante de um incômodo e perturbador afeto, tão familiar e recorrente. Não sabia dimensionar se sua filha, mãe dos dois netos, estaria em condições de perceber (tanto quanto ela) quão devastador ele podia ser. Afinal, era filha única. Apesar de sua área ser a Biologia e não a Psicologia tinha uma vaga idéia de que os ciúmes entre irmãos era um desafio para os pais. E só agora como avó, percebia os limites impostos por este sentimento, já que as lembranças de sua historia infantil se impunham, chegavam sem esforço, invadiam sua mente. Embora nem sempre soubesse o que fazer para amenizar o tom cinzento que parecia descolorir a vidinha da pequena desde a chegada do irmãozinho, algo lhe induzia a respeitar a sua dor. Sabia que era legítima. Poderosa. Quase sem se dar conta, por “puro amor”, pôs-se a tentar elucidar o que achava que a feria tanto. Fosse pelas brincadeiras com as bonecas ou nas ocasiões em que era inevitável um tenso encontro entre ela e o irmão, ofereceu-se como intérprete de seus sentimentos. Aliás, uma tarefa fácil já que confessar-lhe que sentia dores semelhantes em sua infância nada lhe custava. Pelo contrário. Elas acabavam ganhando um sentido novo. Era incrível como longe, muito longe de poder saber disso, sua netinha provocava este tumulto nas suas entranhas, desarrumando o sótão empoeirado de sua memória. Estava claro que a chegada de um novo irmão questionava o lugar especial que a mais velha imaginava ocupar. Que de repente ela não fora suficiente, e agora teria que dividir sua exclusividade com aquele novo e “odiado” ser. Experiência de dor, mas com grandes possibilidades de impulsionar-nos para a roda do mundo das pessoas, ao nos tirar do centro exclusivo do mundo de nossos pais. Era nisso que ela queria apostar.

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